Preciso te acordar!

Preciso te acordar!

Quem escreve sobre um filme tem que despertar o interesse sem dar uma de spoiler, aquele estraga prazer da modernidade que se deleita quando antecipa o conteúdo. O mundo de hoje está carregado de angústias, uma delas sempre afeta as pessoas em épocas distintas da vida. Onde será o fim da linha? Existe um algo mais ou precisamos nos restringir ao que está disponível? Geralmente, essas sensações aparecem quando algum sinal é emitido: uma cena na rua, o brotar de alguns fios de cabelos brancos ou a pausa para uma respiração mais profunda. 

A ficção científica do cinema sempre foi um terreno fértil, pois permite que diretores e roteiristas viajem pelo tempo, num pêndulo que ora anda para frente, ora anda para trás. Hoje, ninguém mais duvida de que a ficção científica de ontem torna-se a realidade de hoje. Foi assim com “1984”, “2001, uma Odisseia no Espaço”, “Guerra nas Estrelas”, e os recentes “Perdidos em Marte”, com Matt Damon, e em “Gravidade”, com Sandra Bullock. O filme “Passageiros”, em exibição nos cinemas de Ribeirão Preto, tem essa pegada futurista com inúmeras atividades humanas realizadas a partir do comando de voz ou do toque na tela touch screen, capaz de oferecer de alimentos frescos a uma cirurgia cardíaca.
Quem quer navegar por uma obra futurista, não pode se prender as explicações lógicas. Alguns críticos não conseguiram abstrair e pegaram pesado na análise do filme do diretor Morten Tyldum. A preocupação com o mundo funcional fica a cargo dos empreendedores do futuro que já inventaram a nuvem para guardar documentos, o imprescindível WhatsApp e, mais recentemente, o carro que estaciona sozinho.

Não dá para duvidar que lá por 2050, a coitada da Terra já estará bem exaurida com o aquecimento global, provavelmente com inúmeras catástrofes ambientais, sem falar da intolerância dos homens. Seguramente, estará superpovoada com mais de 9 bilhões de pessoas se espremendo, disputando água e alimentos em incontáveis conflitos. Será preciso abrir novos loteamentos no universo para acomodar tanta gente com conforto. O sistema capitalista só sobrevive se descobrir novos negócios para satisfazer desejos, assim, não será impossível que as agências de viagem vendam um pacote só de ida para um planeta novinho em folha, sem os vícios e as intolerâncias da sociedade atual. Lá, nesta terra promissora, os novos habitantes deixarão para trás as amarguras e os erros do passado e construirão uma vida nova. Essa viagem rumo a um novo mundo só tem um problema. O planeta redentor fica tão longe que o percurso até esse paraíso demora 120 anos. A única maneira para chegar até lá sem morrer ou envelhecer demais no trajeto é hibernando, ou seja, viajar dormindo, em casulos high-tecs, preservando as funções vitais para alcançar o destino com o frescor da idade do início da viagem.

Quem já comprou algum pacote turístico sabe que nem tudo sai conforme o prometido. A moderna espaçonave, à prova de intempéries da galáxia, deveria transportar os 5 mil passageiros que farão parte da nova colônia da Terra, em sono profundo, até o destino final, nessa longa viagem de mais de um século. Entretanto, uma falha corriqueira no timer, aquele relógio eletrônico que tem nos fornos de micro-ondas ou e em aparelhos eletrônicos, faz com que um dos passageiros acorde muito antes da hora. Com apenas 30 anos da viagem realizada, um engenheiro despertou. Em princípio, não há maiores problemas. A nave, equipada com piloto automático, possui tudo o que um ser humano precisa para sobrevier com conforto.  Restam duas dificuldades: esse personagem vai morrer no caminho, não verá a terra prometida e está condenado a viver na mais profunda solidão, mesmo que esteja cercado por todo o conforto do seu pequeno mundo.

Assim, o mecânico vivido pelo ator Cris Pratt se vê diante de um drama ético. Se Deus colocou Eva para viver ao lado de Adão, o engenheiro, no seu paraíso futurista, depois de desfrutar de toda a fartura que a nave oferece, fica entediado e pensa em acordar mais alguém para ajudar a encontrar uma saída ou mesmo para conviver pelos próximos 90 anos.  Depois de viver sozinho por mais de um ano,  o engenheiro se apaixona por uma escritora, mesmo que ela esteja dormindo em sono profundo. O amor brotou em outra dimensão. Ao ler o livro e rever flashes da vida da sua bela adormecida, interpretada pela Jennifer Lawrance, o engenheiro descobre que ambos possuem afinidades e fica tentado a despertar a escritora para ter a chance de viver o seu amor.  Todos os dias, num gesto que vai ficando mecânico ao longo da vida, bilhões de pessoas dormem e acordam. Muitos são solitários mesmo cercados por cinco mil pessoas. O filme promete mais do que entrega, mas levanta essa questão interessante. Afinal, acordar alguém que está dormindo sempre é algo desagradável, que deve ser evitado ao máximo, mas se fosse dado a você a chance única de despertar alguém para espantar a própria solidão e fazer companhia pelo resto da vida, quem você acordaria? 

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