Carreira cinematográfica

Carreira cinematográfica

Em entrevista concedida a Edgard de Castro, o diretor André Ristum revela como foi o início na Europa e lembra a experiência que teve ao lado de grandes nomes da indústria cinematográfica

No dia 5 de março, André Ristum esteve em Ribeirão Preto para participar do “Encontro de Cinema”. O filme exibido durante o evento, “Meu país”, é o primeiro longa metragem da carreira do cineasta, que viveu na cidade durante a juventude e tem um papel significativo na evolução da indústria audiovisual local. Foi um dos fundadores do Núcleo de Cinema, hoje Estúdios Kaiser, e realizou diversas produções na região, como “Pobres Por Um Dia” e “Homem Voa?”, curtas que conquistaram o público e a crítica. Em breve, mais um trabalho será desenvolvido aqui: a série “Eldorado – A Saga do Café”, com estreia prevista para 2017. Em todos esses projetos, André contou com a colaboração de Edgard de Castro. A parceria entre o diretor e o produtor de cinema vem de longa data e tem rendido bons frutos. Durante a rápida visita, os dois se encontraram para relembrar o passado e alinhar planos para o futuro. O resultado pode ser conferido na entrevista abaixo, que foi acompanhada pela jornalista Paula Zuliani.

Edgard: Filho de brasileiros exilados na Europa durante a ditadura militar, você nasceu em Londres e foi criado em Roma. Aos 16 anos, escolheu ser brasileiro e se mudou para a casa da avó, em Ribeirão Preto. Por que essa opção?
André: Sempre tive um fascínio pelo Brasil, talvez embalado pelo sentimento geral em casa. Tanto os meus pais, Tezzy Jemma e Jirges Ristum, quanto os amigos que nos visitavam, mencionavam o país e suas virtudes com muita saudade. Assim que pude, quis vir para cá e não me arrependi. Construí aqui algo que talvez não tivesse conseguido na Itália. Desde o começo da década de 90, vivemos uma fase produtiva para o cinema brasileiro, que só cresce. Na Itália, infelizmente, os últimos anos não foram tão fáceis.

Edgard: O golpe de 1964 mudou a vida de seus pais e, consequentemente, a sua. Atualmente, o Brasil passa por uma crise política e já há manifestações saudosistas do regime militar. Como você encara isso?
André: Sem dúvida, sou quem sou por causa do golpe militar. Por conhecer razoavelmente o que se passou na época, considero essas manifestações totalmente absurdas. Toda crítica e forma de protesto são válidas e necessárias dentro de um regime democrático. Porém, evocar com saudosismo um período tão nefasto da história do país mostra total desconhecimento do que de fato ocorreu ou ausência de bom senso.

Edgard: Você cresceu frequentando os sets de filmagens, completamente envolvido nesse universo. No entanto, na hora de escolher uma carreira, foi estudar administração de empresas. Cinema, na época, não parecia uma profissão séria?
André: Na verdade, a questão não passava pela seriedade, mas pela estabilidade. O cinema era uma profissão fascinante, mas muito sujeita a altos e baixos, dependente da viabilidade de determinados projetos para acontecer. Morando em Milão, tive oportunidade de conhecer uma dupla de produtores amigos do meu padrasto, Ivan Isola, que me levaram para estagiar na empresa deles. Naqueles meses, vi que o cinema, como negócio, podia ser algo mais concreto. Assim, aos poucos, fui seduzido e acabei mudando de rumo.

Edgard: Sua estreia foi trabalhando com o grande cineasta Bernardo Bertolucci. Como conseguiu essa chance e o que guardou dessa experiência, incluindo o contato com renomados atores, como Jeremy Irons?
André: Conheci Bertolucci na infância, pois ele era amigo do meu pai. Já trabalhava no meio desde o começo dos anos 90, em pequenas produções, quando houve uma movimentação para que eu participasse do filme “O céu que nos protege”, mas acabou não dando certo. Aí veio a chance de integrar a equipe de “Beleza Roubada”. Ficar três meses ao lado desse mestre foi a melhor escola que poderia ter. Aprendi muito, tanto como ser humano quanto como profissional. A maneira com que ele se relaciona com todos no set me influenciou demais. Conviver, diariamente, com atores como Jeremy Irons, Jean Marais, Stefania Sandrelli, Liv Tyler, Rachel Weisz e Joe Fiennes, também foi essencial. Logo cedo, pude entender a importância da interação humana no processo de filmagem. Assim, consegui encarar esse desafio com mais tranquilidade.

