Doutor, Doutorado e sobre como fingimos não saber de Ética

Doutor, Doutorado e sobre como fingimos não saber de Ética

“Sabe com quem você está falando???? Você está falando com uma psicóloga!!! Doutora!!!”

Não ouvi esta frase, mas acho que estou prestes a ouvir. Seria a “Carteirada Psi.”

É um costume chamarmos de “doutor”, os médicos, advogados, juízes, delegados e dentistas, e pelo que estou vendo agora, psicólogos e psicanalistas também.

No entanto, profissionais que colocam o termo “Dr.” antes do seu nome, se não tiverem defendido uma tese de doutorado - normalmente produzida em 4 anos em uma universidade regularizada - estão incorrendo em desvio ético de acordo com o Código de Ética de suas próprias profissões.

Simples assim. A maioria dos profissionais a quem chamamos de “doutor” são somente “bacharéis”, ou “médicos” ou “advogados”. O pior de tudo é que esses “doutores” muitas vezes sabem disso e fazem questão de serem tratados dessa forma.

No caso de advogados e médicos o desvio é menos grave, penso (mas ainda grave), porque há um hábito histórico arraigado desde o século XIX, quando da criação dos primeiros cursos jurídicos no Brasil nas cidades de São Paulo e Olinda, em 1827 (1). Em um Brasil agrário, o filho do “Coroné” ia para a cidade grande se tornar “Dotô”. E quando voltava, voltava uma espécie de semideus. Esse semideus era chamado de “Doutor”. E ainda é!

Alguns simplesmente pensam que por serem médicos ou delegados devem ser chamador de “doutor” mesmo em sinal de respeito (heim?). Alguns dizem: - “Sei que está errado, mas como me chamam espontaneamente de “Doutor”, finjo que não escuto e até gosto disso!”

Incrível como a sociedade mudou muito, mas não mudou nada.

Quando psicólogos recém formados, em pleno século XIX (ops, XXI), botam uma placa em suas clínicas e fazem um cartão com a abreviatura "Dr." antes do nome, fico pensando no que aprenderam nos 5 anos de curso sobre ética profissional em um país que fervilha de questões éticas todos os dias na mídia! Penso também sobre qual seria intenção dessas pessoas? Enganar a quem?

Já sei a resposta no caso dos profissionais “Psi”: a ideia é utilizar o termo "Dr." como fachada, com o pressuposto de obter vantagens de um título acadêmico e qualificação que não possui. Em português bem claro é enganar clientes/pacientes. Em linguagem mais popular ainda é “fazer fita”, é “montar banca”. Uma brincadeira de faz de conta, que diz muito sobre o profissional e diz muito da sociedade brasileira, que “deixa passar” e faz “vistas grossas” para as pequenas corrupções do dia-a-dia. 

Essa simples abreviatura diz muito do Brasil atual (e passado também), em que esquemas de poder são montados para alcançar benefícios pessoais. Em que a corrupção ativa é vista como inevitável e a corrupção passiva é vista como neutralidade e profissionalismo.

Muito além de assuntos políticos partidários, faço questão de dizer que chegou o momento mais oportuno para revisarmos nossas atitudes e aprendermos mais sobre ética e não tolerarmos mais desvios e atalhos - que curiosamente fizeram com que nos tornássemos mundialmente famosos pelo nosso “jeitinho” de  (não) resolver as coisas.

"Eles estão jogando o jogo deles.
Eles estão jogando o jogo de não jogar um jogo.
Se eu lhes mostrar que os vejo tal qual eles estão,
quebrarei as regras do seu jogo
e receberei a sua punição.
O que eu devo, pois,
é jogar o jogo deles,
o jogo de não ver o jogo que eles jogam."
(Ronald Laing)


 

Referências

(1) Lei de 11 de agosto de 1827 - https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_63/Lei_1827.htm

 

Compartilhar: