O julgamento de Fidel

O julgamento de Fidel

O século XX não teve uma figura tão emblemática como o líder revolucionário Fidel Castro. Governando um país pequeno e inexpressivo na economia mundial, poucos líderes despertaram tanta admiração e tanto ódio. Para fazer uma análise contextualizada de grandes artistas, intelectuais e líderes mundiais, sejam guerrilheiros ou não, o julgamento precisa ocorrer à luz daquela história. Há que se atentar às circunstâncias determinantes dos fatos, tão bem explicitadas pelo pensador e político espanhol Ortega y Gasset. Líderes como Che Guevara ou Fidel Castro, por exemplo, precisam ser julgados sob o enfoque da realidade latino-americana da primeira metade do Século XX, onde predominavam sociedades oprimidas, exploradas por séculos de colonização que resultaram no empobrecimento das populações urbanas e na dizimação das tribos indígenas. Foi contra esse cenário de miséria e de exploração que Che Guevara e Fidel Castro se insurgiram. 

O maniqueísmo divide o mundo entre o bem e o mal, mas se esse ângulo simplista examinasse a revolução cubana de 1959, Fidel Castro entraria para a história na condição de um libertador que livrou o povo das garras de um ditador sanguinário. Fulgêncio Batista transformou a charmosa ilha, subjugada por séculos de dominação espanhola, em um antro de jogatina e de prostituição para as elites americanas. Do desembarque na Sierra Maestra até a chegada ao poder, em 1º de janeiro de 1959, Fidel e seus revolucionários contaram com um crescente e amplo apoio popular, caso contrário, a revolução não teria triunfado. Nem por isso, merecem ser canonizados. 

Hoje, com o tempo distante, fica fácil concluir que a revolução cubana não deu certo e que resultou numa tirania, quase nos mesmos moldes daquela que derrubou. No entanto, nos anos 60, 70 e até boa parte dos anos 80, a quase solitária experiência cubana em busca de uma nova forma de organização social e política seduziu intelectuais e pessoas de países distantes. Naquela época, o mundo ainda sonhava com alguma utopia que resgatasse a igualdade disseminada pela revolução francesa. O socialismo marxista ainda despertava o interesse de intelectuais expressivos e conquistava a adesão de parcelas numerosas da população mundial. Hoje, os tempos mudaram e as utopias estão desaparecidas. A humanidade parece mais conformada com o consumismo imposto pelo capitalismo globalizado, com a destruição crescente do meio ambiente e com as guerras que alimentam a indústria bélica e colocam milhões de pessoas na condição de refugiados. As ideologias coletivas, nesse barco estão as que possuem uma concepção lógica ou mesmo as desprovidas de fundamento, cederam lugar a um mosaico de aspirações individuais. O discurso da revolução perdeu o sentido e hoje soa meio fora de moda. No Brasil, por exemplo, desde que a “fase democrática” foi consolidada o povo não tem feito outra coisa a não ser se defender dos ataques das elites partidárias que se revezam no poder. 

A pequena ilha do Caribe tornou-se peça-chave da guerra fria. Pode ser que essa tenha sido a mais forte circunstância que jogou Fidel Castro nos braços do comunismo russo, embora essa não fosse a sua tendência inicial. Depois da revolução, o líder cubano se tornou comunista, mas, até então, se movia pelo ideal de libertar um povo sofrido. Seu maior erro foi achar que a revolução era sua propriedade e que poderia ser o árbitro do bem e do mal, um porta-voz messiânico dos desejos e das aspirações do povo cubano. Em nome dessa “ideologia” personalista, Fidel isolou Cuba do mundo e reprimiu com violência a dissidência política. Embora tenha se saído bem em questões sociais, como saúde e medicina, organismos internacionais estimam em 10 mil pessoas o número de desaparecidos e de presos políticos cubanos.

Fidel obteria um julgamento melhor da história se tivesse entregue os destinos da revolução aos cubanos há uns 40 anos. Não arcaria sozinho com os erros e acertos dos destinos do país e nem forçaria o povo a passar por tantas privações. Em vez disso, ficou cego pela própria verdade e optou por impor ao súditos uma perenidade de mais de meio século e uma sucessão sanguínea. Talvez as decepções com as experiências de esquerda, que até rouba o próprio povo quando chega ao poder, explique a ascensão mundial da direita, que hoje, sem escrúpulos, declara-se segregacionista, intolerante e ditatorial. No amplo e extremo espectro de quase 60 anos, que vai de Fidel Castro a Donald Trump, o mundo gira e dá voltas em busca da velha utopia, cada vez mais acuado e perdido entre as traições da esquerda e a reacionarismo cada vez mais explícito da extrema direita. 

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