Edgard: Depois de “Beleza Roubada”, foi assistente de direção de Rob Cohen no filme de ação norte-americano “Daylight”, com Sylvester Stallone. Essa mudança de escola cinematográfica teve um impacto interessante?
André: Tive a oportunidade de ver, do lado de dentro, como funciona uma superprodução americana. Foi uma experiência muito válida. Um filme com método e estrutura totalmente diferentes do que eu havia trabalhado. A relação no set também tinha outra dinâmica. De todo modo, quanto a isso, o meu aprendizado já tinha sido garantido com o Bertolucci.

Edgard: De volta ao Brasil, você dirigiu “Pobres Por Um Dia”, curta gravado em Ribeirão Preto, e se tornou um dos fundadores do Núcleo de Cinema da cidade, que, hoje, leva o nome de Estúdios Kaiser. Como foi filmar no interior paulista, em um lugar sem tradição na área, depois da sua passagem pelo cinema europeu e hollywoodiano? Quais foram as principais dificuldades por aqui?
André: Cheguei da Europa com uma rica bagagem e consegui aplicar, nesse primeiro projeto, diversos dos ensinamentos adquiridos. Alguns membros chave da equipe, como diretor de fotografia, diretor de produção, maquinistas e eletricistas, vieram de São Paulo. Esse time foi reforçado por profissionais extremamente dedicados aqui de Ribeirão Preto. O resultado dessa combinação foi bastante interessante, uma experiência gratificante. A distância de um grande centro, como São Paulo, onde estão todas as estruturas de locação de equipamento e finalização, talvez tenha sido a maior dificuldade. Tivemos que trazer mais material do que o necessário para a cidade e demoramos além do esperado para ver o conteúdo filmado, mas, no fim, deu tudo certo.

Edgard: Trabalhamos juntos no filme “Homem Voa?”, curta que conta a história de Santos Dumont. Como se envolveu no projeto e como foi levar o nome do pai da aviação para o Brasil e para o exterior?
André: “Homem voa?” nasceu quase junto com o Núcleo de Cinema. Nas nossas primeiras reuniões, lembro-me de você dizendo que, para sermos, de fato, um núcleo de cinema, precisávamos fazer um filme. Por conta do centenário da dirigibilidade, que se aproximava, surgiu a ideia de homenagear o Santos Dumont. O curta metragem alçou voos inesperados, sendo selecionado em dezenas de festivais no Brasil e no exterior. As exibições na França, à ocasião do centenário, foram, para mim, o ponto alto.

Edgard: No seu primeiro longa metragem, “Meu País”, conseguiu reunir um elenco incrível formado por Rodrigo Santoro, Cauã Reymond, Débora Falabella e Paulo José. O que mais pesou na escalação desses atores?
André: Quando comecei a pensar nessa escalação, minha preocupação era contar com atores talentosos, com a máxima qualidade para desenvolver aqueles papéis. Felizmente, minhas primeiras opções para os protagonistas deram certo. Acredito que a própria proposta do filme acabou os atraindo para o projeto. A relação no set foi incrível. O elenco estava muito concentrado no trabalho. Cada um do seu jeito, alguns mais introspectivos, outros mais extrovertidos, mas todos se doando de corpo e alma para a construção dos personagens. Houve uma intensa pesquisa e um vasto processo de preparação. O reflexo de tanta dedicação pode ser visto na tela, em atuações de grande sensibilidade. Foi um trabalho enriquecedor.

Edgard: A trama gira em torno de um reencontro familiar, da volta de um brasileiro ao país em busca de suas raízes. Por que escolheu esse assunto?
André: Essa história surgiu há muito tempo, desde quando comecei a pensar em fazer cinema. Saí da Itália e vim para o Brasil para conhecer as minhas raízes. Esse momento pessoal é uma espécie de inspiração, a semente deste filme. A história do personagem não é a minha, mas, sem dúvida, tem bastante da minha experiência de vida ali.

Edgard: Você acabou de rodar “O outro lado do paraíso”, em Brasília, baseado no conto de Luiz Fernando Emediato. É uma história que relembra os tempos da ditadura, já explorada no filme que fizemos juntos, “Tempo de Resistência”. Você persegue o tema ou é o tema que lhe persegue?
André: Um pouco dos dois. No caso deste filme, a ideia original não é minha. Fui convidado para dirigir. Acabei seduzido e aceitando por conta da forte afinidade que tinha com dois assuntos presentes na narrativa: a relação pai e filho e a história do golpe, neste caso, contada através do ponto de vista de um menino com origem humilde.

