Mente mais saudável

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Na entrevista concedida a Fernanda Chuffi, a professora Carmem Beatriz Neufeld destaca o que é a Terapia Cognitivo-Comportamental e como ela pode ser trabalhada

Apesar dos primeiros registros teóricos no cenário internacional a respeito da Terapia Cognitivo-Comportamental datarem da década de 1960, no Brasil, esta linha de psicoterapia começou a se tornar mais popular do final dos anos de 1990 até os anos 2000. Foi em 2008 que a professora Carmem Beatriz Neufeld, nascida em uma pequena comunidade alemã chamada Colônia Nova, em Bagé, no Rio Grande de Sul, passou a integrar o Departamento de Carmem passou a integrar a USP de Ribeirão Preto para atender à demanda dos alunos pela Terapia Cognitivo-ComportamentalPsicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP), da Universidade de São Paulo, para onde veio, justamente, atender à demanda crescente de alunos interessados na especialidade. Formada em Psicologia pela Universidade da Região de Campanha, com mestrado em Psicologia Social e da Personalidade pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e doutorado em Psicologia pela mesma instituição, finalizou em julho deste ano seu pós-doutorado em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 

Entre outras atividades, Carmem dedica-se à coordenação do Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitivo-Comportamental (LaPICC-USP), que mantém cerca de 25 integrantes anualmente. Atua, ainda, na área de Psicopatologia da infância e da adolescência, tendo publicado, além de quatro obras técnicas, mais de 10 livros direcionados ao público infanto-juvenil. 

A linha Cognitivo-Comportamental e as publicações já lançadas pautaram a entrevista da pedagoga Fernanda Chuffi, que é mestra em Educação também pela USP, professora e coordenadora pedagógica da Escola do Amanhã, com experiência de 15 anos. O bate-papo entre Fernanda e Carmem aconteceu na Livraria Paraler.

Fernanda: O que é a Terapia Cognitivo-Comportamental?
Carmem:
As bases científicas dessa linha de psicoterapia apontam para o entendimento de que o que faz com que nos incomodemos com determinadas “coisas”, não são “as coisas” em si e, sim, a forma com que as interpretamos. Isso quer dizer que a mesma situação pode ser entendida de formas diferentes por pessoas diferentes e que essas interpretações estão diretamente associadas a como elas irão reagir e a como irão se sentir em relação a isso ou àquilo. São as crenças — a forma como eu penso, como vejo o mundo, a mim mesmo e ao meu futuro — que influenciam a forma de interpretar qualquer situação. É como se eu estivesse sempre utilizando um par de óculos de uma cor específica, que dá determinado tom a tudo o que vejo. A Terapia Cognitivo-Comportamental tenta exercitar, justamente, a capacidade de flexibilizar o olhar, ou seja, propõe que tentemos usar óculos diferentes de vez em quando, ter uma perspectiva diferente, uma perspectiva baseada em evidências. Só assim é possível entender que determinadas conclusões a que chegamos são, na verdade, apenas nossa interpretação da vida, e não e verdade absoluta — não que minhas interpretações sejam necessariamente incorretas, mas elas se limitam a mim: a minha verdade não é, necessariamente, a de todas as pessoas ao redor.

Fernanda: Quais são os fatores que ajudam a definir esses “óculos”?
Carmem:
São vários fatores, combinados. Segundo o pesquisador norte-americano Aaron Beck, o maior teórico dessa perspectiva, os responsáveis por esses óculos são nossa dotação biológica, nossa hereditariedade, as experiências prévias e as escolhas que fazemos ao longo da vida, consciente ou inconscientemente. A combinação entre eles vai determinar nosso estilo cognitivo, ou seja, a nossa personalidade e, juntamente com ela, a nossa tendência a interpretar mais de uma forma ou de outra. Nesse sentido, estamos sempre dando sentido à tudo, atribuindo significados que vão gerar uma série de conclusões, mesmo que não nos demos conta disso. 

Fernanda: Como surgiu o Laboratório de Pesquisa e Intervenção Cognitiva Comportamental (LaPICC)?
Carmen:
Em 2008, cheguei com o desafio de instalar toda a parte de ensino, pesquisa e extensão dentro da perspectiva Congnitivo-Comportamental, que ainda não era trabalhada na USP de Ribeirão Preto. Resolvi propor um laboratório porque, dentro da formação que recebi, entendo que seja fundamental ter um espaço onde as pessoas possam integrar ensino, pesquisa e extensão. Só assim é possível garantir que os trabalhos não sejam desenvolvidos isoladamente. Nossa busca é para que nosso trabalho resulte em bons pesquisadores, professores e profissionais, e um laboratório propicia tudo isso. Por meio dele, conseguimos desenvolver pesquisas, prestar atendimento à comunidade e, principalmente, oferecer informações para profissionais e para um público mais abrangente. Além isso, a intenção final é facilitar a popularização da ciência: queremos que as pessoas tenham acesso ao conhecimento que desenvolvemos. Por isso, realizamos com muito prazer o trabalho de divulgação de tudo o que desenvolvemos dentro do LaPICC-USP, tanto em Ribeirão Preto quanto no Brasil  e no exterior.

