A chave para uma mudança cultural

A chave para uma mudança cultural

Fundador do Projeto Religar, o médico Werner Schmidek, em conversa com a psicóloga Rosa Pantoni, desmistifica a prática, destacando-a como peça-chave para uma mudança de comportamento para o planeta

Nascido em Viena, em 1942, Werner Robert Schmidek é médico formado pela USP, com pós-doutorado pela Universidade da Califórnia. Brasileiro por opção, o professor universitário e especialista em Neurofisiologia e Biologia do Comportamento fundou e se tornou o primeiro vice-presidente da Sociedade Brasileira de Etologia. O contato inicial com a Biodança aconteceu em 1991, mas somente em 2005 tornou-se facilitador da técnica, transformando-se em facilitador-didata em 2010.

Também facilitadora de Biodança, Rosa Virgínia Pantoni atua na formação continuada de professores, no desenvolvimento e na aprendizagem em contextos coletivos de cuidado e educação, em políticas públicas para a primeira infância e na orientação familiar para o desenvolvimento e a aprendizagem na primeira infância. Na condução das perguntas, leva Werner a recordar sua trajetória de envolvimento com a técnica, que o levou a fundar, em Ribeirão Preto, o Projeto Religar, uma proposta diferente de se conectar com a vida, por meio da prática regular da Biodança.
 
Rosa: O que é a Biodança? É necessário saber dançar para frequentar um grupo regular da modalidade?
Werner:
Rolando Toro, criador da Biodança, define-a de maneira criativa e poética como um “sistema de integração afetiva, renovação orgânica e reaprendizado das funções originais da vida, baseado em vivências induzidas pela dança, pelo canto e por situações de encontro em grupo”. Em uma conceituação mais pragmática, podemos Para Werner e Rosa, a Biodança promove o funcionamento coordenado dos hemisférios cerebraisacrescentar que a Biodança é um sistema de vivências em grupo, propostas por um facilitador qualificado, onde há uma sucessão de exercícios, baseados em músicas de caráter adequado, movimentos diferenciados e contatos de diversos tipos entre os participantes com o objetivo de criar uma “curva de aula” que possibilita, a cada indivíduo, a transição entre dois estados de consciência, dependentes da ativação de porções diferentes do cérebro. Essas vivências proporcionam um aprendizado inteiramente novo e pleno de percepção da realidade e de harmonização das funções internas e das relações com as pessoas, com os seres vivos e com a ecologia do planeta. Não há necessidade de saber dançar, pois os movimentos são apenas propostas. A prática não tem restrições, podendo ser realizada por deficientes, idosos, grávidas e crianças.

Rosa: Quando a Biodança surgiu e como se desenvolveu?
Werner:
A Biodança deve a sua existência à intuição e tenaz persistência de um antropólogo, psicólogo e poeta chileno chamado Rolando Toro. Jovem e recém-formado, entrou em contato com instituições de atendimento a pacientes com doenças mentais e idealizou uma atividade baseada na música, no movimento e nas interações, ainda que precárias, desses pacientes, apenas como um tipo de lazer. Para sua surpresa, no entanto, a sucessão de episódios de atividade musicada acarretou em melhora no quadro clínico de diversos pacientes; então, ele começou a estruturar metodologicamente a prática. Enfrentou rejeição e preconceito contra propostas de contatos afetivos entre participantes de grupos, mas contava sempre com os convincentes êxitos da aplicação. Assim, com o passar do tempo, a Biodança foi se espalhando por diversos países da América do Sul e logo chegou ao Primeiro Mundo. Sempre baseada na formação séria de facilitadores, a partir de escolas de Biodança, credenciadas por uma entidade central, hoje International Biocentric Foundation, com sede na Itália, preservando, assim, uma base metodológica única.
 
