Prioridade máxima

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o advogado Gustavo Russignoli Bugalho e o procurador da República André Menezes observam sobre o combate à corrupção

Como procurador pelo Ministério Público Federal em Ribeirão Preto, desde fevereiro de 2002, André Menezes já teve várias experiências de combate à corrupção. Uma das primeiras ações que contaram com a sua participação foi a Operação Lince, deflagrada no dia 23 de junho de 2004, que gerou a condenação de policiais federais corruptos atuantes na delegacia local. De lá para cá, foram vários episódios envolvendo servidores corruptos, sendo algumas investigações bem-sucedidas e outras frustradas. 

De acordo com André, o Ministério Público (MP) brasileiro, nos últimos anos, tem conseguido resultados cada vez melhores no combate à corrupção, graças ao bom nível técnico das atuações. “Os bons resultados não são fruto de André reforça que a melhor máquina fiscalizadora é a sociedadeheroísmo, mas do crescente profissionalismo do órgão, baseado na boa preparação dos novos agentes e na constante reciclagem daqueles que estão em atividade”, ressalta o procurador. Ele também enfatiza a enorme importância da parceria com vários outros órgãos de controle e fiscalização, como a Polícia Federal, a Receita, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) e os tribunais de conta.

Por ser um mal muito arraigado, a corrupção é um crime difícil de se apurar, uma vez que costuma ser tratado com sigilo, deixando poucos vestígios. “Ninguém passa recibo de propina e há um pacto de silêncio entre os envolvidos”, explica. Daí o motivo pelo qual, diante de suspeitas do delito, é natural buscar, pontualmente, a compressão de certas garantias individuais, como a inviolabilidade domiciliar ou de comunicações. Para o procurador, tais direitos são intocáveis apenas enquanto empregados para fins insuspeitos. “Não estou insinuando que o MP não tenha problemas ou não precise de aperfeiçoamento. Ao contrário, a crítica é bem-vinda, sendo eu mesmo um crítico de algumas posturas do órgão”, salienta. Apesar disso, segundo André, é preciso ter cuidado para não incorrer em generalizações, o mesmo valendo em relação a outras instituições.

No encontro com o advogado Gustavo Russignoli Bugalho, André lembra que o brasileiro aprecia generalizações, que são perigosas porque afastam o pensamento crítico e depurador. Especializado em Direito Administrativo, Eleitoral e de Relações Governamentais, Gustavo questiona o procurador sobre vários temas, em especial, sobre os papéis do MP diante da crise moral que a instituição política vivencia no Brasil. Além disso, comentam as medidas de anticorrupção e a necessidade de mecanismos para detectar e fiscalizar os diversos atos de corrupção evidenciados na mídia local e nacional. 

Gustavo: O que o senhor entende por corrupção?
André:
Corrupção é um vocábulo com, no mínimo, dois sentidos principais. A versão mais estrita e técnica vem do próprio Direito Penal, que descreve como delito o fato de um funcionário público agir de forma desviada por ter recebido alguma vantagem. Importante ressaltar que a mera solicitação ou a oferta de tal vantagem já configura o crime. É a prostituição da função pública. Só que é muito pior do que a prostituição sexual, pois o que a prostituta vende pertence a ela — é o próprio corpo. Já o funcionário corrupto vende algo que não pertence a ele, e sim, à coletividade, que é o funcionamento das instituições, dos serviços públicos. Em um sentido mais amplo, a corrupção é o desvirtuamento ou o enfraquecimento das instituições; a perda de referenciais éticos nas relações entre os indivíduos e o Estado; um rebaixamento geral do nível de civilidade nas relações humanas. Esse conceito ampliado abarca outros delitos, tais como tráfico de influência, peculato e outras condutas que, embora não sejam criminosas, representam clara afronta à moralidade pública.

