A superação da intolerância

A superação da intolerância

Em comemoração ao dia do médico, 18 de outubro, os depoimentos de José Onildo Contel, de Vicente Coutinho e de Américo Sakamoto relembram os caminhos que a Medicina percorreu para ajudar pacientes por

Há tempos, a ciência, intrigada com o preconceito, faz pesquisas para identificar se há razões evolutivas ou biológicas que expliquem esse tipo de comportamento. Alguns especialistas afirmam que se trata de um conceito aprendido, outros dizem que isso teve origem na hierarquização entre as raças. Outra linha de estudo aponta para a origem neurológica, por meio de uma estrutura cerebral chamada amígdala, ligada a sensações de medo e de ansiedade, ou relacionado ao que uma pessoa vê em outra. Existe ainda o medo do desconhecido, o racismo e a intolerância a certas doenças, como os transtornos mentais, a hanseníase, a Aids, a epilepsia, a herpes, entre tantas outras que estigmatizam seus portadores.

Em Ribeirão Preto, três profissionais com experiências de vidas bem diferentes, compartilham a paixão pela Medicina e as dificuldades que também marcaram suas vidas de forma incisiva. Além de cuidar da saúde das pessoas, os médicos Vicente Coutinho, José Onildo Betioli Contel e Américo Ceiki Sakamoto também tiveram que vencer barreiras nas áreas da Medicina que escolheram para fazer carreira. Muitas vezes, esses obstáculos surgiram na Universidade, em ambientes de trabalho ou dentro das próprias famílias dos portadores de doenças que eram mal vistas pela sociedade.

Para o hematologista Coutinho, o preconceito relacionado a qualquer moléstia infectocontagiosa, em especial ao HIV (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida - Aids), se manifesta em todas as atitudes desabonadoras, crenças,
comportamentos e tratos diferenciados a pessoas suspeitas ou portadoras do vírus, tratamento esse extensivo a familiares, a grupos sociais e a comunidades. “Atitudes discriminatórias e preconceituosas são características do ser humano, involuntárias, agravadas pela ignorância, pelo medo e até como forma proteção”, observa o médico, lembrando do preconceito que existia no passado em relação à hanseníase ou lepra.

Segundo Coutinho, muitos pacientes portadores do vírus, numa atitude negativa, por medo da discriminação, autopunição por ter adquirido a doença em comportamento irresponsável ou por compaixão entram em um processo de vitimização. Essas pessoas se recolhem e sofrem duas consequências: manter-se infectante, o que amplia a epidemia, e permitir o crescimento da carga viral, o que dificulta o tratamento da doença. “É fundamental divulgar e conscientizar que hoje o atendimento gratuito, confidencial e eficaz está disponível na rede pública da Secretaria Municipal de Saúde”, frisa o hematologista.

Em Ribeirão Preto, o Hospital das Clínicas e mais cinco postos possuem equipes multiprofissionais especializadas e oferecem atendimento acolhedor, esclarecedor, compreensivo e profissional. Dessa forma, uma relação de confiança se estabelece, assegurando que com adesão contínua ao tratamento o portador não se tornará mais infectante, e não haverá progressão da doença. Coutinho explica que o teste rápido para diagnóstico sorológico é disponibilizado de forma gratuita e confidencial. “Quanto mais cedo começar o tratamento melhor. Dessa forma, o indivíduo poderá ter uma vida social, amorosa e profissional plena e de qualidade”, orienta o médico.

Os desafios da epilepsia

Sensibilizado pelos desafios enfrentados no dia a dia, no diagnóstico e no tratamento de pacientes com epilepsia nos ambulatórios, Américo Sakamoto revela que o interesse e a opção pelas áreas de epilepsia e de neurofisiologia clínica se consolidaram no final da residência médica, influenciado pelo ambiente do Departamento de Neurologia da Faculdade de Medicina que, à época, já tinha destaque nacional nessas áreas. Assim, incentivado pelos professores Michel Lison e José Speciali decidiu direcionar os esforços às áreas de epileptologia e de eletrencefalografia, buscando, depois, complementar a formação científica em centros do exterior.

A epilepsia atinge aproximadamente de 60 a 70 milhões de indivíduos, sendo que 90% deles vivem em países em desenvolvimento. O Brasil possui em torno de 2 milhões de pessoas com epilepsia, sendo que quase um terço delas são fármaco-resistentes, ou seja, sua doença não é controlada com medicamentos antiepilépticos. Sakamoto observa que a eplepsia ainda é muito estigmatizada e que acarreta, quando não controlada, grande sofrimento e limitações aos pacientes e familiares, impactando negativamente a qualidade de vida. “Atualmente, o tratamento cirúrgico é mais difundido, mas ainda é menos adotado do que em outros países”, frisa o médico

Américo Sakamoto desenvolveu a carreira acadêmica na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto e teve o privilégio de planejar, instalar e dirigir o Centro de Cirurgia de Epilepsia do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto (Cirep). “Foi uma grande realização profissional participar e coordenar uma equipe multiprofissional, envolvendo cerca de 40 profissionais qualificados. Compartilhamos todas as etapas e as complexas decisões envolvidas na seleção dos candidatos à cirurgia de epilepsia. Essas experiências reforçam nossa crença no comprometimento das pessoas e no trabalho coletivo em favor de uma causa. Ver o resultado das cirurgias e o impacto positivo na qualidade de vida de milhares de pessoas atendidas no Centro deixam a sensação de dever cumprido”, avalia o médico.

