Alguém nasce gay?

Alguém nasce gay?

Acredita-se, não sem razão, que alguns religiosos evangélicos são radicais em sua visão de mundo, se mostrando incapazes de entender questões sociais que modificam a estrutura da família e, por consequência, da mulher e do homem no mundo. O casamento ou união entre pessoas do mesmo sexo é o assuntos que mais cria polêmica.

A justificativa para que esses religiosos (Silas Malafaia e vários outros que pude conhecer) sejam contra a união homossexual, é, me parece, um certo receio em termos futuramente um mundo inteiramente gay. E nesse mundo gay, as pessoas não teriam filhos pois a fecundação seria impossível e espécie humana, divina criação de Deus, sucumbiria ao tempo, e se extinguiria para toda a eternidade. É o argumento de que o homossexual é uma aberração da natureza, pois o homem e mulher são anatomicamente feitos um para o outro: o homem tem pênis, a mulher tem vagina e tal fato anatômico não pode ser alterado pelos desejos demoníacos de uma sociedade corrompida pela falta de Deus. E além do mais, religiosos e demais conservadores odeiam ver homens se beijando na rua e andando de mãos dadas (como muitos demonstraram ao ver um comercial da empresa O Boticário, que mostra casais hetero e homossexuais no dia dos namorados de 2015).

Um pessoa nasce homossexual? Provavelmente sim.

Mas o que é importante saber? É importante saber que todo organismo tem um processo de desenvolvimento do nascimento até sua morte. E nesse tempo, os genes e o ambiente atuam orquestrados. Podemos distinguir pelos menos dois tipos de ambientes (“influência ambiental” é tudo aquilo que não é diretamente determinado pelos genes na sua sequência de DNA): o ambiente psicossocial (a cultura, educação, modos de relacionamento com os outros e etc.) e o biológico (dieta, ambiente intrauterino, doenças etc.). Por isso há tanta polêmica no assunto, porque cientistas e religiosos/conservadores não conseguem dar um ponto final na questão. O argumento religioso apela para o determinismo genético que já está bastante fora de moda no meio científico. Porem, hoje sabe-se que genes e ambiente moldam os seres vivos, e no caso do comportamento humano essa relação é intrincada e muito complexa, a ponto de um filho de pais heterossexuais conservadores se tornar mais tarde um pai liberal homossexual e fazer exatamente o oposto do que lhe foi ensinado pelos pais.   

Há pesquisas em genética que indicam influência dos genes no desenvolvimento da orientação sexual em humanos, inclusive mostrando estudos com gêmeos monozigóticos  - aqueles que compartilham de basicamente um mesmo patrimônio genético (1). Tem um estudo (2) que mostra que o cérebro de homens homossexuais são parecidos com cérebros de mulheres heterossexuais; e cérebros de mulheres homossexuais mostram similaridades à cérebros de homens heterossexuais. Ou seja, embora não exista uma determinação genética evidente, há sim diferenças cerebrais e comportamentais evidentes e, portanto, naturais. 

Alguns manifestam o comportamento homossexual logo na infância, outros mais tarde. Assim, muitos pais que percebem desde cedo a manifestação "de algo estranho" nas crianças, já reprimem mais fortemente. Mas há relatos maciços de homossexuais que desde muito cedo, com 4 ou 5 anos, já se imaginavam afetivamente ligados à pessoas do mesmo sexo ou mesmo se imaginavam mulheres. 

Percebam que os religiosos utilizam da biologia e genética (bastante chinfrim, é verdade) para justificarem seus próprios medos. É fato que a orientação dos impulsos (pulsões ou instintos) sexuais não são fixados e podem mudar de direção ao longo da vida, assim como ocorre em outros animais, de modo que um rapaz, após ter casado com uma mulher e tido filhos, pode se interessar por um outro rapaz e viver sua vida com ele. Ou seja, esse rapaz homossexual teve filhos, deixou seu genes para perpetuar a espécie humana.

