Evolução constante

Evolução constante

Francisco de Assis Leone e Pietro Ciancaglini apontam os desafios de manter a qualidade do ensino de graduação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP de Ribeirão Preto

Com um sotaque bem abrasileirado, o italiano Pietro Ciancaglini prepara a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP de Ribeirão Preto (FFCLRP) para comemorar 53 anos de atividades com muitas inovações. A Instituição, que surgiu quando o Brasil vivia uma ditadura, agravada pelo Ato Institucional nº 5 (AI-5), já nascia com caráter inovador e questionador. A trajetória revela uma dinâmica de criação constante, de transformação e de evolução, em uma unidade da USP sempre adaptada e adiantada em relação ao seu tempo e que resultou em 11 cursos de graduação, com 16 habilitações, e oito programas de pós-graduação. 

Professor titular do Departamento de Química, desde 1995 e diretor da Instituição na gestão 2016-2020, desde sua Há mais de 30 anos, Leone e Pietro compartilham a paixão pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letrascontratação no setor, Pietro vem atuando em diferentes níveis e funções, nas diversas comissões e colegiados da Unidade. Entre os desafios do cargo, o professor revela que pretende manter a qualidade do ensino de graduação, mesmo nesse difícil período de perda constante de docentes. Na entrevista concedida a um de seus principais mentores, o professor Francisco de Assis Leone, Pietro revela os desafios do plano de gestão. 

Leone: A Filô (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP de Ribeirão Preto) foi inovadora na criação dos seus cursos de graduação? 
Pietro:
Sem dúvida. Os cursos da Faculdade, carinhosamente chamada de Filô, criados em 1962 e que permanecem até hoje, são os de Biologia, Psicologia e Química. A licenciatura em Ciências foi criada para formar professores de primeiro grau, hoje Ensino Fundamental, tendo formado apenas uma turma. 
 
Leone: O que significou isso para o ano de 1962?
Pietro:
A criação desses cursos na Filô, que iniciou seu funcionamento em 31 de março de 1964, representou um extraordinário marco no desenvolvimento intelectual da região de Ribeirão Preto, pois a missão dessa Faculdade era de ampliar a ação da escola pública, através da oferta de novos cursos universitários. 
 
Leone: Seu perfil acadêmico já era arrojado para a época?
Pietro:
Esses cursos foram idealizados, em 1959, pelo o professor Dr. Lucien Lison, um empreendedor científico e, então, docente da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, tendo sido também o primeiro diretor da FFCLRP, no período de 1963 a 1968. No decorrer dos anos, a Faculdade ampliou consideravelmente seus horizontes, sendo, hoje, a única unidade da Universidade de São Paulo e também do Sistema Público de Ensino Superior a manter uma estrutura peculiar. Tal organização, idealizada na Alemanha, por Wilhelm von Humboldt, no final do século XIX, tem a característica de  uma academia do pensar irrestrito. Esse perfil, arrojado para o momento de sua criação, encaixa-se perfeitamente no ensino contemporâneo, demonstrando que a premissa inicial estava correta, colocando, hoje, a FFCLRP em um patamar de destaque entre as unidades da USP. 
 
Leone: Qual o reflexo da instituição nos dias atuais?
Pietro:
Decorrido mais de meio século após a instalação, no dia 31 de março de 2017, quando a Filô completará 53 anos de atividade, a instituição nos leva a pensar em como nasceu e, sobretudo, no significado que assumiu, numa cidade como Ribeirão Preto, na década de 60. Reflexão em relação aos jovens que nela foram buscar sua formação e aos seus familiares e amigos, quer em relação à comunidade de uma cidade, na época, com 150 mil habitantes. Ela nasceu e se constituiu como uma Faculdade de Ciências, capaz de levar a todos, de maneira improvisada, mas insistente, a exercitar o pensamento crítico e a descoberta do prazer que existe em fazer pesquisa, de buscar respostas às perguntas que possam satisfazer a  curiosidade natural que carregamos conosco. 
 