Rosa: Como você chegou à Biodança?
Werner:
Foi um longo caminho, com diversas encruzilhadas e decisões nem sempre baseadas na análise lógica, mas, na maioria das vezes, na pura intuição e nos meus sentimentos. Desde a adolescência, sempre senti motivação pela preservação e a melhora da vida ao meu redor, o que me levou a escolher o curso de Medicina. Ingressei na USP, em São Paulo, que se admitia o melhor ensino e a melhor prática médica do país, mas experimentei a grande desilusão de perceber a abordagem estritamente mecanicista, racional-analítica, onde o paciente era visto quase como um objeto (uma “máquina biológica” defeituosa que o médico tinha obrigação de consertar). Ao paciente cabia apenas a função de não atrapalhar o médico, seu psiquismo não tinha nenhuma possibilidade de participar do processo de cura. Decidi, então, desviar minha formação clínico-cirúrgica para a investigação científica na área de Neurofisiologia e da Fisiologia do Comportamento. Intuitivamente, sabia que os estudos  me levariam a uma compreensão mais plena do papel do cérebro não apenas na produção de harmonia em nosso interior, mas também em nossas relações com a vida ao nosso redor, sendo um grande produtor de saúde no sentido mais amplo. Já em Ribeirão Preto, na década de 90, tive contato pela primeira vez com uma oficina de Biodança, por meio de um programa do Governo do Estado chamado Oficinas Culturais e me apaixonei. Assumi o compromisso de, logo que me aposentasse, dedicar-me à Biodança. Assim, depois de 30 anos de uma bem-sucedida trajetória como cientista, sou, desde 2001, um estudioso facilitador, praticante e incentivador da Biodança em Ribeirão Preto.

Rosa: Você deu o título para sua monografia de “Biodanza: uma terapia dos hemisfério direito”. Por quê? Biodança é uma terapia?
Werner:
Carlos Garcia, um dos grandes teóricos da Biodança, descreveu a importância da estruturação, pelo facilitador, de uma “curva de aula”, associando em sequência determinados tipos de exercício que levavam o grupo, inicialmente, a uma ativação cada vez mais racional e energética, até um pico. Em seguida, por uma gradativa sequência de exercícios desativadores, chegando a uma diminuição, cuja profundidade deveria ser dependente do grupo, para, então, gradativamente, ocorrer uma reativação, chegando a um estágio semelhante ao do início da aula. Sanclair Lemos, outro grande teórico, propõe o desenvolvimento das aulas numa sequência, dentro das cinco linhas de vivência descritas por Rolando Toro (vitalidade, criatividade, afetividade, sexualidade e transcendência) em que as aulas se iniciem com exercícios na Linha da Vitalidade para caminhar na direção da transcendência, passando por algumas das outras três. Foi grande a minha surpresa e alegria quando notei que os conceitos se encaixavam perfeitamente com os conhecimentos das neurociências sobre as características do processo de Especialização Hemisférica, pela qual cada um dos hemisférios do córtex do nosso cérebro têm o potencial de desempenhar diferentes funções. A fase de desativação da “curva de aula” se baseia exatamente em atividades que não são da competência e do interesse do hemisfério esquerdo (racional, objetivo e dominante); tendem, assim, a levar à sua desativação e à liberação do hemisfério direito, o que permite acesso a um novo estado de consciência, a uma nova percepção da realidade, seja interna ou externa ao nosso organismo. A vivência recorrente desse processo de liberação do acesso às funções do hemisfério direito tende a levar a uma gradativa facilitação de sua ocorrência. Estes são processos certamente terapêuticos.
 
