A outra face do Islã

A outra face do Islã

Em uma conversa franca, Flávia Andréa Pasqualin e Francirosy Campos Barbosa, pesquisadoras da USP de Ribeirão Preto, revelam que a comunidade islâmica conta com cerca de 1,5 milhão de fiéis

No mês do Dia Internacional da Mulher, a homenagem a elas surge a partir de duas mulheres que usam o conhecimento como ferramenta para promover o diálogo e o respeito às diferenças entre os povos. Flávia Andréa Pasqualin faz doutorado em Psicologia no Departamento de Psicologia-FFCLRP/USP, é bolsista da FAPESP e pesquisadora do Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes (GRACIAS – USP), coordenado por sua orientadora, Francirosy Campos Barbosa, pesquisadora e docente de Antropologia no Departamento de Psicologia Social da USP, em Ribeirão Preto, há cinco anos.  Francirosy pesquisa comunidades islâmicas há 17 anos. Na entrevista, que foi acompanhada pela jornalista Carla Mimessi, aluna e professora, desvendam o fascinante universo islâmico e descontroem mitos existentes em torno dessa religião, de seu povo e especificamente da mulher, trazendo nova luz a velhos conceitos.

Flávia: Quem é o muçulmano e quais são os fundamentos da fé islâmica?
Francirosy: O Islã significa paz. O muçulmano é aquele que segue o Islã. A gente pode definir alguns fundamentos como os pilares da prática e os pilares da fé. Os pilares da prática no Islã são cinco: Shahada (profissão de fé).  Não há Deus se não Deus, e o Profeta Muhammad é seu Mensageiro (colocar Deus acima de todas as coisas); fazer as cinco orações diárias (salat); pagar o Zakat (caridade, purificação), um tributo religioso anual que corresponde a 2,5% da riqueza do muçulmano; fazer o jejum no mês do Ramadã, que dura de 29 a 30 dias, em que nada é ingerido do nascer ao pôr do sol; e fazer o Hajj, que é a peregrinação a Meca (Caaba) e Medina.
Todo muçulmano tem que seguir e praticar esses pilares. O Hajj pode ou não ser feito, dependendo das condições físicas e/ou financeiras. Os pilares da fé são seis: fé em Deus único; acreditar nos anjos; acreditar no destino (predestinação); e acreditar nos livros sagrados anteriores ao Alcorão, como a Bíblia, a Torá; Fé nos Profetas. Para o muçulmano, o Alcorão é o último livro sagrado revelado, mas as escrituras que vêm anteriormente são respeitadas, assim como Jesus, considerado um profeta; acreditar no dia do Juízo Final. O Islã é uma religião em que o fiel se empenha cotidianamente: com o Jihad (empenho, dedicação), todos se dispõem a serem melhores muçulmanos, a adorar a Deus em primeiro lugar. Maktub (está escrito) é o que define o destino. Essa entrega absoluta a Deus é ser muçulmano.

Flávia: A maioria da população islâmica se encontra em território asiático, no Oriente Médio, no norte da África, na África Subsaariana, na Europa e nas Américas. Com tanta diversidade cultural, o Islã é o mesmo em todos os lugares?
Francirosy: O Islã, enquanto religião, sim. A base é a mesma, o que se modificam são os contextos. A maneira que as pessoas entendem a religião no Marrocos não é a mesma da Arábia Saudita, pois são países culturalmente muito diferentes. Há muitas práticas que julgam serem do Islã são determinadas pelo contexto cultural. Os contextos culturais modificam algumas “regras”, sugestões prescritas. Como no Brasil não há acesso à tâmara com tanta facilidade, quando o for quebrar o jejum, ele toma um copo de água, come um pedaço de melancia, toma uma sopa. O Islã facilita a prática, não há exageros, busca-se sempre o equilíbrio. O Islã é uma religião fácil, as pessoas se adaptam ao que está prescrito, independentemente do contexto. O Islã é único, mas os muçulmanos são plurais.

Flávia: Explique como foi a origem do Islã em nosso país?
Francirosy: Nas caravelas do Pedro Álvares Cabral, já havia muçulmanos. Depois, foi registrada uma presença muito forte desse povo no período da escravidão, com o malês, escravos africanos de origem islâmica. Em 1835, aconteceu a revolta dos Malês. Uma grande parte dos muçulmanos no Brasil é descendente de imigrantes sírios e libaneses, que vieram na leva da Primeira Guerra Mundial, com a dissolução do Império Otomano. Há também muçulmanos de origem palestina, marroquina, egípcia, etc. Durante a Guerra do Líbano, em 1982, também houve uma grande imigração. A primeira mesquita construída no Brasil foi a Mesquita Brasil, em São Paulo, e a segunda em Barretos. O Brasil tem recebido refugiados palestinos, sírios e de diversos países da África.