Leone: Qual o diferencial da vivência acadêmica? 
Pietro:
Ela colocou juntos professores e alunos de áreas tão diversas e fez surgir um convívio diferente, que permitiu aprender a respeitar a diversidade. Apesar do nome, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto não possui cursos de graduação em Filosofia nem em Letras, entretanto, conta com 11 cursos de graduação, sendo uma das poucas unidades da USP que possui cursos diversos nas áreas de ciências biológicas, exatas, humanas e artes. Essa diversidade não só enriquece, mas a torna única pela ampla variedade de cursos oferecidos na graduação. 

Leone: Nesse período, aconteceram reformulações?
Pietro:
Apesar das reestruturações constantes nos cursos de Biologia, Psicologia e Química, em que foram criadas várias habilitações inéditas no país, somente após 35 anos de funcionamento é que esses novos cursos foram criados. O de Física Médica foi instalado em 2000, no então Departamento de Física e Matemática, por iniciativa de docentes que participavam do Programa de Pós-Graduação em Física Aplicada à Medicina e à Biologia. Em 2001, foi implantado o curso de Pedagogia, no então Departamento de Psicologia e Educação. Em 2003, foi criado o curso de Biblioteconomia e Ciências da Informação e Documentação, instalado no então Departamento de Física e Matemática, como curso noturno. Atualmente, está vinculado ao Departamento de Educação e Ciência de Informação. 
 
Leone: Como é a relação da Filô com a área tecnológica?
Pietro:
Atenta às necessidades do mercado, em 2003, foi criado o curso de Informática Biomédica (IBM), de caráter interdisciplinar, entre a FFCLRP e a Faculdade de Medicina. No mesmo ano, ocorreu a implantação da licenciatura em Química, no período noturno, com o ingresso separado do bacharelado em Química, no vestibular. Em 2004, veio a Matemática Aplicada a Negócios, no então Departamento de Física e Matemática. Em 2010, o Curso de Música, que já funcionava no Campus de Ribeirão Preto desde 2001, foi acolhido pela Filô e passou a ser integrante dos cursos de graduação da unidade. Além desses, a FFCLRP mantém um polo do curso de licenciatura “A Faculdade está sempre atenta às necessidades do mercado”, afirma Pietroem Ciências na modalidade de EAD semipresencial, que foi criado em 2011 e que é o primeiro do tipo na USP, em convênio com a Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp). 
 
Leone: Quais são os projetos da Filô para o futuro?
Pietro:
De acordo com o Plano de Gestão, elaborado conjuntamente com o professor doutor e vice-diretor (2016-2020), Marcelo Mulato, não se pretende criar novas metas ou mesmo fazer promessas de gestão. Espera-se poder realizar os anseios de nossos docentes, funcionários e alunos, coletados durante a avaliação institucional, realizada em 2015/2016, desejos esses que se encontram em perfeita sinergia com as metas das diferentes pró-reitorias da USP. Pretende-se trabalhar harmonicamente em conjunto com toda a nossa comunidade, dando o contínuo comprometimento da nossa unidade em oferecer um ensino de qualidade aos alunos e pesquisadores que aqui chegam anualmente. 

Leone: Como traçar metas em momento de dificuldade econômica nacional? 
Pietro:
É preciso destacar que o cenário econômico vigente no país, no estado e mesmo na Universidade requer extrema atenção e cautela. Apoiar, priorizar, dar suporte às tomadas de decisões sempre em sinergia com os planos de metas dos departamentos será a nossa forma de atuação dessa atual direção. Desta forma, poderemos contribuir com a continuidade do trabalho realizado nas gestões anteriores, visando sempre a uma atuação ainda mais dinâmica, compartilhada e que possa ir ao encontro dos anseios e das necessidades da nossa comunidade. 

