Livro didático e imagens de crianças: identificação e representação no pluralismo cultural brasileiro

Livro didático e imagens de crianças: identificação e representação no pluralismo cultural brasileiro

O Brasil e o mundo são constituídos por diferenças que englobam gente de toda espécie de “tribo”, língua, povo e nação. Essa diversidade étnico-cultural forma o que costumamos chamar de um “caldo” de culturas.

Lidar com as diferenças sócio-culturais, étnicas e éticas não é tarefa fácil, mas a escola tem um papel fundamental em criar condições para (re)significar alguns conceitos que as crianças trazem. É necessária uma educação que se volte para a diversidade e desenvolvimento de um currículo multicultural, reconhecendo o pluralismo cultural brasileiro.

 Nessa linha de pensamento, é pertinente lembrarmos também que “(...) em uma sociedade que se divide em classes antagônicas como a nossa, o livro didático constitui instrumento usado pela sociedade capitalista para homogeneizar e igualar aqueles que são diferentes e heterogêneos” (ASSOLINI, 1999, p.14).

Dessa forma, o livro didático pode ser concebido como um arquivo importante para a formação do aluno e, também, para o trabalho pedagógico do sujeito-professor, visto que tanto pode desconsiderar as diferenças multiculturais e a pluralidade de ideias, concepções, definições e argumentos quanto pode veicular conteúdos que instiguem a curiosidade, perguntas, dúvidas. Não raro, os conteúdos, atividades e textos contidos nos livros didáticos em nada remetem à memória discursiva dos estudantes, sequer se aproximam de realidades e acontecimentos contemporâneos. Não se trata de um material neutro, portanto.

Para a pesquisadora brasileira Coracini, o livro didático ocupa um espaço de grande importância, devendo atrair um olhar de desejo de aprender, de saber do aluno, seja qual for a classe social, raça ou cor. Segundo a estudiosa, é desejável que o aluno se reconheça no livro didático, encontrando ali representações de si, de sua subjetividade, desejos, pensamentos (CORACINI;             CAVALLARI, 2016).

Residem aqui algumas de nossas principais preocupações, que vão na seguinte direção: como a criança é representada no livro didático? Como é discursivizada, isto é, tratada, falada, argumentada? Quando são propostas determinadas atividades, tarefas, textos, qual ideal de criança os autores dos livros didáticos têm em mente? Como a infância é tratada nos livros didáticos?

Esses e muitos outros questionamentos têm sido por nós realizados, visto que nos sentimos profundamente incomodadas e inquietas quando folheamos um livro didático e nele não encontramos, por exemplo, a imagem de uma criança negra, com algum tipo de deficiência, ou sequer imagens que possam expressar emoções e sentimentos que nos constituem, como raiva, ódio, dor, angústia ou tristeza. A percepção que temos é a de que a maioria desses materiais traz imagens que em nada remetem à criança “real”, à criança que, de fato, encontramos nos bancos escolares, crianças com as quais convivemos, quer seja na posição de professor, mãe, tia, avó, coordenadora pedagógica etc.

Como bem nos ensinam os filósofos Althusser (1985), Foucault (2013) e Pêcheux (1995), essas imagens, que mais condizem com o paraíso, Éden e menos com a vida, com o cotidiano, não são assim por acaso. Estamos em uma sociedade de classes e, sendo a escola um Aparelho Ideológico de Estado, AIE, de acordo com Althusser (1985), é possível assegurar e perpetuar a submissão, o conformismo e a resignação das classes dominadas por meio desses conteúdos.

Sabemos que, desde a década de 1970, vêm sendo realizados estudos e pesquisas sobre os livros didáticos brasileiros. Mas, apesar de todas as denúncias já realizadas e propostas inovadoras apresentadas aos professores, existem ainda problemas a serem investigados. Um deles concerne às representações de criança e infância presentes nesses livros.  Como bem nos ensina o sociólogo Moscovici, “(...) a representação social é uma preparação para a ação, ela não é somente na medida em que guia o comportamento, mas sobretudo na medida em que remodela e reconstitui os elementos do meio ambiente em que o comportamento teve lugar.” (MOSCOVICI apud SILVA, 2011 p. 27).

Nossa pesquisa está em andamento, mas os resultados parciais permitem-nos pensar sobre o funcionamento ideológico das imagens de criança e infância.

Desconstruir a pretensa e ilusória naturalidade dessas representações pode ser uma alternativa consistente para (re)pensarmos a sociedade em que vivemos, marcada pela desigualdade e exclusão social, que, em muitos casos, apresentam-se de forma opaca e nebulosa, impedindo-nos de desvendar, se não todos, pelo menos alguns fatores que sustentam uma sociedade desigual.

 

Prof.ª Symone Augusto

Prof.ª Dr.ª Elaine Assolini

Referências:

 

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. 2. ed. Trad. de Valter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

 

ASSOLINI, F. E. P. Interpretação e letramento: os pilares de sustentação da autoria. Tese de doutorado. USP: Ribeirão Preto, SP, 2003.

 

CORACINI, M. J., CAVALLARI, J. S. (Orgs). (Des)construindo verdade(s) no/pelo material didático: discurso, identidade, ensino. Campinas, SP, Pontes Editores, 2016.

 

FOUCAULT, M. A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.

 

PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 2. Ed Trad. Eni Pulcinelli Orlandi [et al.]. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1995.

 

SILVA, A. C. A representação social do negro no livro didático: o que mudou? Por que mudou?. Salvador: UDUFBA, 2011.

 


 

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