Gustavo: O Brasil está preparado para detectar e fiscalizar com eficiência os diversos atos de corrupção de que temos conhecimento diariamente?
André:
Em termos de instrumental investigativo e judiciário, estamos caminhando bem, a despeito de alguns solavancos. Os órgãos policiais e judiciários estão despertando — e não só no plano retórico — para a necessidade de autodepuração e de correção de problemas históricos, como a morosidade, a truculência, a demora na incorporação de novas tecnologias e a falta de planejamento e de metas. As pessoas começam a perceber que um sistema com tamanhas disfunções não interessa a ninguém, nem mesmo aos privilegiados que podem se manter imunes a essas mazelas. A melhor “máquina fiscalizadora” que pode existir é difusa, não um órgão público ou um conjunto deles: é a sociedade. Os brasileiros começam a tomar gosto pelos protestos, pelas marchas nas ruas, o que é bom, mas não é tudo. Essa explosão dos protestos precisa ser canalizada para a combustão controlada do permanente exercício da cidadania. A sociedade civil precisa se organizar, e maneiras não faltam.

Gustavo: Quais seriam as ferramentas para isso?
André:
Infelizmente, aquela que seria a forma mais propícia está desmoralizada: os partidos políticos. No entanto, além de podermos resgatar um mínimo de funcionalidade e decência para os partidos com uma boa reforma, existem várias outras formas apartidárias. Estão ganhando força as ONGs de fiscalização do poder público. Aqui, temos o Observatório Social de Ribeirão Preto, um tipo de movimento ainda novo, mas muito bem-vindo, que se apoia na consciência de que o Estado é uma parte de nós, um segmento da própria sociedade, e não algo apartado e distante, ora maldoso, ora salvador. Sem essa compreensão por parte da sociedade, por mais eficientes que sejam os órgãos públicos incumbidos do combate à corrupção, remarão contra a maré.

Gustavo: Como o gestor pode prevenir sua empresa de envolvimentos em episódios de escândalos de corrupção?
André:
A melhor prevenção é a empresa funcionar num ambiente limpo, de intolerância à corrupção. Assim, não será alvo de propostas indecentes e, se quiser, concorrerá por contratos públicos com base na sua competência. O empresário precisa contribuir para a limpeza do seu ambiente de negócios, e isso não se faz sozinho. Deve aliar-se aos outros empresários do mesmo ramo ou praça e combinar que todos tenham a mesma atitude diante de propostas obscuras: a recusa, ou, melhor ainda, a recusa seguida de denúncia bem formulada aos órgãos “O brasileiro precisa desenvolver um pensamento mais crítico e depurador”, aponta Gustavocompetentes.

Gustavo: Isso não é esperar demais do empresário?
André:
De forma alguma. É um erro esperar tudo do poder público. A ética é o melhor guia. Ser ético, por incrível que pareça, é, antes de tudo, ser “esperto”. O Jorge Ben Jor, músico e compositor, foi quem melhor traduziu esse conceito: “se malandro soubesse o quanto é bom ser honesto, seria honesto só de malandragem”. Quando o empresário aceita o esquema, no fundo esquece que passará o resto da vida em sociedade e que a sociedade pode tratá-lo de forma pior ou melhor — isso vale também para seus filhos e netos. A corrupção, mais do que fazer sangrar os cofres públicos, mina a competência, a inventividade, a inovação. Isso porque o sujeito passa a estar em determinado cargo público apenas em função de sua capacidade “arrecadatória”. Emprega seu tempo e energia só para se manter no cargo e continuar atuando como parasita. Como ele vai ter tempo para agir proativamente no interesse da coletividade? Impossível!