Flávia: No cenário religioso brasileiro, como se configura o Islã, hoje?
Francirosy: A maior comunidade está em São Paulo, a segunda no Paraná, mas há muçulmanos no Rio de Janeiro, em Brasília, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul. Há 17 anos, havia uma média de 10% a 15% de convertidos nas comunidades islâmicas. Só em janeiro deste ano, tive conhecimento de 32 conversões, mas acredito que tenha ocorrido duas vezes mais. Há comunidades muito estruturadas, como a de Belém do Pará, a de Salvador, a de João Pessoa e a de Brasília, elas se espalham pelo Brasil inteiro.  Atualmente, uns 15 sheiks falam português, existe sheik brasileiro, e o crescimento de comunidades sunitas e xiitas. A expansão no Islã ocorreu em todas as regiões. Há cerca de um milhão e meio de muçulmanos no Brasil.

Flávia: Em Ribeirão Preto, tivemos casos de muçulmanas que deixaram de usar o Hijab devido às críticas recebidas. O uso do lenço, às vezes, é visto no ocidente como um símbolo de opressão. Como vê essa questão?
Francirosy: O uso do Hijab é uma obrigação religiosa, assim sendo, a mulher muçulmana sabe que tem que usar. Segundo o Islã, nenhum homem pode obrigar a mulher a usar essa vestimenta. A nossa sociedade vive uma hipocrisia muito grande, pois qualifica o conceito de modernidade ao não uso da vestimenta, qualifica como moderno o que não é islâmico, como se a mulher muçulmana, que usa o Hijab fosse ignorante, sem instrução, sem personalidade, sem interesse sexual, desconectada da vida social. Ao contrário, o véu não cobre pensamento. A ignorância está naquele que a olha como se ela fosse ignorante. Para as mulheres muçulmanas, o uso do véu a enobrece, a empodera e revela a religiosidade.
O Islã é muito interessante do ponto de vista feminino: é a única religião monoteísta que aprova o divórcio, em que o sexo não é utilizado para procriação apenas, mas, também, para a obtenção de prazer. O marido tem obrigação de dar prazer à sua mulher, que pode, inclusive, pedir o divórcio se o marido não a satisfaz sexualmente.
Quanto à herança, a mulher possui mais benefícios que muitos homens: o homem tem que distribuir entre as irmãs o que é dele e o que a mulher recebe é dela. A mulher não precisa trabalhar, o homem paga as contas, e, se ela trabalha, não é obrigada a contribuir com a casa. Um dos Hadith do profeta diz que todo muçulmano, homem ou mulher, tem obrigação de procurar o conhecimento. Quanto se observa uma situação contrária a isso é porque a pessoa não segue a religião.
Acho lamentável que uma pessoa que professa uma fé, cumpre com suas obrigações religiosas como qualquer fiel de outras religiões tenha que tirar a vestimenta, o sinal da sua religiosidade, em nome de uma promoção no serviço ou de sua segurança. Em Ribeirão Preto, uma muçulmana sentiu-se ameaçada por estar professando a religião que ela acredita. Isso mostra que vivemos em um país de intolerância. É preciso olhar para o outro com respeito, com generosidade. Quem sou eu para dizer que o outro é infeliz ou que ele está sendo obrigado? Pergunte às muçulmanas.  Dar os parabéns a uma mulher que tirou o Hijab é não entender o significado da sua religião, é desconsiderar os sentimentos dela. É preciso entender o significado da religião que ela professa, e sua concepção de pessoa. Temos que rever os pressupostos de que o que nosso mundo e nossa religião são melhores do que os do outro. Vivemos em mundo de diversidades,  é preciso aprender a respeitá-las.

Flávia: Em Ribeirão Preto e no Brasil, com o fenômeno da globalização, há mais casos de brasileiras casadas com muçulmanos estrangeiros. Como vê esse novo fenômeno?
Francirosy: Há várias questões. Há desde casos de “caça-passaporte”, crescendo após a primavera árabe, com homens desempregados, que vêm atrás de passaporte; há a Internet, que aproxima as pessoas rapidamente, mas há encantos e desencantos, pois ao se relacionar com alguém de religião e de cultura diferente, você compra o pacote inteiro. E comprar sem conhecê-lo é complicado. Esses relacionamentos também ocorrem por meio de cursos e de viagens. Os casamentos interculturais sempre existiram, mas, com a Internet, eles ocorrem mais. No Islã, não existe namoro, a afinidade acontece à distância e o contato se estabelece quando se encontram, no casamento. É feita uma prévia do casamento, que a gente pode chamar de noivado, e dali a alguns meses, o casamento em si é realizado.  O contato pelas redes sociais aproxima e possibilita esse ‘namoro’, mas o encontro é a realização do casamento em si.