Fernanda: Qual é a estrutura do LaPICC?
Carmem:
Hoje, coordeno aproximadamente 25 integrantes em média todos os anos, entre eles, colaboradores de pesquisa, alunos de doutorado, mestrado, iniciação científica e estagiários de psicologia. Além disso, fazemos muitas parcerias entre outros laboratórios, dentro e fora da USP, o que acaba aumentando bastante nosso círculo. Posso dizer que abarcamos um universo bem diverso de pessoas, desde quem deseja aprender a prestar atendimento ao público — adultos, crianças, adolescentes ou idosos — até quem almeja desenvolver pesquisas na área de intervenção psicológica: como coletar dados, analisá-los, etc. 

Fernanda: De que forma o público pode ter acesso ao atendimento prestado pelo Laboratório?
Carmem:
Como todas as nossas ações são, ao mesmo tempo, ensino, pesquisa e extensão, temos várias portas de entrada diferentes, a depender do tipo de intervenção. Recebemos os casos de psicoterapia individual através do Centro de Psicologia e Pesquisa Aplicada (CPA), do Departamento de Psicologia da USP, que tria e encaminha os pacientes com as mais diversas queixas entre os diferentes grupos de intervenção do departamento. Há casos de transtornos do humor em geral, incluindo a depressão e a ansiedade, além de problemas de estresse e outras questões laborais, como dificuldades de adaptação ou convivência no trabalho, ou ainda problemas de relacionamento. Dentro do nosso laboratório, também existe um amplo trabalho voltado para o atendimento de grupos, que tem nos dado grande notoriedade também em outras partes do Brasil e também no exterior por ser um dos poucos laboratórios com este foco. Nossos profissionais se dedicam tanto a casos que precisam de intervenção quanto desenvolvem um trabalho de prevenção e promoção de saúde. Nesse caso, abrimos vagas uma ou duas vezes ao ano, e os interessados podem se inscrever para diferentes grupos a depender das vagas e dos objetivos do grupo.

Fernanda: Quais são os grupos que estão sendo trabalhados atualmente?
Carmem:
Há grupos de pessoas que sofrem com obesidade, com depressão, entre outros problemas, além de trabalharmos com orientação de pais em grupos. Para esses casos, costumamos divulgar as vagas abertas no site e na fanpage do LaPICC. Fazemos divulgação nos meios de comunicação, como televisão e rádio, apenas quando possuímos um grande número de vagas, pois normalmente a demanda costuma superar nossa capacidade de atendimento. Também fazemos um trabalho de desenvolvimento de habilidades para a vida, voltado para o público infanto-juvenil, que levamos às escolas. O objetivo é a prevenção de doenças mentais e o desenvolvimento de habilidades que auxiliem este público a lidar com os problemas do dia a dia. 

Fernanda: A depressão está, de fato, cada vez mais comum, especialmente entre crianças e jovens?
Carmem:
Os dados de literatura são bastante consistentes, tanto no cenário internacional quanto no Brasil, e mostram que os transtornos de ansiedade e de depressão estão mais frequentes. Em nossos projetos de promoção de saúde, quando convidamos as crianças nas escolas, não sabemos que questões ela traz consigo; nossa intenção é, justamente, realizar um trabalho preventivo. No entanto, muitas vezes, nos deparamos com crianças que precisam de atendimentos individuais paralelos porque já estão com sintomatologia clínica relevante para algum problema mental, o que é bem preocupante. Se há pouco tempo trabalhávamos com uma estimativa de 12% a 13% de crianças com sintomas de transtornos, o que já é elevado, hoje, nas escolas onde trabalhamos, passam de 30% A pedagoga Fernanda Chuffi quis saber mais sobre a coleção “Habilidades para a vida”, voltada ao público infantilos alunos com níveis de ansiedade, por exemplo. Verificamos esses números em um levantamento concluído recentemente feito com crianças de 8 a 12 anos. 

