A Clínica Social de Psicanálise

A Clínica Social de Psicanálise

CECÍLIA M. B. COIMBRA. Guardiães da ordem: uma viagem pelas práticas psi no Brasil do “milagre”. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1995, 387p., p.112-115.

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Embora não reconhecida pelos analistas do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro como fazendo parte de seu estabelecimento, a Clínica Social de Psicanálise, fundada por Katrin Kemper e seu grupo em 1972, será explanada um pouco aqui. Penso que, se não fosse o empenho de Katrin e do pessoal do Circulo, talvez este projeto não tivesse saído do papel. Outras Sociedades de formação, no Rio de janeiro, são chamadas, nelas somente um representante do IMP e Hélio Pellegrino – que já é da SPRJ – participam efetivamente do projeto. É verdade que, com o decorrer dos anos, a Clínica Social ultrapassa os muros do Círculo Psicanalítico, englobando diferentes profissionais “psi”, de diferentes formações e abordagens, sendo seu quadro clínico formado por analistas em formação e profissionais que pretendem ser psicanalistas. Desta feita, foi mediadora e interlocutora do movimento expansionista da psicanálise nos anos 70, congregando diversos segmentos interessados na psicanálise, como artistas, jornalistas, filósofos, etc.

A própria criação da Clínica Social inscreve-se no quadro já descrito do boom das terapêuticas “psi” cuja demanda é fomentada pela produção da “crise da família”, que atinge seu auge na década de 70. A idéia para essa criação surge quando, um ano antes, Katrin e alguns de seus colaboradores, Hélio Pellegrino e Chaim S. Katz, fazem um trabalho na Faculdade Cândido Mendes com pais, os chamados “encontros psicodinâmicos”. São grupos em que se debatem questões relativas à educação dos filhos, suas dificuldades – questões, como já vimos, bastante preocupantes nos anos 60 e 70 para as famílias de classe média – e que lotam o salão onde são realizados. Não obstante toda a clientela ser de classe média da Zona Sul carioca, fortalece-se a idéia de uma clinica que possa atender à população de baixa renda com a implementação de trabalhos grupais. Esta é uma das razões que levam alguns profissionais “psi progressistas”, muitos chegados do exílio, a se incorporarem à Clínica Social. Sua proposta atrai a muitos e a ilusão de se fazer um trabalho por meio do qual se possa atender às pessoas sem condições de pagar um tratamento psicológico privado está presente em toda a sua história. Em realidade, o atendimento que se faz a populações marginalizadas é ínfimo e a grande demanda de sua clientela provém de estudantes e intelectuais da Zona Sul do Rio de janeiro.

Apesar disso, e justamente por isso, à medida que a Clínica Social de Psicanálise expande seus atendimentos e um número cada vez maior de psicólogos a ela se liga, as Sociedades “oficiais” se inquietam. Assim, em 1975/76, a direção da SPRJ chama Hélio Pellegrino e sugere que o nome seja substituído para Clínica Social de Psicoterapia. A psicanálise não pode ser conspurcada pelas propostas contidas no projeto que se tenta desenvolver na Clínica Social, ainda que tais propostas ficassem somente nas intenções e discursos de seus integrantes.

Há outras grandes ilusões contidas neste trabalho e muito presentes durante a gestão de Hélio Pellegrino de 1978 a 1982. Uma delas é a de que a psicanálise poderia ser mais um veículo da chamada “conscientização”, “… facilitando as vias de expressão num momento em que o regime ditatorial exige mutismo e alienação”. Outra é a “postura assistencialista” que se traduz no discurso de Hélio Pellegrino pela fórmula onde os “possuidores doam aos despossuídos”, fórmula que encontra perfeita ressonância no caráter religioso, cristão, deste fundador.

A questão assistencialista “dos possuidores doarem aos despossuídos” liga-se também ao fato de que os que promovem a Clinica Social de Psicanálise são alguns dos psicanalistas mais procurados no Rio de Janeiro, aqueles que, em seus consultórios particulares, têm uma extensa clientela, aqueles que – como todos os outros, à época – beneficiam-se com as sobras do “milagre econômico”, Compreende-se, assim, a ambiguidade presente na atuação desses psicanalistas.

É durante a gestão de Hélio Pellegrino que a Clínica Social mais, se amplia com a proposta do Núcleo de Atendimento Terapêutico a Psicóticos, a organização de concorridos Simpósios sobre Psicanálise e Política” e “Psicanálise e Instituição” na PUC, o lançamento do livro “Psicanálise Política” e muitas outras atividades.

Data desta época, também, o atendimento a ex-presos políticos, perigosos terroristas então cumprindo pena. Um exemplo é o caso de Inês Etienne Romeu que, em 1978, estando presa em Bangu, cumprindo pena de prisão perpétua, solicita a uma amiga apoio psicológico. Segundo a própria Inês, em final de 78 com a intensificação dos movimentos de anistia e o início do processo de “distensão lenta, segura e gradual”, cai o AI-5 e há mudanças na Lei de Segurança Nacional, mudando as penas a que estão condenados muitos presos políticos. Condenada à prisão perpétua, Inês começa a ver a possiblidade de sair e isso faz com que se sinta ameaçada; por isso solicita apoio psicológico e discute com o terapeuta tais questões e seu cotidiano na prisão. O profissional enviado pela Clínica Social de Psicanálise durante cerca de seis meses visita Inês no Presídio de Bangu semanalmente, e apresenta-se as autoridades como um amigo, inscrevendo-se até mesmo no DESIPE para obter autorização. Mesmo antes, na primeira metade da década de 70, alguns atendimentos à pessoas que estão na clandestinidade são realizados. Em função da perseguição política que paira sobre esses militantes, muitos são atendidos sob nomes falsos.

A própria gestão de Hélio Pellegrino em muito veste o slogan da anistia ampla, geral e irrestrita e, num dos Simpósios promovidos na PUC pela Clinica Social de Psicanálise em fins de 1980, novamente vem a tona o caso Amílcar Lobo e se desencadeia a crise da SPRJ.

Apesar de todas as ilusões e ambiguidades assinaladas, é importante que se resgate esse lado corajoso de muitos analistas da Clinica Social: uma faceta bonita, de desprendimento, de solidariedade humana que, em muito, ajudou a algumas pessoas marcadas a ferro e fogo pelo regime militar como portadores da peste.

 

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