Flávia: O Islã está sempre na mídia. Como você vê essa exposição?
Francirosy: Acho ótimo, quanto mais falarem do Islã, melhor. As pessoas que têm pensamento crítico, não acreditarão nas exposições negativas, procurarão saber o que é a religião e o que é ser muçulmano. Desde o 11 de setembro, as pessoas têm procurado as mesquitas em busca de conhecimento, se sentem bem recebidas e começam a perceber que o Islã é muito diferente daquele propagado pela mídia. Os meios de comunicação passam o que não é o Islã e a comunidade islâmica passa o que é a religião: o cotidiano do muçulmano, como ele reza e como vive.
No Brasil, há grupos religiosos aos quais não temos acesso, principalmente as mulheres, mas qualquer brasileiro pode entrar em numa mesquita, a diferença é que nela há o espaço feminino e o espaço masculino separados, e as mulheres, muçulmanas ou não, têm que cobrir a cabeça para entrar nesse espaço religioso.
A mídia tem feito um trabalho tão negativo, que acaba revertendo positivamente, desperta a atenção, mas, aqueles que estão acostumados a sentar no sofá e a receber a informação sem pensar, nem processar, vão continuar não questionando e aceitando o que é transmitido. Os que questionam se sentem incomodados: o Islã é a segunda religião que mais cresce no mundo, se todo muçulmano fosse terrorista, não haveria mais mundo. Há algo tendencioso nessas informações, é preciso pensar nas questões políticas, econômicas e culturais. O que incomoda no Islã? A imprensa faz um desserviço, rotula, mas não quer conhecer uma comunidade muçulmana? A questão é: você quer obter o conhecimento sentado em sua cadeira ou quer o conhecimento por meio da vivência?

Flávia: Qual é o papel da Academia no que se refere aos estudos de comunidades religiosas?
Francirosy: Nós antropólogos e psicólogos temos um papel importante de desconstrução de estereótipos. Houve um crescimento do número de estudiosos: em 2014 havia 56 pesquisadores de Islã no Brasil, formando outros estudiosos que descontroem essa realidade tão negativa. É diferente quando se questiona temas polêmicos como o terrorismo conhecendo a religião e os muçulmanos.
No ano passado, tivemos oito candidatos muçulmanos para deputado estadual e federal. A Academia tem ajudado a pensar os assuntos relacionados ao Islã. A Antropologia, mais do que as demais áreas do conhecimento, tem investido em pesquisas de campo em contextos islâmicos. Como visamos à produção de etnografias, é fundamental estarmos nas comunidades para entender os significados atribuídos a cada ritual que praticam. Os trabalhos de antropólogos têm sido fundamentais para o conhecimento e o entendimento dessas comunidades e dos contextos nos quais o Islã está presente.

Flávia: Como o Departamento de Psicologia da USP está inserido nas pesquisas do universo islâmico?
Francirosy: Sou muito grata ao Departamento de Psicologia da USP por ter abraçado os cursos que venho programando sobre a temática islâmica e árabe. Estou em Ribeirão Preto há quase cinco anos e trago alguns cursos que eu já ministrava na USP de São Paulo, na Antropologia. Temos que entender a psicologia do ponto de vista social, porque a sociedade brasileira é plural. Se abrir para isso é um grande mérito do Departamento, que está à frente de muitos outros porque abraça a diversidade, promove o aprendizado, o diálogo entre concepções diferentes de religiosidades.
Os cursos de extensão são uma porta aberta à comunidade e atraem não só alunos USP, mas interessados da comunidade local e da região. A única forma de diminuir a diferença entre as pessoas e aumentar o respeito em relação ao outro é por meio da produção do conhecimento. Esses cursos são para alunos e professores, inclusive das escolas públicas. No segundo semestre, faremos um curso específico sobre mulheres muçulmanas para tentar descontruir a ideia de mulher sofrida e submissa. Temos que investir na psicologia intercultural. A universidade tem que estar aberta a todos os grupos, a todos os credos, a toda produção de conhecimento.


