Não desliguem suas crianças!

Não desliguem suas crianças!

Há alguns dias presenciei uma situação que me fez pensar bastante sobre o caminho que estamos trilhando na criação de nossas crianças. Eu estava em um salão de beleza não muito focada em nada, afinal de contas este era um daqueles momentos em que você se dá um tempinho para si mesma e para se cuidar. No entanto, uma linda menina por volta de 6 anos roubou minha atenção de uma forma inexplicável, não sendo mais  possível prestar atenção em qualquer outra coisa que não nela.

Era uma garotinha extremamente esperta, atenta, viva, voraz, exploradora do ambiente como ninguém. Ia de um lado para o outro saltitante, alegre, observando cada minúcia do que estava a sua disposição naquele salão. Vez ou outra, com cuidado, escolhia um dentre os vários esmaltes e fazia uma pergunta perspicaz para a manicure, demonstrando muito interesse em entender como se passava o esmalte ou em saber que unhas eram aquelas que estavam à mostra para teste de cor e também perguntava como as pessoas pediam para lixar a unha, se em formato quadrado ou redondo e, assim, ia aproveitando cada estímulo daquele ambiente e esgotando todas suas dúvidas, o que parecia abrir um leque ainda maior de pensamentos e curiosidades sobre cada pequena coisa, que de início talvez não parecesse importante, porém aos olhos daquele pequeno ser, curioso, esperando uma resposta, tornava-se realmente interessante.

Contudo, desde que ela entrou pela porta percebi que havia um clima tenso entre ela e sua mãe. Esta, por sua vez, bem diferente da garotinha, parecia muito cansada, distante, pouco aberta para se comunicar com sua filha e para estimular a sede de respostas e interesses da pequena. A linda menina, no entanto, parecia ter persistência para testar e continuar testando a possibilidade de diálogo, carinho e afeto com sua mãe. Direcionava a ela seu olhar cheio de amor, ora lhe fazia carinho no cabelo e no braço e continuava seu inquérito sobre o ambiente do salão, sobre as cadeiras que as manicures usavam e se mostrava muito empolgada para experimentar cada uma dessas pequenas coisas que estavam ali a sua disposição. A mãe, no entanto, apenas dizia:"Para de correr", "para de falar um pouco", "para de fazer tantas perguntas", "Se você estragar alguma coisa, você vai ver", "ai de você se quebrar algo", e assim foi durante todo o período em que eu estava ali presenciando aquela cena.

Após essas falas, a filha retrucou: "Mas mãe, você me trouxe para cá, é o que tem pra fazer aqui". Pensei, em silêncio, o quanto aquela menina era especial e sábia. Afinal, ela estava dizendo a verdade para sua mãe, pois ela havia sido levada para um ambiente pouco adequado para uma criança de sua idade e, já que ali estava, tentava (e como tentava) pelo menos tirar proveito do que havia de estímulos. A mãe, ao ouvir o que a filha dissera, logo lhe ofereceu o celular, dizendo em alto e bom tom que era pra ela sossegar um pouco. A filha insistiu que não era aquilo que ela desejava, mostrando para sua mãe que havia outros inúmeros estímulos mais legais e reais ali próximo a ela no presente e, por isso, não precisava e não queria o celular. A mãe, entretanto, insistia que ela assistisse algo e ficasse quieta.

Em determinado momento, em que a pequena garotinha corajosamente continuava com suas perguntas e argumentações interessantíssimas (o que me fazia encantar ainda mais por ela), uma manicure questionou: "Onde que desliga hein?" Nesse momento queria gritar "NÃO! Não desliguem! Há tanto para sair aí de dentro, tanto interesse, espontaneidade, curiosidade, vontade de conhecer o mundo e tudo de curioso que existe nele, não façam isso com essa menina linda!" Me mantive calada ouvindo a resposta da mãe: "Você tá vendo? Acho que veio com defeito, não desliga nunca essa menina". Todos riam com a resposta da mãe e, por dentro, minha vontade era de chorar por não compreenderem o quanto aquilo que estava acontecendo era especial e o quanto todo esse jeito verdadeiro e espontâneo pode sim ser desligado pouco a pouco com interações como estas. Eu não me aguentei e disse que era manhã ainda, estava muito cedo para desligar e afirmei que havia muita energia ali para ser aproveitada. A mãe me olhou como se não entendesse o que eu queria dizer, visto que parecia já tão sem forças para alimentar e estimular a energia de sua filha. A pequena, por sua vez, depois de tanto tentar não sucumbir ao desejo de sua mãe, acabou por aceitar o que lhe estava sendo oferecido.

