Uma paixão nacional

Uma paixão nacional

A cerveja foi o tema principal do bate-papo entre Giuliano Zamboni e Bia Amorim

Formada em Hotelaria pelo Senac de Águas de São Pedro, Bia Amorim vem construindo uma carreira consolidada no ramo cervejeiro. Essa história começou a ser traçada em São Paulo, onde trabalhou em diferentes bares e restaurantes. Tal experiência foi fundamental para que Bia entendesse a importância do setor de serviços. Hoje em dia, não basta ter conhecimento. Para se diferenciar em um mercado tão competitivo, o estabelecimento deve investir em profissionais simpáticos e atenciosos, que proporcionem um atendimento especial para os clientes. Depois de se mudar para Ribeirão Preto, em busca de qualidade de vida, Bia foi contratada por uma importadora de vinhos da capital e passou a ministrar aulas de Bebidas e Bar para os cursos de Gastronomia, Turismo e Hotelaria de uma tradicional faculdade da cidade.
Atendendo ao pedido de Giuliano, a sommelière lista dez rótulos que a conquistaram em 2016
A afinidade com o universo das bebidas já existia e se mostrava forte, mas, a cerveja, particularmente, não despertava tanto seu interesse. Essa relação foi completamente alterada em meados de 2010, quando a então professora levou um grupo de alunos para uma visita técnica à Cervejaria Colorado. Ao provar uma Appia fresca, direto do tanque, Bia se rendeu à nova paixão. Por obra do destino, recebeu um convite do fundador da fábrica, Marcelo Carneiro, para integrar a equipe. A partir daí, nunca mais saiu do meio. Tornou-se uma referência no assunto. Na entrevista concedida a Giuliano Zamboni, a sommelière conta um pouco sobre os bastidores do mercado, lista alguns rótulos imperdíveis e dá dicas de harmonizações. 

Giuliano: A função do sommelier é antiga. O termo, de origem francesa, sofreu modificações de acordo com a época. Já foi utilizado, por exemplo, para identificar o trabalhador que amarrava as cargas nos navios.  Hoje, é o profissional especializado no serviço de bares e de restaurantes capacitado para sugerir a bebida ideal para o cliente, para elaborar as cartas de cervejas e indicar as harmonizações adequadas. A atuação do sommelier se restringe a essas atividades ou é ainda mais abrangente? 
Bia:
O papel do sommelier é bem amplo. Acredito que o serviço seja, hoje, a nossa função fundamental. Ou seja, um administrador pode se formar sommelier e atuar na gestão do seu negócio de venda de bebidas, mas o atendimento ao cliente é o maior gargalo que temos. Transmitir o conhecimento para que apreciadores e novos consumidores não tenham uma experiência ruim é constitucional. Para que possamos ter maior acerto nas questões sensoriais, não podemos nos limitar à cerveja. O domínio do mundo dos cafés, dos destilados, dos vinhos, dos saquês e dos chás é importante para nos tornarmos profissionais completos. Um sommelier que queira fazer carreira deve ir além dos muros da cerveja. Precisa, também, estudar culinária.

Giuliano: Como você se tornou uma sommelière? 
Bia:
Em 2010, fiz uma especialização no Senac, em São Paulo, com diploma da Doemens Academy, da Alemanha. O curso durou duas semanas, intensivo, com aulas de manhã e à tarde, incluindo degustações às cegas todos os dias. Continuo estudando, sempre, pois é um imenso mar de conhecimento que a cerveja nos proporciona. Tenho o desafio de valorizar a experiência de quem consome a bebida, melhorar o relacionamento das pessoas com o álcool, de forma que saibam o limite entre o que é prazeroso e aquilo que atrapalha a vida social, a pessoal e o trabalho.

Giuliano: O que é cerveja artesanal para você?
Bia:
A cerveja artesanal nos faz voltar às origens. Deixamos de beber pelo álcool, paramos de gelar ao extremo e conhecemos o que é paladar. Não é só o produto feito “à mão”. É o produto feito com carinho, com zelo, por muita ou pouca gente, em uma fábrica de fundo de quintal ou em bonitos tanques brilhantes e novos. Para mim, a cerveja artesanal usa matéria-prima de primeira, respeita o consumidor, pensa nos colaboradores e visa o bem de forma geral. É uma bebida que briga pelo justo, mostra que alma é mais importante que rótulo. Cada um prefere um sabor, um aroma, um estilo. A cerveja artesanal contempla essa pluralidade, sendo só e nada mais do que cerveja.

Giuliano: Como está o mercado nacional? O que o cliente procura em uma cerveja artesanal?
Bia:
O setor está em evolução constante. Acredito que buscamos por sabor, textura, conceito e conexão. A cultura da cerveja artesanal está diretamente relacionada à maneira como a bebida é consumida. Cada garrafa vem com informação, com detalhamento, com uma história. Isso gera empatia. Se o rótulo tiver todas as outras qualidades desejadas, o consumidor se torna fiel. Os lançamentos são, também, uma motivação a mais para sempre provar algo novo.

