Leitura, leitores e sala de aula: algumas reflexões

Leitura, leitores e sala de aula: algumas reflexões

Há algum tempo circula, em nossa sociedade, uma prática discursiva comum, institucionalizada, de que o brasileiro não sabe ler ou que lê mal ou, ainda, até mesmo que não gosta de ler. Entendemos que isso se deve ao fato de, na maioria das vezes, o brasileiro ler por necessidade, por praticidade, por obrigação ou para prazer imediato.

Sabemos que existem diversas pesquisas que apontam os níveis de qualidade de leitura dos brasileiros como ainda não satisfatórios, leem, mas não conseguem ultrapassar o nível da decodificação. Dessa forma, nos parece que as práticas de leitura orbitam quase sempre no campo do utilitarismo. Lemos, mas, na maioria das vezes, apenas para aquisição de informação, sem chegarmos à transformação do que lemos em conhecimento ou em reflexão crítica e mais apurada.

A prática de leitura que leva não só ao prazer, mas, também, à aquisição do conhecimento e à transformação do sujeito, exige do leitor tempo desacelerado, postura altruísta, desprendida de (pre) conceitos e, principalmente, curiosa e questionadora, que não apenas se atém ao que está sendo dito e como foi dito, mas, especialmente, à leitura que responde ao porquê se lê, para que se lê e qual o efeito que essa leitura pode ter. Prática de leitura que não se atém apenas à escrita e ao contexto imediato do texto, mas uma prática de leitura discursiva que leva em consideração o histórico, o social, o ideológico.

Levar em consideração isso tudo, que se encontra no extralinguístico, requer do leitor um diálogo e interação entre o leitor real, o leitor imaginário presente no texto, o autor do texto, os leitores e interlocutores que são mobilizados no extralinguístico para que se atinja os discursos ideológicos, históricos, sociais, construídos, e que estão à deriva e dispersos para que aconteça leitura profunda e transformadora.  

 

Não saber ler o que está nas condições de produção do texto e da leitura pode ter resultados nefastos para o leitor que lê utilitariamente ou simplesmente para se informar, pois fica à mercê da manipulação daqueles que sabem ler, e, também, sabem dissimular, trapacear o discurso para conseguir efeitos de sentido em seus interlocutores. Ignorar as possibilidades de interpretação de um texto pode levar o sujeito a construir-se e construir o mundo de forma inadequada.

Ler deve ser arma, instrumento, ferramenta, dispositivo para se aprender a viver, assim como escrever deve servir para deixarmos nossas marcas no mundo, é ferramenta, arma, instrumento, dispositivo para transformarmos o mundo e a nós mesmos.

Mas como aprender a ler dessa forma? A quem compete ensinar a ler?

O discurso institucionalizado é que a leitura e a escrita competem, em um primeiro momento à família, depois à escola. Na escola, as práticas de leitura circulantes centram-se, quase sempre, no utilitarismo, na aquisição de informações e em alguns casos na diversão. E aquelas ligadas à transformação da informação em conhecimento são bem poucas. 

Nesse sentido, corroboramos a assertiva do estudioso Bourdieu, quando afirma que o contexto escolar e as suas relações sociais nos possibilitam perceber melhor a função político-ideológica que legitima um discurso autoritário, próprio do sistema de dominação, presente nas instituições de ensino. Se toda forma de dominação é, sobretudo, um mascaramento da realidade social, em sendo assim, não há espaços de ascensão social e, consequentemente, se reproduz, perversamente, as desigualdades. Afirmamos, perversamente, porque os mecanismos de dominação são “objetivamente orquestrados”, por meio das estratégias de reprodução (BORDIEU, 1999).

Assim, temos gerações de professores que discursivizam que seus alunos resistem à leitura inculcada por um sistema que dita o que se pode e o que se deve ler.  Alunos, por sua vez, posicionam-se muitas vezes contrários à leitura especialmente se forem canônicas, por entenderem justamente que essa é sempre imposta e não faz parte de seu mundo cotidiano e de interesse de leitura.

Os jovens, quase por unanimidade, acreditam que esses livros “velhos” não lhes dizem nada, por fazerem parte de um contexto muito diferente daquele no qual vivem e por utilizarem uma linguagem “difícil”, muitas vezes distante daquela usada por eles. Ressaltamos que não se trata aqui de culpar professores ou a escola pela situação, de certa forma caótica, em que se encontram as práticas de leitura. Toda ação pedagógica imposta é uma forma de violência simbólica, pois reproduz a cultura dominante, suas significações e convenções, padroniza um modelo de socialização que favorece a reprodução da estrutura das relações de saber/poder.

Há tendência em ler somente a superfície, manchetes, nada que exija esforço de compreensão, nada que possa requerer um mais além, a não ser algo que seja bastante trágico, que tenha conotação de espetáculo de vitrine.

Percebe-se, por meio dos comentários que os alunos trazem para as salas de aula e querem ler temas e assuntos que estejam na fluidez da sociedade líquida moderna. Dessas temáticas, a tragicidade ou assuntos sobre sexo e fofocas, de um modo geral, têm lugar de destaque em detrimento de leitura mais erudita. A trivialidade impera sem nenhuma conotação consistente de argumentação ou de uma tomada de posição discursiva, e, quando o fazem, geralmente são pontos de vista superficiais sem fundamentação consistente, que dê suporte.

Ora, então, por que não se apropriar desses indícios e trabalhar temáticas em diferentes suportes que vão ao encontro dessas demandas e propiciar abertura para o debate? Por que não partir da leitura de massa para se chegar a leituras mais eruditas, para que se possa chegar às condições de produção do texto e da leitura, atingir o extralinguístico. Nesse sentido, é necessário e urgente que o professor amplie a escuta da “leitura perceptiva/sonora”, para dar conta de inserir os alunos em outras práticas de leitura mais significativas. É necessário um olhar sobre as práticas de leitura circulantes, especialmente no cotidiano escolar, a partir do que pontua Coracini1 (2013, p.138): “Na sala de aula, ainda muito frequentemente, é o sentido único que prevalece, na ilusão de que a leitura do professor coincide com a que o texto transmite”. Talvez seja preciso operar na desconstrução dessas concepções, aí naturalizadas, para compreender que a relação sujeito/sentidos é construída junto com o texto, de acordo com as condições de produção do discurso, e não por “transmissão”, como se houvesse um único sentido.

Diante do exposto, torna-se contundente que a escola tenha uma responsabilidade institucional como promotora de um saber; tenha um papel contributivo a desempenhar especialmente na formação do aluno leitor e, para tanto é necessário rever, refletir e ressignificar as estratégias, recursos e argumentos utilizados nas práticas de leitura.

 

Prof.ª Leny André Pimenta

Doutoranda UNESP-Área Educação

Prof.ª Dr.ª Elaine Assolini

FFCLRP-USP

 

1 Entrevista concedida por Coracini às autoras: ASSOLINI, F. E. P.; LASTÓRIA, A. C. (Org).  Diferentes linguagens no contexto escolar: questões conceituais e apontamentos metodológicos. Florianópolis: Insular, 2013, pág.138

 

 

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