Gustavo: A ética vem para jogar luz sobre tudo isso? 
André:
Exatamente. Para mostrar ao empresário que, se ele agir coletivamente, tem como deixar de alimentar esse caldeirão tóxico que depois, em algum momento, volta-se contra ele mesmo. Agirá não apenas por “ser honesto” — embora o ideal é que a honestidade pessoal também seja decisiva — , mas por ser “esperto”, inteligente. Por mais que a aceitação do esquema seja momentaneamente vantajosa, ele entende que, no cômputo geral, sairá perdendo: viverá num país em que não pode sequer usufruir os espaços públicos, em que as regras não valem nada, em que a carga tributária é extorsiva, em que outros se sentirão livres para passar por cima dele a todo instante. Nada disso deveria ser normal numa nação com a riqueza bruta do Brasil. A corrupção é o grande fermento disso tudo. Nossa muralha de mazelas é construída caprichosamente dia a dia, e os tijolos são os esquemas corruptos. É simplesmente insano alimentar um sistema assim.

Gustavo: Que garantia o empresário pode ter de que os demais agirão em prol da limpeza do ambiente de negócios?
André:
Obviamente não há garantia, mas é certo que uma atuação coletiva e bem focada se traduz, a médio prazo, em ganhos permanentes. Os empresários de uma determinada praça podem criar métodos para monitorarem uns aos outros. Além disso, podem contar com ONGs de estímulo à transparência, de modo que o empresário assediado disponha de um canal para relatar as irregularidades sem precisar se expor. Essa combinação é, a meu ver, o melhor sistema de prevenção. Uma vez implementado, ninguém mais “ganha” com base em um esquema, mas todos ganham com base na melhora da gestão pública. Quando só um ganha desonestamente, todos perdem, inclusive o “ganhador”.

Gustavo: É necessária atualização ou reedição da Lei de Licitações? 
André:
Não sou especialista no assunto, mas é evidente que algo não está funcionando bem. Na modelagem instrumental, apostaria na constante incorporação das tecnologias para maximizar a competitividade e o controle social das compras públicas. Já na parte jurídica, com destaque para a aquisição de grandes obras, está na hora de pensarmos em soluções como o “performance bond”, tipo de contrato acessório já testado em outros países por meio do qual se introduz um terceiro sujeito na relação, uma seguradora que se responsabiliza pelo cumprimento do contrato principal, especialmente quanto ao prazo e pela qualidade da obra. Assim, embora seja necessário remunerar a seguradora, haverá um particular com fortíssimo interesse econômico em reprimir qualquer estouro de prazo ou de orçamento, que são os usuais pretextos para os famosos aditivos.

O encontro foi acompanhado pela jornalista Rose RubiniGustavo: O atual cenário de caos e de crise institucional poderia levantar o debate de uma nova assembleia constituinte para os próximos anos?
André:
Levantar o debate sim, mas daí a prosperar vai uma longa distância. Uma nova ordenação constitucional, a meu ver, decorre ou de uma ruptura muito severa, como na Venezuela, ou de uma preparação muito longa, que não encontra espaço numa agenda de turbulências. Não vejo problema em discutir isso, embora eu seja muito mais simpático à estabilidade constitucional.

Gustavo: Falar em qualquer reforma institucional me parece ser bastante arriscado, não? 
André:
Estamos em um momento delicado, de opiniões inflamadas, de muita polarização. Nossa democracia tem sido duramente testada. Com respeito às vozes contrárias, acredito que ela está prevalecendo. Realmente, acho que apenas as pessoas que já passaram da meia-idade viveram dias tão arriscados como os atuais.

Gustavo: Como começou o projeto das chamadas 10 Medidas contra a Corrupção, desenvolvido pelo Ministério Público Federal?
André:
Esse projeto nasceu da constatação de que, sendo a Lava-Jato um ponto fora da curva, era preciso criar um ambiente para que deixasse de ser. Não se trata de estimular um Estado policialesco, ao contrário. Tivéssemos antes esse outro ambiente, a podridão não teria atingido a estratosfera, a exigir agora um combate de contornos épicos. Muitas operações anteriores poderiam ter antecipado em vários anos o trabalho da Lava-Jato, mas foram anuladas por razões fragilíssimas. Isso criou a crença de que, com advogados remunerados a peso de ouro, o sujeito estava imune à lei. Os advogados faziam seu trabalho, claro. Não há nada de errado em defender o cliente com todos os recursos disponíveis, mas havia um desequilíbrio grande nas altas esferas. O somatório das brechas e possíveis escapatórias jurídicas, muito mais do que propiciar uma defesa justa e efetiva, criava uma verdadeira blindagem. Agora, estamos todos sentindo na pele os efeitos dessa impunidade.