Giuliano: A nossa região segue o mesmo ritmo? O que Ribeirão Preto tem de especial para oferecer?
Bia:
A região continua mantendo as tradições. Ribeirão Preto tem 130 anos de história cervejeira e já abrigou mais fábricas do que tem atualmente. Passamos por um momento de crescimento no nicho de cervejas artesanais, na produção e nos serviços. Com um número cada vez maior de fábricas, todo o setor tem avanços. A cidade se diferencia por ter outras empresas fortes em segmentos complementares: duas fábricas de chopeiras, uma de barris de inox, uma de equipamentos de brasagem e duas grandes indústrias de vidro fornecendo garrafas a menos de 100 km. Temos distribuidores, vendedores e consultores, além de bares, restaurantes, choperias, empórios, barbearias, postos de gasolina, pubs e food trucks, que já vendem as cervejas produzidas aqui. Existem, ainda, lojas de insumo e cursos de formação, tanto para profissionais quanto para cervejeiros caseiros, os homebrews. O mercado se fortalece ainda mais com o turismo. Tour cervejeiro, Rota da Cerveja e eventos, como o Ipa Day e o Slow Brew RP, atraem pessoas de fora. Encontros pequenos e direcionados acontecem, também, para os que já foram “beervangelizados”. 

Giuliano: Com esse “boom” da cerveja artesanal, podemos esperar o crescimento do número de sommeliers?
Bia:
O mercado tem absorvido a profissão lentamente, diria que de forma orgânica. Normalmente, quem desempenha outra função acaba fazendo um curso e abre novas frentes de trabalho. Espero que o pessoal que tem se dedicado a estudar, também se dedique a agir. Disseminar cultura cervejeira não é, exatamente, lucrativo, mas é o único caminho para fazer com que os hábitos, enraizados em muitos anos de pilsens, possam ser mudados. Aí “A cultura da cerveja artesanal está diretamente relacionada com a maneira como a bebida é consumida”, comenta Biasim, teremos mais trabalho e, consequentemente, poderemos comprar ainda mais cerveja.

Giuliano: Você, frequentemente, é convidada para compor a banca de jurados em concursos cervejeiros. Quais são os critérios para análise? O que caracteriza uma boa cerveja?
Bia:
A cerveja deve cumprir alguns parâmetros específicos de acordo com o tipo de concurso e do guia que está sendo utilizado para análise, como o Beer Judge Certification Program, o BJCP, ou o Brewers Association, por exemplo. Resumidamente, a bebida precisa ser bem feita e não pode ter defeitos aparentes. Escolher o estilo certo na hora de inscrever a cerveja é um diferencial, pois, para julgar, seguimos as métricas e não o gosto pessoal.

Giuliano: Para os leitores que estão começando a descobrir o mundo das cervejas artesanais, como deve ser esse processo de iniciação?
Bia:
Para quem está começando, costumo indicar cervejas que tenham aromas mais florais e cítricos ou, então, aromas com notas de chocolate e de café. Pensando nisso, a cor não conta muito. Importante é, talvez, estar no meio termo de tudo. Nem muito amarga, nem muito doce. Estilos como Witbier, Helles, Weiss, Marzen, Vienna Lager, Schwarzbier, Pale Ale (não as que puxam para americanas), Dry Stout e Brown Porter podem ser boas pedidas.

Giuliano: Você poderia apontar 10 rótulos que um apreciador de cervejas precisa conhecer? 
Bia:
Impossível montar uma relação definitiva. Conforme experimento novos rótulos, essa lista é alterada. A escolha de uma cerveja depende do momento, do gosto da pessoa, do ambiente em que ela está inserida, das companhias que estão ao seu lado, entre outros fatores. É uma experiência sensorial complexa. O que posso fazer é uma seleção das cervejas que tomei em 2016 e que gostei muito. São elas: 
1 - Caramuru – Vienna Lager – Cervejaria Pratinha, de Ribeirão Preto
2 - Altbier – Cervejaria Bamberg, de Votorantim
3 - Saci – Stout – Cervejaria Nacional, de São Paulo e de Ribeirão Preto 
4 - Opera Seven´r Inn – Dry Stout – Cervejaria Opera, de Araraquara
5 - Cacau Wee – Strong 
Scoth Ale – Cervejaria Bodebrown, de Curitiba
6 - Caramba – Saison – 2 cabeças, do Rio de Janeiro (produzida em Ribeirão Preto pela Invicta)
7 - Solstice d´été – Berliner Weiss Framboase – Dieu du Ciel, do Canadá
8 - Horny Pig – Session IPA – Cervejaria Blondine, de Itupeva e de São Paulo
9 - Sofie-Saison – Goose Islad, dos Estados Unidos
10 - Rizoma – Double IPA – Dogma Cervejaria Cigana, de São Paulo

