Além da cela

Além da cela

A situação caótica e desumana dos presídios brasileiros reacendeu um debate muito antigo que, invariavelmente, reaparece carregado de raiva e de preconceito. Na raiz do problema estão as graves omissões do Estado e da própria sociedade que permitiram que facções do crime organizado passassem a controlar as cadeias. As autoridades e a sociedade gostariam de esquecer que existem presos sob a custódia do Estado. O estouro das rebeliões e das chacinas lembra os governos e os cidadãos que o problema persiste e continua à espera de solução. Seria bem mais lógico que o poder público investisse em educação, esporte e cultura, pois essa seria uma forma bem menos onerosa de diminuir a população carcerária. Afinal, um estudante (R$ 2.400,00 por mês) custa menos para o Estado do que um preso (R$ 3.500,00). Os presídios só entram na pauta nacional quando ocorrem rebeliões, época em que o governo renova os planos e as promessas, mas depois que a crise passa tudo volta a ser como antes.  O Brasil possui, hoje, 650 mil detentos e um déficit de 300 mil vagas no sistema penitenciário, sem contar o tanto de gente que já cometeu algum crime e ainda continua em liberdade.


Mesmo que houvesse maciços investimentos em educação, a criminalidade não seria zerada. O primeiro assassinato que se tem notícia remonta ao paraíso, quando Caim matou Abel e mesmo diante do onipresente criador negou a autoria do crime. Surgia a primeira causa para a promotoria criminal e para um advogado de defesa. De lá par cá, o homem evoluiu bastante, mas os crimes sempre fizeram parte da vida social, embora a sociedade só possa existir se houver o respeito e o cumprimento das regras. Freud avaliou que o ser humano comete crimes quando não consegue controlar os instintos. Sêneca considerava a ira humana a mola propulsora da criminalidade. Já Platão e Aristóteles relacionavam os delitos à situação econômica. Pela mesma linha seguiram Descartes, Francis Bacon, Tomas Morus e tantos outros que vincularam a criminalidade à desigualdade econômica. Para Hipócrates, o pai da medicina, o crime tem o componente da loucura, teoria que embasa o pensamento de famosos juristas criminais. “Nem o mais religioso e o mais temeroso dos homens, em sã consciência, pode assegurar que, tomado por violenta emoção, não será capaz de cometer um crime”. Essa frase, muito pronunciada nas sessões do júri, é um recado velado dos advogados criminalistas para todos que desejam a morte dos que infringiram a lei, pois até mesmo você ou algum parente próximo não está livre de, um dia, perder completamente a razão e cometer uma loucura.


As razões da criminalidade também são um mistério antigo. Se todos os pobres fossem criminosos, a vida em sociedade já teria se inviabilizado faz tempo e a honestidade teria sucumbido definitivamente. Se a pobreza fosse a causa maior e única da criminalidade, o Piauí teria os maiores índices de ocorrência de roubos, furtos e homicídios do país, mas as maiores taxas estão concentradas em estados ricos como São Paulo.


De forma torpe, as rebeliões fazem com que o problema das penitenciárias seja incluído no debate político. Nas campanhas presidenciais, pouco ou nada se fala sobre isso. O mesmo ocorreu na última eleição para prefeito de Ribeirão Preto. Embora o sistema prisional seja de responsabilidade dos governos dos estados e da União, as cadeias, presídios e penitenciárias estão localizados nas cidades. A questão carcerária é encarada pelo viés da hipocrisia, do distanciamento e da omissão. Em todos os municípios, sem exceção, pessoas cometem crimes graves e de menor relevância, mas nenhuma cidade aceita de bom grado a construção de cadeias e de penitenciárias em seu território.
Enquanto isso, a situação carcerária precisa entrar na pauta com o cumprimento de penas sem regalias. No momento, para dar uma esvaziada nos presídios e no problema, ganha força no Judiciário uma perigosa tendência de “flexibilizar” a interpretação da lei para soltar o maior número de presos ou fazer a progressão do regime dos detentos em direção à liberdade. Não são poucos os casos noticiados pela imprensa de presos que ganharam indevidamente o benefício da liberdade e voltaram a delinquir. A diferença entre a vida em sociedade e a barbárie está no cumprimento das regras. Se as leis são duras ou brandas demais, cabe à sociedade, através de seus representantes, avaliar e reformular. Só o Estado pode e deve usar a força para impedir chacinas e que facções criminosas administrem presídios. O cidadão comum precisa perceber a importância desse debate, pois, embora não pareça, a segurança individual está diretamente relacionada à estabilidade das cadeias e das penitenciárias. 

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