Rosa: De que modo a Biodança pode modificar o funcionamento do nosso cérebro?
Werner:
Quando ainda estava dentro do sistema universitário, paralelamente, comecei a me interessar e a ler muito sobre a separação funcional entre os hemisférios e as competências de cada um, chegando à percepção de que nossa cultura privilegia muito um desses lados, o esquerdo, usando-o quase exclusivamente. A razão anatômica para isso é que, com o grande crescimento do cérebro nos mamíferos e, particularmente, na nossa espécie, a comunicação entre eles ficou pequena em relação ao seu tamanho, sendo a proporção de fibras nervosas de 50 para 1. Para funcionar bem, portanto,  é vantajoso concentrar aquilo que é muito usado de um lado e deixar outros Nas vivências de Biodança, as pessoas experimentam o acesso a um novo estado de consciência, explica Werner Schmidekitens do outro. Isso cria, no entanto, dois modos muito diferentes de percepção da realidade. O hemisfério esquerdo (HE), que se caracteriza por ser verbal, racional, lógico, analítico, linear, temporal, abstrato e matemático, é predominante em nossa cultura, mas considera o eu de modo separatista, vendo o resto como “coisas”, inclusive as pessoas. Já o hemisfério direito (HD), que se caracteriza por ser não verbal (prosódico), afetivo, intuitivo, sintético, holístico, espacial, concreto e artístico, assume a importante funcionalidade da não-separatividade, da continuidade energética com tudo o que nos cerca, orgânico ou inorgânico. Esse modo diferente de perceber a realidade,  que não é mais separatista — do “eu sou eu e o resto são coisas” — pode nos levar ao reequilíbrio. Vem daí a ideia de religar funcionalmente esses hemisférios: não transferir o controle continuamente para um dos lados, mas tentar funcionar com os dois hemisférios integrados. A Biodança mostra essa possibilidade.

Rosa: Em que consiste o “Projeto Religar”?
Werner:
Dou esse nome à minha proposta de valorizar a reconexão funcional entre os dois hemisférios cerebrais, ganhando, assim, acesso a uma forma totalmente diferente de percepção da realidade, saindo da nossa normal sensação de separatividade — na qual nos sentimos, não só fisicamente, mas afetivamente desconectados de tudo o que nos cerca, descompromissados de tudo isso, pouco nos importando o bem-estar ou até a sobrevivência de seres vivos (inclusive humanos). Insisto que esse processo de perceber e efetivamente acessar as funções do hemisfério direito não se limita às potencialidades de alguns poucos “iluminados”, após anos e anos de meditação reclusa em algum topo de montanha. Ao contrário, o acesso está, em boa parte, disponível para qualquer um de nós e o método para alcançá-lo tem um nome: Biodança.

Rosa: Existe uma única forma de facilitar a Biodança ou ela é feita de forma diferente para grupos específicos?
Werner:
Embora o modelo teórico geral seja idêntico para todos os grupos, a metodologia específica pode ser modulada em função de características do grupo. Para um de idosos, por exemplo, propomos menos exercícios de vitalidade e coordenação do que para um grupo de crianças, ou, ainda, para um grupo de deficientes visuais, menos exercícios de deslocamento rápido.
 
Rosa: Quais são os benefícios e/ou efeitos percebidos pelas pessoas que fazem Biodança?
Werner:
Como um processo de treinamento por repetição exaustiva, quaisquer benefícios ou efeitos são tanto mais eficientes quanto maior a repetitividade. Também é preciso lembrar que a “curva de aula” é a transição entre o convencional estado de ativação com utilização preferencial dos circuitos do hemisfério esquerdo para um estado totalmente diferente e, até algo assustador, para quem o sente pelas primeiras vezes. Há, assim, inegavelmente, o constante desafio de ter ou não medo da Biodança em si, e de ter ou não a coragem de se entregar efetivamente à sua prática, para, então, sentir os benefícios. Há, ainda, o efeito individualizado. É importante perceber que qualquer atividade ou desafio pode trazer lembranças específicas, muitas vezes, altamente ativadoras ou inibidoras. Feitas tais ressalvas, é inegável que a Biodança consegue efeitos altamente positivos, seja em relação à autoimagem, seja na capacidade de atuar no mundo externo. Um exemplo prático e extremamente marcante é o efeito da Biodança praticada regularmente sobre a mobilidade de deficientes visuais em ambientes novos utilizando ou não a bengala. Quase todos ganham mais mobilidade. Alguns de maneira mais marcante, outros nem tanto.
 
Rosa: Com que frequência é necessário fazer Biodança para que esses efeitos sejam percebidos na vida cotidiana?
Werner:
Dentro de certos limites, vale o lema: “quanto mais, melhor”. A maioria dos grupos tem atividades semanais, com ocasionais “Maratonas de expansão ou aprofundamento”. Há, também, alguns tipos de vivência que, por suas próprias características, voltam-se “para dentro”, atuando especificamente sobre destinatários.  São exemplos desse padrão o “Projeto Minotauro”, que focaliza medos específicos de participantes individuais.
 