Outra coisa que destrói esse argumento de que em um mundo gay não haverá filhos são os métodos de inseminação artificial. Por exemplo, um casal gay pode ter filhos no laboratório ou alugar uma barriga de aluguel. Simples. Caso vivêssemos em um mundo inteiramente gay, obviamente essas práticas se tornariam bastante comuns. Aliás, como são muito comuns hoje com casais heterossexuais.

Outro ponto que os religiosos se esquecem é que o sexo, na espécie humana e outras, não existe exclusivamente para a reprodução, portanto, o sexo é utilizado, quase que "via de regra", para entretenimento, diversão e um importante fator de coesão social e familiar (para provar isso, sugiro que conte quantas vezes você fez sexo na vida e quantos filhos você têm). Deste modo, pouco importa para o sexo as diferenças anatômicas. O pênis, vagina, ânus, boca, mãos, pés e etc. são meros aparelhos à serviço de uma energia sexual que não serve apenas à reprodução, muito embora uma ou outra doutrina religiosa determine assim. 

Aprendi desde cedo, que o que um casal faz entre quatro paredes não me diz respeito. Mas isso gera medo nos religiosos, porque agora vemos com frequência homens beijando homens e mulheres beijando mulheres nas ruas e assim cria-se uma cultura em que todos podem beijar todos. E as crianças, observando isso, vão se sentir inclinadas a fazer o mesmo, aumentando cada vez mais a incidência do comportamento homossexual no planeta.

Deste modo surge a questão: precisamos esconder isso? Precisamos proteger as crianças desse fato da natureza? Um cultura que permite a homossexualidade produz mais homossexuais? A minha resposta é não. Não devemos proteger as crianças de fatos da natureza em hipótese alguma. O comportamento humano não responde diretamente à determinismos, ou seja, criar uma criança com pais homossexuais não vai determinar inequivocamente que a criança seja homossexual. Ela pode ou não ser hetero ou homossexual. Veja que muitos homossexuais tiveram estruturas familiares rígidas, com uma super-mãe (carinhosa, permissiva e etc) e um super-pai (rígido, autoritário e etc.). Além disso tudo, não devemos tratar a homossexualidade como um desvio que poderia ser evitado.

Chega um momento que os fatos do mundo se tornam gritantes e fica difícil se esconder. Freud e outros estudiosos da sexualidade já ensinavam sobre a vida sexual humana e mostravam que ela pode adquirir tons polimorfos (diversas formas) ao longo da vida e que isso não consiste em uma doença ou coisa do tipo.

A homossexualidade passou as ser considerada doença em 1952 e deixou de ser 1973 nos EUA. A ONU apenas em 1990 retira a homossexualidade da lista internacional de doenças (CID). No Brasil, em 1985 o Conselho Federal de Psicologia se adiantou e desconsiderou a homossexualidade no rol de psicopatologias.   

Chegamos em um momento da nossa história em que a liberdade individual permitiu a expressão de certas formas de sexualidade e não podemos esconder isso de ninguém. Nem dos nossos filhos e nem de nós mesmos.

Vejam alguns répteis que têm seus sexos determinados pela temperatura. Vejam algumas esponjas que, em determinadas fases da vida, mudam de sexo. Vejam uma infinidade – mais de 1500 espécies - de mamíferos e aves que, em alguma fase de suas vidas, apresentam comportamento homossexual. 

Afinal, se existe um Deus, ele criou o homem e a mulher – e toda uma gama fantástica de seres vivos, que se amam e se reproduzem das formas mais diversas e inusitadas. Aceitemos isso! É um dado da natureza e ponto final.

Referências

Ótimo vídeo de Eli Oliveira em resposta à Silas Malafaia - https://youtu.be/3wx3fdnOEos

(1) Dawood, Khytam, J. Michael Bailey, and Nicholas G. Martin. "Genetic and environmental influences on sexual orientation." Handbook of behavior genetics (2009): 269-279. PDF: ‪https://is.gd/Kbt2md

(2) Savic, Ivanka, and Per Lindström. "PET and MRI show differences in cerebral asymmetry and functional connectivity between homo-and heterosexual subjects." Proceedings of the National Academy of Sciences 105, no. 27 (2008): 9403-9408.

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