Flávia: Que estudos que você desenvolve, no momento, com a temática islâmica?
Francirosy: Para um futuro próximo, pretendo desenvolver para minha Livre Docência uma tese sobre peregrinação do (Hajj, Umrah) e a peregrinação Xia para descobrir o sentido delas e como elas transformam os fiéis, e fazer um documentário sobre os peregrinos. Há também uma pesquisa de fundo sobre o Islã político e tenho interesse em fazer um pós-doutorado em Oxford, com Tariq Ramadan, para pesquisar sobre a Irmandade Muçulmana. No momento, estou finalizando um documentário sobre o Malês, um projeto financiado pela FAPESP, coordenado pela minha orientadora Sylvia Caiuby Novaes.

Flávia: Se a religião tem com fundamento a paz, porque pessoas matam em nome do Islã?
Francirosy: A religião não ordena que se mate em nome dela, são as pessoas que o fazem em nome da religião. É necessário conhecer o que o Islã diz e comparar a conduta das pessoas à religião. O Islã dá o direito da legítima defesa e proíbe agressão, portanto é necessário analisar as situações e verificar o que é uma e o que é outra. Muitos usam o nome da religião, basta ver no período das Cruzadas.  O ex-presidente dos EUA, George Bush, também invocava, constantemente, o nome de Deus na “guerra ao terror”, e fez várias atrocidades com suas tropas, como na “ocupação” do Iraque. Os EUA também interferiram violentamente no Afeganistão e em outros contextos. No ano passado, 2.500 palestinos morreram na faixa de Gaza, sendo 500 crianças. A situação na qual se encontra o povo palestino é uma vergonha mundial e pouco se fala deles. Não podemos julgar a religião, no caso o judaísmo, pelo o que acontece na Palestina, mas sim os sionistas, portanto, não podemos julgar o Islã, e sim aqueles que dizem que seguem a religião. É preciso separar isto, senão olharemos sempre com as mesmas lentes e isto não é verdadeiro. Interessante é a reprodução de que há muçulmanos terroristas, mas não ouvimos dizer que sionistas são terroristas, mata-se criança, velhos, mulheres, famílias inteiras.

Flávia: Você acredita que nesses países onde estão ocorrendo esses conflitos, grupos estão usando o islamismo para impor ditaduras e reprimir manifestações?
Francirosy: Certamente, o Islã está sendo utilizado para fins que não são o proposito da religião. O Islã tem 1.400 anos não dá para reduzi-lo apenas aos conflitos existentes nos dias de hoje. Há contribuições valiosas de povos muçulmanos em várias áreas do conhecimento da Matemática às Artes. O que vemos nos dia de hoje é uma propaganda negativa contra os muçulmanos. Não podemos pensar países do Oriente Médio, tal qual pensamos o Ocidente, seria um equivoco usar a mesma medida para aferir qualquer entendimento. Estamos falando de uma cultura muito mais antiga, que carrega pressuposto de organização social e política, muito diversa da nossa.  Uma sociedade, família muçulmana se pensa de forma coletiva e não individual. O problema de um é problema de todos. Não dá para avaliar da mesma forma a realidade do Egito com a da Arábia Saudita, são países completamente diferentes, com jurisprudências islâmicas diferentes. No Islã, há cinco escolas de jurisprudência, quatro sunitas e uma xiita. Então, há diversidade de pensamentos, reflexões divergentes entre os sábios. É preciso descontruir o nosso orientalismo, conforme já apontava Edward Said, e compreender a realidade islâmica dentro de cada contexto.

UM TRABALHO PELA PAZ

Francirosy é pesquisadora de comunidades islâmicas há 17 anos. Respeitada entre os muçulmanos (de todas as vertentes) por seu trabalho incansável na compreensão do outro. Desde que chegou à FFCLRP-USP, não mede esforços para tornar esse espaço um local de interlocução com a sociedade. Promoveu curso de “Língua e Cultura Árabe”, curso sobre “História do Islã – Perspectiva Antropológica” e já estruturou seu próximo curso sobre “Mulheres e Islã”. Aprovou com outros colegas, a Moção a favor da causa Palestina em agosto de 2014. Uma intelectual compromissada com as causas sociais e engajada em promover diálogos que levem as pessoas a pensarem para além dos estereótipos. Apaixonada pela sua profissão, a professora é um exemplo de pessoa otimista, que acredita e trabalha por uma cultura de paz.
Flávia Andréa Pasqualin, doutoranda em psicologia

Texto: Carla Mimessi
Fotos: Julio Sian

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