Rosa: A Biodança pode modificar a relação entre as pessoas, tornando-as mais éticas?
Werner:
Nosso modo habitual de percepção, regido pelo “dominante” HE, que divide o mundo em um “Eu” (que tudo pode fazer) e um “Resto”, que, de fato, pouco nos importa, contrapõe-se ao modo intuitivo-holístico-afetivo “integrativo”, regido pelo HD, onde nos percebemos ligados a todos os outros seres vivos e também ao ambiente. Isso demonstra a grande dificuldade de reconhecer e vivenciar uma ética verdadeira, ou seja, um conjunto natural e espontâneo de respostas de um indivíduo ao ambiente com o qual ele está em contato verdadeiro, baseado num sentimento de conexão, onde os padrões comportamentais são baseados no afeto e constituem a expressão de um Amor Maior, não se limitando a um conjunto de regras e procedimentos moldável pelas convenções sociais do local e do momento. A Biodança, na busca e no potencial alcance de uma verdadeira reconexão entre os hemisférios, permite a percepção de um súbito, profundo, autêntico e inescapável sentimento de ética.
 
Rosa: A Biodança pode nos ajudar a mudar o modelo cultural que nos rege? A entrevista entre os facilitadores de Biodança foi acompanhada pela jornalista Yara Racy
Werner: Estamos num ponto do planeta onde, se o modelo cultural não mudar rapidamente, vamos engatar em um processo de extinção. Estamos limitados, pelo uso compulsório do HE, a um processo de percepção do mundo, de consciência racional-analítico-materialista-separativista”, que nos delimita em “Eu” aético, que designa tudo como um conjunto de “issos”, criados para o seu gozo e proveito. É evidente que tal percepção do mundo, associada a um aumento exponencial da população mundial e à crescente da produção de CO2 e Metano, está nos conduzindo de maneira veloz, e logo mais inescapável, a um grande desastre, um aquecimento global de níveis semelhantes àqueles que já ocasionaram extinções globais. Sabemos, no entanto, que este modo de especialização hemisférica é o resultado do modelo  cultural dentro do qual crescemos e no qual estamos inseridos. Por isso mesmo, contém em si a potencialidade de ser modificado, reaprendido. Cabe-nos, então, perceber que necessitamos, urgentemente, de uma mudança radical do padrão de interação de nossos hemisférios cerebrais, permitindo, com isso, um modo radicalmente diferente de percepção do ambiente, onde passemos a nos sentir interdependentes e afetivamente unidos. Resulta disso, espontaneamente, um sentimento e comportamento de Ética Verdadeira, não substituível, a médio e longo prazo, por códigos morais e/ou jurídicos, que sempre podem ser alterados ou contornados. Devemos estar cientes de que mudanças desse tipo exigem um treinamento árduo e persistente em processos que impulsionam esta religação para um funcionamento coordenado entre os hemisférios. Nesse ponto, a Biodança consegue excelentes resultados. 

Divisor de águas

“Participei de uma vivência na USP, com outro facilitador, e fiquei encantada com o trabalho, mas, na época, dava aulas à noite e não pude dar continuidade. Quando soube de um grupo de Biodança aberto pelo Werner aos sábados, aproveitei a oportunidade. Fui me encantando cada vez mais e acabei fazendo a formação em Biodança. Tive o Werner como meu orientador de monografia, além de facilitador durante muito tempo. Conheci a Biodança em um momento de crise existencial e a sinto como um divisor de águas em minha vida, que transformou minha maneira de olhar para tudo, auxiliou a ter coragem de tomar algumas decisões importantes e, hoje, não me vejo fora dela. Além do grupo regular, temos outros trabalhos interessantes e minha vontade é poder me dedicar mais à Biodança.” - Rosa Virgínia Pantoni, psicóloga e facilitadora de Biodança. 

Texto: Yara Racy
Fotos: Júlio Sian

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