Selecionados pela vida

Selecionados pela vida

Mais uma noite de Natal se aproximava. Bilhões de pessoas depositavam mensagens de esperança em um ano melhor. De repente, uma notícia inesperada quebra o clima. Perto de uma estação de metrô, em São Paulo, dois rapazes, do tipo “fortōes” bem nutridos, com vinte e poucos anos, perseguem um travesti apelidado de Brasil. Um ambulante, Luiz Carlos, conhecido como Índio, sai em defesa de Brasil e também é perseguido pelos rapazes. Sem trilha sonora natalina, o filme da barbárie cotidiana prossegue dentro da estação. O ambulante tenta fugir dos dois rapazes, cai no chão e começa a ser espancado. As câmeras do metrô registram a violência desmedida. De forma covarde, além dos dois contra um, os rapazes agridem o ambulante mesmo quando ele está caído, desacordado, inerte, sem nenhuma chance de defesa. A vítima recebe inúmeros pontapés, socos em sequência, não resiste às agressões e morre. Quem observa as cenas, repetidas várias vezes na TV, fica impressionado com a raiva e o ódio desmedidos. Os rapazes chegam a repetir as agressões duas vezes. Alguns dias depois, os dois homicidas são presos. Apesar das imagens e dos depoimentos de testemunhas que presenciaram o crime bárbaro, o advogado dos agressores apresenta a tese da legítima defesa.

No apagar das luzes de 2016, este foi o fato mais chocante que, por alguns dias, chamou a atenção da mídia e da opinião pública. Um crime como esse sempre vem carregado de ingredientes que sintetizam uma face do caos social atual. Há o preconceito inicial contra o travesti, a solidariedade humana expressa na coragem do ambulante, a covardia dos machões, a desfaçatez do advogado, a revolta da sociedade que desagua na impunidade que emergirá quando a Justiça, em alguns dias, provavelmente, mandar soltar os assassinos.

Um indignado colunista de jornal escreveu que o covarde assassinato descrito acima ilustra os tempos atuais, um mundo cada vez mais intolerante e violento, onde a força bruta, invariavelmente, vence. O nobre periodista ainda relacionou o fato a um mal fadado ano que relutou demais para terminar. Nas conversas informais, de fato, há um consenso popular de que 2016 não deixará saudade, mas seria injusto demais debitar na conta do ano passado todas as agruras do presente. As dificuldades econômicas atuais, por exemplo, iniciaram-se em uma distante eleição de 2014. O endividamento desproporcional de estados e de prefeituras não começou no ano passado. Não há dúvidas de que algumas das faturas dos equívocos do passado recente foram cobradas no ano que terminou e continuarão sendo executadas em 2017.

Nem tampouco se pode dizer que os dias atuais são mais violentos que os de outrora. A barbárie sempre foi um componente do comportamento humano; o que mudou foi a exposição reveladora das câmeras e os novos espaços de denúncias criados nas redes sociais. O ano de 2016 ficará marcado pela ganância de um piloto boliviano que provocou a maior tragédia envolvendo um time de futebol. Contudo, nesse mesmo ano amaldiçoado pela grande maioria, milhares de pilotos foram cônscios de suas responsabilidades e transportaram milhões de pessoas em segurança. Em Santa Maria, em janeiro de 2014, a mesma ganância irresponsável do piloto da Lamia fechou todas as saídas de uma boate, condenando à morte 242 estudantes universitários.

A interpretação sensata da vida exige um equilíbrio apurado. Não se pode ser pessimista demais para superestimar dificuldades, nem tampouco se deixar contaminar pelo otimismo inocente que embota o senso crítico e o juízo de valor. Isso vale, por exemplo, para as redes sociais que não tornaram o mundo mais racista e intolerante. As novas mídias apenas expuseram uma face sombria do ser humano, um tanto desconhecida, que ainda precisa ser confrontada pela razão para evoluir de forma consciente. No crime do metrô, a intolerância e a solidariedade estavam presentes. No momento seguinte, na prisão dos assassinos, apareceram a eficiência policial, a indignação popular e a falsidade na tentativa de escamotear o crime.

Ao contrário das aparências, não há um determinismo fatalista que leva para um lado ou para o outro. A vida e os fatos não estão interligados a um roteiro prescrito que encaminha a um corredor único do destino. O momento porvir não está, necessariamente, contaminado pelo anterior. Sempre há um espaço para agir, para interagir, para mudar, para retroceder e para avançar. O duro jogo da existência não está ganho e nem perdido. Tem de ser bem disputado dia a dia. Essa, em síntese, é a dialética da vida que se traduz por contradições a serem vencidas. Somos espécies únicas, raras, sobreviventes selecionados da raça humana entre incalculáveis possibilidades. Nossas vidas e todos os nossos atos carregam essa imensa responsabilidade: praticar o bem, ser solidário, amar o próximo como a si mesmo para ser feliz, não de forma isolada, mas em conjunto com todas as pessoas que nos cercam. Um bom 2017 para todos nós. 

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