Fernanda: De que maneira surgiu a ideia de trazer esses assuntos tão singulares para a literatura em benefício, a priori, das crianças?
Carmem:
O diretor da Editora Sinopses, Ricardo Gusmão, acompanhou a minha apresentação de um caso de luto infantil em um congresso nacional. Com base nisso, o editor me convidou a escrever uma obra sobre luto. Apesar de ter dito a ele que não escrevia para esse público, ele me convenceu e acabei convidando uma colega, Aline Henrique Reis, e encarando o desafio de escrever o primeiro livro para crianças. A partir daí, nunca mais parei. Já são mais de 10 livros lançados e outros 20 a serem publicados. Abordamos temas como a raiva, o desenvolvimento da compaixão, a importância de se praticar exercícios e a importância de perceber que aparência não é tudo. As obras são voltadas para um público de 6 a 10 anos e vêm tendo um retorno surpreendente, inclusive com o público adulto. 

Fernanda: A coleção Habilidades para a Vida também buscam prevenir o desenvolvimento de problemas psicológicos junto ao público infantil?
Carmem:
Ela auxilia tanto no tratamento quanto na prevenção. Como os esquemas cerebrais das crianças ainda não estão solidificados, conseguimos, com poucas sessões, enormes resultados, especialmente no caso da Terapia Cognitivo-Comportamental, que já é mais focada em metas. No entanto, é investindo na prevenção que ampliamos as possibilidades das crianças aprenderem a lidar com essas emoções antes de desenvolverem qualquer problema. Essa coleção de seis livros trabalha habilidades como aprender a se posicionar, se relacionar, ser empático, resolver problemas, pensar crítica e criativamente e a lidar com as nossas emoções.

Fernanda: Como se desenvolvem os problemas psicológicos?
Carmem:
Muitos fatores influenciam o desenvolvimento de problemas psicológicos. Um exemplo poderia ser: a criança é colocada diante de uma situação com o qual ela não conseguiu lidar, que a deixou nervosa, ansiosa ou insegura. Na segunda oportunidade, sente-se da mesma maneira diante da situação e ela interpreta que aquela situação é difícil demais para lidar, fazendo com que ela venha a nem tentar resolver aquela situação e a não acreditar na sua capacidade. Isso vai se retroalimentando até virar uma bola de neve cada vez mais difícil de suportar. É importante entender que, toda vez que algo acontece de um jeito inesperado, qualquer pessoa fica sem saber o que fazer. Na infância, isso é mais evidente ainda porque as crianças não têm repertório para consultar. Nosso trabalho, no caso dos livros para crianças, está focado nisso, em auxiliar as crianças a verem diferentes possibilidades de lidar com as situações do dia a dia e a ensinar diferentes habilidades para elas. Para nossa surpresa, existe um grande interesse dos adolescentes e dos adultos por nossos livros também.

Fernanda: Por que você acredita que isso acontece? 
Carmem:
De maneira geral, não somos educados para lidar com nossas demandas psicológicas e com nossas emoções. No fim das contas, viramos adultos sem tais habilidades e que também não foram preparados para resolver problema. Nesse sentido, o aprendizado acontece no dia a dia, na tentativa e no erro, quando, na verdade, há disponível uma vasta literatura capaz de ajudar as pessoas a terem mais qualidade de vida e uma saúde mental melhor. É por isso que temos investido na popularização do conhecimento científico entre nossos focos dentro do LaPICC, pois nossas pesquisas e conceitos alcançam novo sentido quando ajudam as pessoas na prática. 

Fernanda: Em Psicologia, a prevenção tem resultados efetivos, já comprovados por meio de pesquisas?
Carmem:
Há indicadores que apontam a diminuição dos níveis de depressão, ansiedade e estresse, a partir de desenvolvimento de habilidades de vida na infância, por exemplo,  mas esses dados, muitas vezes, são difíceis de mensurar porque a prevenção não gera resultados imediatos, e essa é justamente a sua vantagem. As intervenções preventivas acabam evitando que a pessoa venha a desenvolver um quadro de sintomas. A tendência geral é olhar para a Psicologia sob a perspectiva dos problemas. Quando falo de prevenção e promoção da saúde, estou propondo mudar esse olhar e enxergar a especialidade pelo ângulo da saúde. Por esse viés, não devo medir apenas os aspectos sintomáticos; o que realmente faz a diferença é o aumento do afeto positivo, da qualidade de vida, da autoestima, entre outros ganhos. São esses os ingredientes que nos protegem de adoecer mentalmente no futuro, que nos tornam mais resilientes e fortes para enfrentar as ventanias no dia a dia. 