Edgard: A obra mostra como o golpe militar influenciou a vida de um trabalhador em vez dos exemplos clássicos, que são o intelectual ou o artista. Essa condição também te atraiu?
André: Sim. No filme, mostramos esse acontecimento sob uma nova ótica. Contamos como o golpe afetou não só as pessoas que tinham certo envolvimento político, mas toda a população. Mesmo quem não tinha nada a ver com um lado ou com o outro, sofreu com as consequências desse ato. Na prática, a ditadura acabou desestruturando a construção de um país, deixando um atraso que carregamos até hoje.

Edgard: “O outro lado do paraíso” é um filme para ser exibido em festivais de cinema? Quais são as barreiras para entrar no circuito comercial?
André: Sem dúvida, esse é um filme para festivais. A estreia foi no Festival do Rio. Depois, passou na Mostra de São Paulo e, em março, teve sua primeira exibição internacional no prestigioso Festival de Guadalajara. “O outro lado do paraíso” foi, inclusive, o único longa metragem brasileiro de ficção na competição oficial. No segundo semestre, deve acontecer o lançamento comercial no Brasil, mas ainda sem data certa. Não é fácil entrar no circuito nacional. O espaço está bem reduzido. Entretanto, acredito no filme e na possibilidade de sucesso.

Edgard: Muito já se falou sobre a excelência da luz para o cinema que existe em Ribeirão Preto. É um mito ou realmente é especial filmar aqui? E em Brasília?
André: Acredito que as duas cidades têm características em comum: cores primárias fortes e um sol incrível que permite, quando bem usado, um brilho diferenciado à imagem. É importante ressaltar que sol em demasia não é benéfico para um filme. As primeiras e as últimas horas do dia são as que têm o efeito mais bonito, pois o sol atinge uma angulação ideal. Em determinados períodos do ano, a luminosidade também fica melhor, pois a incidência é menos vertical.

Edgard: Você está trabalhando com a premiada Gullane na produção da primeira temporada da série “Eldorado – A Saga do Café”, que terá como pano de fundo o ciclo dessa cultura na região de Ribeirão Preto. Como nasceu esse projeto? Quando poderemos ver a série na TV?
André: Trata-se de um sonho antigo, que você me apresentou há muito tempo e que viemos acalentando por vários anos, pensando nele no formato de longa metragem. Quando, há um ano, retomamos o projeto do Eldorado, tive a ideia de transformá-lo em uma série. Porém, para viabilizá-la, precisaríamos de parceiros de peso. Apresentamos o conteúdo para a produtora Gullane e eles se encantaram. Agora, a série vai sair. Planejamos produzir em 2016, dando destaque à cidade e à região. Ainda estamos em fase inicial de desenvolvimento, mas a previsão de estreia é para 2017.

Edgard: Além de “Eldorado”, tem outros projetos em andamento?
André: Sim, tenho dois. O primeiro é o meu novo longa metragem, intitulado “A voz do silêncio”. Trata-se de um filme que discute as relações humanas em uma grande cidade como São Paulo e como as pessoas se distanciaram dos afetos e dos sentimentos mais importantes. São vários personagens e as histórias se cruzam ao longo da trama. O segundo é uma comédia romântica, “De caso com o amor”, que estou escrevendo com minha mulher, Stephanie de Jongh. A obra será produzida pela Gullane. Depois de tantos dramas, finalmente uma comédia.

Edgard: Por lei, os canais pagos em operação no país têm de exibir três horas e 30 minutos de programação nacional por semana, em horário nobre. Metade do conteúdo deve ser feito por produtoras brasileiras independentes. Essa determinação foi positiva para o mercado?
André: Com certeza. Os canais pagos tiveram que estabelecer um relacionamento com as produtoras nacionais. Agora, eles não podem mais apenas importar conteúdo do exterior. Precisam de produtos nacionais inéditos na grade de programação. Portanto, essa lei abriu uma porta enorme para a produção independente e aqueceu sobremaneira a indústria audiovisual, que cresceu exponencialmente nos últimos anos.