Gustavo: O projeto em questão sofreu algumas alterações substanciais na calada da noite na Câmara dos Deputados. Como avalia essas mudanças?
André:
Nesse ponto, faço coro com os colegas da Operação: é importante combater o abuso de autoridade e é desejável aprimorar a legislação, mas o projeto é muito, muito ruim. Tão ruim que, para salvá-lo, o juiz Sérgio Moro chegou a sugerir a inclusão de um dispositivo para deixar claro que interpretação jurídica não é crime. Isso beira o bizarro. O que um advogado acharia se a interpretação que faz em favor de seu cliente pudesse incriminá-lo? Ninguém no Ministério Público ou na magistratura apoiaria algo assim em relação à advocacia. Se for para expor as autoridades, melhor perguntar logo à sociedade se ela realmente deseja ter uma Justiça criminal eficiente ou se prefere uma que funcione apenas para remediados e coitados. É isso que o país quer mesmo depois de ver aonde a impunidade grossa nos leva? Claro que precisamos evoluir. A aposentadoria como punição a magistrados, por exemplo, é um escárnio, já tinha que ter acabado.

Gustavo: Poderemos deixar de ter a sensação de impunidade à qual nos acostumamos, em relação à classe política?
André:
Ainda é cedo para afirmar que superamos a impunidade em definitivo, mas a caminhada até aqui foi importante. Uma coisa é certa: está caindo em desuso aquele bordão do “tudo acaba em pizza”. Precisamos continuar, respeitando sempre garantias individuais, buscando a correta interpretação das leis e da Constituição e evitando excessos personalistas. Na Itália, por ocasião da Operação Mãos Limpas, a sociedade “jogou a toalha” no meio do caminho. Os brasileiros, ao que parece, estão mostrando uma resiliência maior, estão de parabéns.

Gustavo: O senhor acredita que a Operação Sevandija termina por aí ou é apenas a ponta de um novelo?
André:
Como a Sevandija está na Justiça estadual, onde não atuo, só sei o que a mídia publicou. Parece ser um trabalho hercúleo, muito bem feito, pois provas fortes estão vindo à tona. Então, meu palpite é que há conexões e meandros ainda não descortinados, até porque é comum que os vários esquemas se entrelacem. A propósito disso, há uma piada entre investigadores: o mundo inteiro teria uma única quadrilha. Nós precisamos, podemos e merecemos descolar dela. 

Índole combativa

“O momento não poderia ser mais propício. Os acontecimentos em Brasília, as notícias recentes em Ribeirão Preto. Sensação de vivermos num roteiro de filme sobre o submundo do poder. As manifestações que crescem nas ruas, contrariamente à balbúrdia que se instalou há alguns anos na política brasileira. Do outro lado, pessoas envolvidas com a administração pública que demonstram desprezo por qualquer iniciativa que objetive moralizar a relação entre o público e o privado. Neste panorama, na calada da noite, surgem tentativas, por parte do Congresso Nacional, de travar a atuação do Ministério Público e da Magistratura. Ninguém melhor do que uma pessoa reconhecida pelo combate à corrupção, pela incansável tentativa de moralizar a administração pública no universo ribeirãopretano, que é uma imagem refletida do momento político nacional, como o procurador André Menezes, para falar sobre suas visões, aspirações e temores quanto a explicitar todas as questões envolvendo a classe política brasileira e o que podemos aguardar para um futuro breve.” Gustavo Russignoli Bugalho é advogado, professor Direito Público e empresário.

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