Havia tanto para ser compartilhado, ensinado e aprendido naquele momento, mas a mãe preferiu que sua filha sossegasse com o uso do celular. No entanto, percebia que embora os seus olhos estivessem voltados para a tela do celular, às vezes a garotinha ainda espreitava o ambiente e as pessoas que por ali passavam, não querendo perder tudo o que acontecia. Enquanto percebia sua mãe diminuindo os traços de irritabilidade no rosto, eu estava na torcida de que aquele celular não fosse sedutor o suficiente para sossegar aquela mente em ebulição, cheia de vontades, questionamentos e curiosidades.  

Saindo do salão não consegui parar de pensar sobre o que havia presenciado, o que me estimulou a escrever sobre este assunto. A intenção deste texto não é procurar culpados, muito menos apontar o dedo para a mãe ou para o uso do celular, mas sim promover reflexão sobre o que vem acontecendo cada dia mais em relação às nossas crianças e, que talvez pareçam bobas ou pequenas situações como estas, porém podem ter um impacto muito grande na vida dessa crianças e nos futuros adultos que se tornarão.

Sabe-se que, ao nascer, a criança apresenta um potencial muito forte para o desenvolvimento de sua verdadeira identidade e, conforme cresce vai adquirindo certas habilidades como  pensar, resolver problemas e criar, mas para isso é necessário um ambiente facilitador, que aceite, estimule e não reprima esse potencial. Portanto, no início, é responsabilidade da família e posteriormente também da escola e comunidade proporcionar à criança um ambiente favorável para facilitar suas primeiras experiências criativas.

No entanto, o que vemos no dia a dia são situações como a relatada em que a criança é primeiramente levada para um ambiente pouco adequado para sua idade e, ainda é esperado dela o comportamento de adulto. Perde-se totalmente o referencial de que ela é uma CRIANÇA, que tem apenas 6 anos e que é completamente normal e até desejável que tenha bastante energia e vontade de conhecer o mundo.  Além disso,  as crianças tem sido submetidas a situações em que ouvem mais "nãos" do que "sim, pode perguntar" "isso, seja curiosa" e ainda são expostas a falas carregadas de ameaça, o que passa uma imagem para a criança de que o que ela está fazendo pode ser algo feio, errado ou inadequado. No caso da linda garotinha, ela não estava fazendo nada de errado, em nenhum momento parecia que ia estragar ou quebrar algo do salão, pelo contrário, era extremamente cuidadosa quando pegava algum esmalte ou quando se sentava na cadeira das manicures.

São em situações como essa, então, que as crianças aprendem desde cedo a desconfiar de sua espontaneidade, de sua curiosidade e passam a inibir sua iniciativa, a conter seu desejo de respostas, de explicações, o que pode refletir na espontaneidade com que lida com as situações e com as pessoas não só na infância, mas também no futuro. Então, me pergunto, como esperar que seus filhos se tornem pessoas criativas e profissionais inusitados se no início de suas vidas essas características foram tolhidas? Como exigir que sejam pessoas seguras e decididas se quando demonstraram curiosidade e fizeram questionamentos não obtiveram respostas e sim meios tecnológicos para sossegar a mente que estava sedenta por interação?

Para finalizar, gostaria de dizer que entendo que ser pai e mãe não é fácil, é uma tarefa árdua que envolve vários fatores, como o excesso de atividades e funções assumidas, o ter que dar conta do trabalho, das funções de casa, da educação dos filhos e muitos outros pontos que poderíamos discorrer aqui, no entanto a intenção hoje é alertar para que estejamos mais disponíveis para as nossas crianças e que possamos alimentar sua fome e sede de perguntas, dúvidas e curiosidades, pois quando o fazemos contribuímos com o desenvolvimento de uma identidade autêntica, espontânea e verdadeira, que terá a força de conquistar o que desejar. Então, peço-lhes, por favor, não desliguem suas crianças!

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