Atraso no tratamento

Por escolher a Psiquiatria, José Onildo foi tratado com intolerância pelos colegas de classe e sofreu a incompreensão dos pais. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o preconceito atrasa a procura por tratamento. Para o médico, a escolha pela área psiquiátrica ocorreu no quarto ano da faculdade de Medicina, quando recebeu para tratamento uma paciente de 17 anos com diagnóstico que, hoje, seria de transtorno de ansiedade. “Ela foi pedida em casamento e estava em conflito entre se casar ou continuar os estudos. Resolvido o drama teve uma melhora excelente e eu me decidi por ser um especialista em Psiquiatria. Assim, eu confirmava na prática os ensinamentos das aulas teóricas do professor Hernan Davanzo no curso de neuroses, em 1962”, relembra Onildo.

A opção pela carreira se concretizou, em 1963, com a bolsa de monitor de Psiquiatria e sob a orientação de David Azoubel Neto, quando fizeram um projeto para estudar pacientes psicóticos internados no Hospital Santa Teresa. “Mal sabia eu que, dez anos depois, em 1974, faria meu doutorado no mesmo Hospital, agora como professor contratado em tempo integral e dedicação exclusiva à docência e pesquisa da FMRP-USP, orientado pelo professor Jorge Arminbrust de Lima Figueiredo”, conta.

A discriminação, segundo ele, existia até por parte dos colegas, sob a forma de brincadeiras de mau gosto, sobre loucos e loucura. “Também percebia o silêncio da minha família sobre minha escolha como preconceito. A Psiquiatria era um sinônimo de asilo do doente mental nos hospitais psiquiátricos da época, existentes nas grandes cidades brasileiras. Psiquiatria à época, era sinônimo de Santa Teresa”, explica o médico. Os avanços para vencer as barreiras começaram, por volta de 1977, com a inauguração do Hospital das Clínicas. Onildo levou a Psiquiatria de Ribeirão Preto do asilo no Santa Teresa para o Hospital Geral Universitário.

Hoje, o psiquiatra revela que a classe médica está mais bem preparada para lidar com a doença mental. Existem nas farmácias medicamentos psicofarmacológicos eficientes que os clínicos podem receitar e, muitas vezes, naqueles casos menos complicados, podem resolver o problema. “Os programas governamentais deixam à disposição da população fármacos essenciais para o tratamento da maioria dos transtornos psiquiátricos, em especial dos mais graves. Essas substâncias bem receitadas e tomadas corretamente podem prevenir novas internações”, avalia Onildo.

Vicente Coutinho

Nascido em Guapiaçu, na época distrito de São José do Rio Preto, veio para Ribeirão Preto em 1958. Em 1959, ingressou na Faculdade de Medicina da USP. Em 1966, foi nomeado professor assistente no Departamento de Clínica Médica da Instituição. Logo se casou com Maria Aparecida Assirati, que o acompanha até hoje, teve três filhos, uma arquiteta e dois médicos. Em 1970, fez especialização na Inglaterra e de lá trouxe novos conhecimentos em Hematologia e Hemoterapia. Contribuiu para a formação de muitos pesquisadores e docentes, e milhares de alunos médicos, até a sua aposentadoria em 2001. Fundou sua clínica particular em 1980 e atendeu mais de 25 mil pacientes até hoje. Também desenvolveu o Laboratório de Análises Clínicas e Hematologia para dar suporte à clínica e acesso de medicina laboratorial à comunidade. Ao longo da carreira fez dezenas de palestras dedicadas principalmente aos jovens e aos adolescentes.

Américo Ceiki Sakamoto

Professor de Neurologia do Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-USP é também diretor do Cirep do Hospital das Clínicas (HC). Médico neurologista formado pela XIX turma da Medicina da USP, fez residência médica em Neurologia e Neurofisiologia Clínica no HC, doutorado em Neurologia pela Faculdade de Medicina da USP, pós-doutorado-I na Cleveland Clinic, Cleveland, nos Estados Unidos e pós-doutorado-II no Epilepsy Center Bethel, Bielefeld, na Alemanha. Depois de implantar o Cirep com apoio do neurocirurgião, João Alberto Assirati Júnior, junto com outros colegas brasileiros fundou outros dois centros de cirurgia de epilepsia na capital paulista: o Centro de Epilepsia do Hospital Alemão Oswaldo Cruz (Cepisp) e a Unidade de Pesquisa, Ensino e Tratamento das Epilepsias da Escola Paulista de Medicina (Inipete).

José Onildo Betioli Contel

Professor de psiquiatria e pioneiro na instalação de importantes serviços em Ribeirão Preto. Em sua tese de doutorado, em 1974, descobriu que 57% da população de 1.111 pacientes do Hospital Santa Teresa não precisavam permanecer internados. Participou da instalação de ambulatórios regionais, do Hospital Dia, de atendimento de emergência, de enfermaria e do Serviço de Interconsulta de Psiquiatria Comunitária. Fez pós-doutorado em Psiquiatria de Hospital Geral na Universidade de Michigan, em Ann Arbor, nos Estados Unidos em 1976-1978. Atuou no Hospital Dia por mais de 50 anos, evitando tirar o paciente da comunidade e envolvendo a família no tratamento. Aos 76 anos, continua trabalhando como professor de Psiquiatria na Faculdade de Medicina da Unaerp. Para Onildo, é estimulante o desafio de ensinar psiquiatria para jovens que poderiam ser seus netos.

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