Leone: Diante desse cenário, o que será priorizado?
Pietro:
Nosso principal objetivo será o de continuar colaborando na gestão universitária, usando a experiência adquirida para contribuir continuamente com o fortalecimento da nossa Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto. É importante esclarecer que esta direção não se limitará a ser simplesmente um somatório dos anseios dos departamentos, mas sim, trabalhará para a construção de um plano estratégico aglutinador, gerado por um diagnóstico das atividades desenvolvidas e já avaliadas institucionalmente, com adoção de ações que continuem garantindo melhorias e o crescimento da Filô nos próximos 10 a 15 anos.  Trata-se de um grande desafio a ser enfrentado, mas, com a colaboração da nossa comunidade, os objetivos serão alcançados.

Leone: Estão previstos novos cursos de graduação e de pós-graduação? 
Pietro:
A prioridade é finalizar as implementações dos cursos recentemente reestruturados. No caso da graduação, existe uma demanda por um curso de licenciatura em Matemática e até a possibilidade de instalação de alguma modalidade em Engenharia, entretanto, diante do cenário econômico que traz reflexos também na gestão da USP, qualquer ação de expansão deve ser analisada cuidadosamente com a reitoria e pró-reitora de graduação. No caso dos cursos de pós- graduação, a situação é menos complexa e a possibilidade de implantação de cursos nos departamentos de Matemática e de Música é muito mais viável dentro do atual cenário econômico. 

Leone: Com áreas de conhecimento bem distintas, como é a gestão dentro desse cenário, com interesses, muitas vezes, tão diversos?
Pietro:
A Filô é a única unidade da USP a concentrar, sob a mesma administração, áreas do saber tão distintas, que convivem diariamente. Buscar consenso, na maioria das vezes, é difícil, apesar do diálogo exaustivo, mas isso representa a melhor forma para a resolução de problemas tão diversos. Portanto, não existe uma fórmula mágica a ser aplicada, pois a tarefa de priorizar as ações nessas diferentes áreas sempre demanda um árduo trabalho conjunto de todos. É importante salientar que os sete departamentos que constituem a Filô gozam de grande autonomia acadêmica, financeira e administrativa. Esse importante aspecto, que vem sendo aplicado pelas diferentes direções, tem garantido o aumento na absorção de alunos de graduação e de pós-graduação sem perda de qualidade, o aumento da produção cientifica e educacional, o amadurecimento intelectual, bem como as soluções para as dificuldades administrativas. Em função da nova realidade do país, está sendo desencadeada A jornalista Rose Rubini registrou o diálogo entre Pietro e Leoneuma ampla discussão acerca da reestruturação da Filô no sentido de buscar a melhor forma de gerenciar a diversidade de áreas do conhecimento.

Leone: A Filô está entre as dez mais produtivas da Universidade. Em que área ela se destaca e que atribui esse resultado?
Pietro:
Temos um corpo docente altamente qualificado, que desenvolve intensa atividade nos três pilares acadêmicos — ensino, pesquisa e extensão —, nos mais variados temas e com perfil multidisciplinar. Apesar do campus apresentar uma vertente mais voltada para a área biológica e da saúde, a Filô se destaca por desenvolver suas atividades de maneira equilibrada nas grandes áreas exatas, biológicas, humanas e artes. Não temos dúvida de que essa diversidade é o seu ponto forte e o aproveitamento de nossas habilidades e lideranças na aprovação e na execução de inúmeros projetos de cooperação nacional e internacional tem propiciado a formação de profissionais bem qualificados e a geração de novos conhecimentos, que, na medida do possível, são repassados para a nossa sociedade.
 
Leone: Como a sua gestão pode contribuir com políticas públicas para o país reverter a falta de professores na área de exatas? 
Pietro:
Existe uma forte demanda para a criação de novos cursos na área das exatas. Apesar do atual cenário econômico, um novo curso de licenciatura em Matemática já está bem amadurecido junto ao Departamento de Computação e Matemática. Além disso, a Filô está envolvida em dois programas multicêntricos de mestrado profissionalizante, o ProfMat,  na área de Matemática, e o ProfQui, na área de Química,  aguardando aprovação. Esses programas poderão contribuir eficientemente como ações públicas no aprimoramento de professores nessas áreas carentes de profissionais.
 
