Pau de Selfie é a salvação da humanidade... inclusive do Cristiano Ronaldo

Luís Fernando Scozzafave de Souza-Pinto

15 Jan 2015 14:42

O atacante Cristiano Ronaldo, 29, foi eleito nesta segunda-feira (12) o melhor jogador de 2014. Ele recebe a Bola de Ouro, premiação da Fifa e da revista France Football, pela terceira vez na sua carreira.  Ele disse:

“Na minha cabeça eu sou o melhor. Se não pensarmos assim (...) não temos ambições. Tenho de pensar que na minha profissão sou o melhor. Posso não ser, mas na minha cabeça sou o melhor."

Conta-se que, certa vez, Narciso passeava nos bosques. Perto dali, a ninfa Eco, que era uma tagarela incorrigível, acompanhava-o, admirando sua beleza, mas sem deixar que a notasse. Eco, em virtude de sua tagarelice, foi punida por Hera, esposa de Zeus, para que sempre repetisse os últimos sons que ouvisse (na física, chamamos de eco a reverberação do som). Por sua vez, Narciso, suspeitando de que estava sendo seguido, perguntou: “quem está aí?”. E ouviu: “Está aí?” Então, ele gritou novamente: “Por que foges de mim?”. E ouviu “foges de mim?”. Até dizer “Juntemo-nos aqui” e ter como resposta “juntemo-nos aqui”.  Narciso apaixonou-se pelo som da ninfa Eco, que na verdade era o som de sua própria voz.

Narciso entristeceu-se e foi à beira de um lago, onde, de modo surpreendente, deparou-se com sua imagem nos reflexos da água. Como nunca antes havia se olhado (pois sua mãe foi recomendada pelo oráculo a não permitir que isso ocorresse), enamorou-se perdidamente, acreditando ser a pessoa com quem estava “dialogando”. Por isso, tentou buscar incessantemente o seu reflexo, imergindo nas águas nesse intento, mas acabou morrendo afogado. A ninfa Eco sentiu-se culpada e transformou-se em um rochedo, vivendo a emitir os últimos sons que ouve. Do fundo da lagoa, surgiu a flor que recebeu o nome de Narciso.

O narcisismo (termo bastante utilizado pela psicanálise pela cultura pop) tem o seu nome derivado de Narciso e ambos derivam da palavra Grega “narke”, que significa "entorpecido" de onde também vem a palavra narcótico.

O mito nos sugere pensar em um certo entorpecimento causado pela admiração ou adoração do nossa própria imagem, ou melhor dito, entorpecimento causado por relações que se estabelecem quase que exclusivamente com nós mesmos, em detrimento das relações com a realidade e com o outro. No mundo (na cabeça, como ele diz) de Cristiano Ronaldo ele é melhor, porque não há um parâmetro de comparação com a realidade. Ele é o melhor em absoluto e sempre será. Por isso ele é frequentemente chamado de arrogante, porque reafirma uma facete doentia de nós mesmos. Acreditar que somos os melhores no trabalho e na vida é entorpecedor porque se somos os melhores não temos por quê melhorar mais e tão pouco nos relacionar com os outros, que são bem piores do que nós. A não ser que nos relacionemos com o outro por meio da intriga e inveja. O sujeito se fecha sobre si mesmo e a realidade perde o sentido e o valor; assim como nas psicoses em que a realidade não diz nada e é completamente ou parcialmente desligada.

Mas, para esse narciso,  agora um narciso cibernético, que usa um “pau de selfie” para registrar mais perfeitamente seus momentos memoráveis (e sim, todos eles são memoráveis!) isso é um remédio, uma salvação. A sensação desconfortável de desligamento da realidade e o entorpecimento são redimidos ao tirar um “selfie”, ao fazer um check-in, ao avisar todo mundo na rede social que se está feliz...

O selfie pode ser o sintoma de uma sociedade composta por indivíduos narcisistas, individualistas e tarados por si mesmo que se “auto-objetificam” (como dizem algumas pesquisas) mas pode ser o próprio remédio; ao expor o ridículo da solidão de uma autofotografia e as rugas do passar inexorável tempo para o qual não há filtro ou edição que resolva.