Edgard: Como você analisa os projetos de captação de recursos para cinema no Brasil? Os incentivos são suficientes?
André: Na verdade, temos alguns sistemas de financiamento, que são os mecanismos federais e estaduais. Na esfera federal, a Lei do Audiovisual é suficiente, mas difícil de captar, pois depende de empresas que tenham um lucro elevado para poder angariar um valor considerável. Além disso, existe um receio de certas companhias, totalmente infundado, de apoiar filmes usando esses recursos por ser algo ligado ao Imposto de Renda devido. O mecanismo é incrível. Os investimentos são 100% deduzíveis do imposto a pagar. Há, ainda, o Fundo Setorial do Audiovisual, que mudou o cenário da produção, centralizando os grandes aportes na Agência Nacional de Cinema (Ancine) e no Fundo Setorial do Audiovisual. Esse sistema injetou valores expressivos na indústria, embora o acesso seja um pouco burocrático, o que acaba atravancando o processo produtivo. Do lado estadual, existe a Lei de Incentivo que abate do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) a pagar, mas este tem um limite baixo e esgota sempre antes do fim do ano. Seria interessante aumentar essa cota.

Edgard: Um mexicano, Alejandro Iñárritu, ganhou o Oscar 2015 com “Birdman”. Você costuma assistir aos filmes indicados? Qual a sua opinião sobre esse trabalho especificamente? O que falta aos filmes e aos cineastas brasileiros para alcançar esse reconhecimento da indústria norte-americana?
André: Normalmente, vejo quase todos os indicados ao Oscar. Gosto muito de “Birdman” pela profundidade do tema tratado e pela perícia técnica na realização. Nesse caso específico, é importante deixar claro que não se trata de uma obra mexicana. É uma produção americana que foi dirigida por um mexicano. Iñárritu é um profissional talentoso, que admiro desde seu primeiro filme, “Amores Perros”. Logo no início da carreira, optou por se mudar para Los Angeles e se estabeleceu por lá. Temos vários diretores brasileiros com atuação reconhecida em Hollywood, como Fernando Meirelles, Walter Salles, José Padilha, Vicente Amorim e Heitor Dhalia, entre outros. Talvez, a diferença seja que os mexicanos têm uma relação mais próxima com os Estados Unidos, geográfica e culturalmente. Isso faz com que, de alguma maneira, tenham acesso facilitado a esse mercado. De toda forma, o caminho está sendo trilhado e com certeza, em breve, teremos mais representantes nacionais nesse cenário.

Edgard: Para encerrar, três curiosidades: quem são seus cineastas favoritos atualmente? Qual ator ou atriz gostaria de dirigir? Dá para ganhar dinheiro com cinema no Brasil?
André: Aprecio a obra de vários cineastas. Posso citar alguns, de gêneros distintos, já que o meu gosto é bem variado: Paolo Sorrentino, Steve Mcqueen, Chris Nolan, Nicolas Winding Refn, Jean Pierre e Luc Dardenne. Quanto à segunda questão, sonhando alto, adoraria trabalhar com Al Pacino e Meryl Streep. Quem sabe um dia acontece. Por fim, se a pessoa tiver como objetivo ganhar dinheiro, sugiro que siga por outro caminho, mas, posso dizer que, com os mecanismos de financiamento existentes no país e com a abertura para o mercado televisivo, é possível viver de cinema.

TALENTO PARA A SÉTIMA ARTE

“Minha relação com os Ristum vem de longa data. Fui contemporâneo, aqui em Ribeirão Preto, dos pais do André, Tezzy e Jirges. Anos depois, morando na Europa, reencontrei a família exilada e me encantei com o trabalho do Jirges, que atuava com grandes diretores de cinema como Michelangelo Antonioni, Roberto Rossellini e Bernardo Bertolucci. À época, o pequeno André já acompanhava o pai nos sets. Empolgado, voltei ao Brasil e, junto com o amigo Renato Carrera, fundei a Omega Filmes. A partir dessa experiência, implantei o Núcleo de Cinema de Ribeirão Preto. Tive a felicidade de contar com o talento do André, que foi o primeiro diretor desse projeto. Iniciamos, então, uma parceria bem-sucedida, que vem rendendo diversas obras de destaque. Atualmente, estamos produzindo a série ‘Eldorado – A Saga do Café’, junto com a Gullane.”
Edgard de Castro, produtor de cinema

Texto: Paula Zuliani
Fotos: Ibraim Leão

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