Leone: Como o senhor avalia o desenvolvimento da Química nos últimos anos?
Pietro:
A matéria tem avançado enormemente pelo grande desenvolvimento teórico no estabelecimento da mecânica quântica, e, principalmente, graças às novas metodologias espectroscópicas de detecção e análises. A bioprospecção de compostos da flora e da fauna, aliado a metodologias de síntese orgânica, também tem contribuído para o descobrimento de novos fármacos. Atualmente, a Química apresenta um papel fundamental no desenvolvimento tecnológico e nano(bio)tecnologia, que podem ser considerados como o futuro  na área da saúde por permitir a miniaturização e o desenvolvimentos de nanossensores e nanodispositivos que podem chegar ao  nível molecular e que deverão revolucionar tratamentos, bem como proporcionar o desenvolvimento  de novas tecnologias, especialmente  na área de exploração sustentável do meio ambiente.
 
Leone: Como o senhor vê o futuro da Universidade e do ensino público?
Pietro:
Um pouco nebuloso, mas temos que continuar lutando por ela, pois, é um patrimônio da sociedade que não deve e não pode ser perdido e, principalmente, pelo ensino público que deve ser preservado, mantendo os padrões de qualidade. Com as medidas recentemente aprovadas e adotadas pelo Conselho Universitário da USP, as unidades, os departamentos e os docentes serão avaliados periodicamente de forma a se ter uma visão integrada e um planejamento mais coerente, garantindo, assim, melhor foco nas necessidades regionais e nos anseios da sociedade. A busca de novos mecanismos de gestão, de gastos com mais eficácia e eficiência e da realização de uma gestão compartilhada são ações que trarão reflexos importantes para a administração. Finalmente, resta mencionar a valorização docente, que, diante do teto imposto pelo dissídio do governador do Estado e das possíveis mudanças nas regras da aposentadoria, está colocando em risco a permanência de professores experientes que tanto trabalharam para o desenvolvimento da Universidade, além de desmotivar novos docentes ingressantes na carreira universitária. 

Crescimento científico

“Meu primeiro contato com o Pietro aconteceu em 1982, quando, ao fazer a chamada durante uma aula de Química Geral, recebi como resposta ‘presente’, com um forte sotaque italiano de um dos alunos. Através de conversas relembrando momentos que havia passado na Itália, inclusive em Como, sua cidade natal, fomos estabelecendo uma relação que foi além daquela de professor-aluno, tanto que o convidei para estagiar em meu laboratório. Já graduado em Química, continuou sobre minha orientação durante o mestrado e o doutorado. Sua determinação superou todas as minhas expectativas. Ainda durante seu estágio de pós-doutorado, sob a minha supervisão, submeteu um projeto de pesquisa, à Fapesp, que foi aprovado e que é a linha de pesquisa que desenvolve até hoje. Ao longo desses anos, seu crescimento científico foi notável, tendo alcançando reconhecimento internacional pelo trabalho que vem realizando. O Pietro foi, sem dúvida alguma, o meu mais brilhante orientado. É gratificante para o orientador constatar que contribuiu para a formação de um verdadeiro líder universitário. Ao ter a oportunidade de entrevistá-lo, surgiu a curiosidade em saber qual é o projeto para a direção da FFCLRP, de alguém que já galgou todas as posições da carreira acadêmica dentro da USP. Nesses primeiros meses, Pietro tem mostrado competência e sabedoria na resolução dos problemas que ocorrem no âmbito administrativo, mas os desafios são muitos, principalmente em função da heterogeneidade das áreas que compõem a Filô e do seu importante papel na formulação de políticas públicas, que a tornaram uma das mais importantes unidades da USP.”
Francisco de Assis Leone é professor titular sênior do Depto. de Química da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto-USP.


Texto: Rose Rubini
Fotos: Júlio Sian

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