Fernanda: Hoje, a interação das crianças com o mundo virtual é um fator gerador de ansiedade? 
Carmem:
Depende. Por um lado, a rapidez do acesso à informação provoca alguns efeitos nocivos importantes, como a dificuldade de desligar e de ficar sozinho consigo mesmo. Por outro lado, é preciso ter cuidado com tudo O encontro de Fernanda e Carmem na Livraria Paraler foi acompanhado pela jornalista Luiza Meirellesaquilo que é supergeneralizado, pois sempre é possível identificar aspectos positivos. Alguns estudos recentes mostram, por exemplo, o quanto essa estimulação tem deixado as pessoas mais ágeis, mais capazes de fazer duas tarefas ao mesmo tempo, entre outras capacidades importantes. Além disso, é fundamental avaliar o contexto e os valores da família daquela criança. O que é importante para eles é que vai determinar o que deve ser trabalhado. Se naquela família a hora da refeição é importante, isso tem um valor. Outras famílias dão prioridade a outros momentos, que devem dar direção ao que exige mais ou menos atenção. Desde que as interações pessoais não sejam substituídas pelas virtuais em absoluto, elas não são nocivas em si; o problema sempre é o exagero. Por outro lado, estamos falando de gerações formadas por nativos digitais, essa é a realidade dessas crianças desde que elas nasceram, por isso devemos lançar diferentes olhares sobre o tema para evitar interpretações simplistas e/ou preconceituosas.

Fernanda: Como deve ser a postura dos pais, que fazem parte de outra geração?
Carmem:
Mais uma vez, não há receita. Tudo irá depender dos valores daquela família. Não se pode esquecer, no entanto, que nenhum bebê vai à loja da esquina comprar um smartphone ou um tablet. São os pais que apresentam aos filhos esses equipamentos que, muitas vezes, funcionam como uma babá eficiente. Assim, eles reforçam que a internet é uma companhia agradável. No entanto, ela não pode gerar um distanciamento das relações interpessoais. A literatura e a ciência não têm respostas certas ainda — se é que elas existem — e o que dá para afirmar com certeza é que teremos que aprender a lidar com essa nova realidade que, em sim mesma, não é nem boa, nem ruim. 

Fernanda: Como a rapidez e o excesso de informações da realidade atual afeta a memória? 
Carmem:
A memória depende diretamente do nível de atenção dedicado à determinada atividade. Se meu um nível de atenção está muito pasteurizado, sem foco, há mais chances de que a codificação dessa informação na minha memória seja mais superficial, ou nem aconteça. Isso, claro, tem um impacto. É preciso saber que tanto a atenção dividida — que permite fazer várias atividades ao mesmo tempo — quanto a atenção eletiva — que precisa de foco — são muito importantes para o desenvolvimento cognitivo das crianças e dos adultos. Muitos estudos apontam que, de fato, estamos nos tornando mais desatentos e distraídos, uma vez que estamos recebendo um volume de estímulos cada vez maior, obrigando o nosso cérebro a dividir nossos recursos de atenção e de memória. 

Fernanda: De que forma as escolas e as famílias podem ajudar as crianças a desenvolverem a memória e a atenção em sua máxima capacidade?
Carmem:
As atividades que demandam foco são bons exercícios, mas não podemos ignorar o fato de que o contrário também pode ser verdadeiro. Há crianças que não conseguem sair do foco: entram no mundinho delas e não prestam atenção em mais nada. Se fossemos pensar em uma orientação geral, válida para todas as famílias e todas as escolas, seria mesclar atividades voltadas para as duas habilidades. O ideal é que todos sejam capazes de realizar múltiplas tarefas, mas também consigam ter foco. Retomando os pressupostos da Terapia Cognitivo-Comportamental, o funcionamento saudável do nosso sistema se baseia em uma cognição flexível, que responde às exigências do contexto. Isso se aplica tanto às nossas habilidades de aprendizagem, quanto à forma como lidamos com nossas relações e nossas emoções. Neste sentido, conseguir o equilíbrio entre as demandas do dia a dia e aplicar nossos recursos de forma flexível certamente auxiliará crianças, pais e professores a desempenhar esse importante papel rumo ao desenvolvimento saudável. 

Troca e aprendizado

“O bate-papo com professora Carmem foi de muita troca e aprendizado. Em cada assunto abordado, estiveram presentes questões associadas às relações intrapessoais e interpessoais. Além de sua trajetória e do trabalho realizado pelo LaPICC, a Profa. Dra. Carmem nos contou, nessa conversa, um pouco sobre sua experiência como autora de livros infantis, com destaque para a coleção recentemente lançada, ‘Habilidades para a vida’, que tem ajudado, além dos pequenos, muitos adultos a lidarem com as emoções.” Fernanda Chuffi, pedagoga, pesquisadora, coordenadora pedagógica e orientadora educacional.

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