A jornalista Paula Zuliani acompanhou o bate-papo entre Giuliano e BiaGiuliano: Quais são os principais conselhos que você daria para uma pessoa que está interessada em seguir seus passos na sommelieria?
Bia:
Comece estudando em casa. Não acredite que o sommelier toma cerveja o tempo todo. Isso é pura ilusão. Seu salário quase nunca será suficiente para comprar tudo aquilo que você quer beber. Aprenda a servir os clientes. Além da parte técnica, seja uma pessoa simpática. Informe-se de diferentes maneiras. Leia. Vá a palestras e participe de eventos. Ensine seu paladar. Saiba ter limites com a bebida. A linha entre o trabalho e o lazer é tênue, mas sempre existe. Para encerrar, lembre-se que sommelier não é mestre cervejeiro e nem homebrew. 

Giuliano: Como funciona o processo de harmonização das cervejas com os pratos? Para realizar essa composição com sucesso o sommelier precisa entender, também, de gastronomia? 
Bia:
Temos formas mais teóricas de harmonizar, estilos que ajudam a chegar em uma boa matemática do sabor, como o corte, a complementação, a semelhança e o contraste. O corte é quando acontece uma limpeza no paladar. Carbonatação, acidez, força alcoólica e amargor são propriedades que, em situações específicas, ajudam a amenizar outros gostos. A harmonização por complementação prevê que as qualidades de cada item, combinadas, exaltem as características do prato e da cerveja. O que um não tinha, o outro agora tem. Pratos leves, cervejas leves. Pratos fortes, cervejas fortes, e assim por diante: essa é a fórmula que chamamos de semelhança, ou seja, os sabores iguais combinam por afinidade. Já o contraste acontece quando um elemento é muito diferente do outro, mas, no fim, eles se equilibram. Os clássicos do contraste são acidez e doçura, picância e refrescância, amargor e doçura, e robustez e leveza. Eu, particularmente, deixo a intuição trabalhar e faço vários testes. Nem sempre dá certo, mas a diversão é garantida.   

Giuliano: Existem algumas dicas básicas para os iniciantes na arte da harmonização?
Bia:
Existem sim. Vou citar apenas quatro exemplos, algo como o bê-a-bá da harmonização: hambúrguer com cerveja Vienna Lager, queijo tipo brie com cerveja Weiss (trigo), bolinho de bacalhau com Witbier e cheesecake com Fruit Lambic. Pode experimentar sem medo. Não tem erro.

Giuliano: Para finalizarmos, quais são as novidades que podemos esperar de você e do mundo cervejeiro para 2017?
Bia:
Estou sempre em busca de fazer o que gosto, ajustando os erros e melhorando os acertos. Este ano foi muito positivo. Pude enxergar o mercado com outros olhos. Para 2017, espero trazer mais do que cultura cervejeira para Ribeirão Preto. O intuito é disseminar a cultura gastronômica, promovendo eventos com curadorias. Se a cerveja não for o assunto principal nesses encontros, ela estará nos copos daqueles que brindam os sabores e os propósitos, na vida ou nas panelas. No mundo cervejeiro, podemos esperar muitas novidades, estilos com mais cara de Brasil, com frutas nativas. Acredito, também, que as embalagens vão fazer a diferença. Mais latas, mais “growlers” e mais cervejas no PET. Isso significa que, cada vez mais, teremos cerveja fresca. 

Jogo Rápido

Cerveja nacional preferida: Caramuru Vienna, da Pratinha
Cerveja internacional preferida: Rosé d´Hibiscus Dieu Du Ciel, produzida no Canadá
Harmonização preferida: Joelho de porco com Doppelbock (foi o que me veio à mente mais rapidamente) 
Evento cervejeiro mais marcante: O Festival de Blumenau, em Santa Catarina
?Cervejaria do ano: Todas as de Ribeirão Preto

As mulheres e o mercado cervejeiro

“Bia Amorim conquistou reconhecimento e respeito em um ambiente ainda majoritariamente masculino, com muita testosterona, barba e uma certa dose de brutalidade. Atuando, intensamente, no ramo cervejeiro, a sommelière realiza constantes harmonizações, cartas de cervejas, cursos de serviços e treinamento de brigada. Também escreve para diversos meios de comunicação e é jurada em concursos por todo o país. A participação crescente das mulheres no setor é extremamente positiva. Cada dia mais especializadas, elas se destacam no cenário nacional e internacional, disseminando a cultura da cerveja, não só como um item de degustação informal, mas, sim, como uma bebida complexa, com variedades, receitas e tecnologias bem diversas. A relação entre o universo feminino e a bebida tão amada pelos brasileiros é histórica. Começa no cultivo de grãos na região da Mesopotâmia, há, aproximadamente, nove mil anos, passando pela criação da massa de pão que, um dia, em contato com a água e deixada ao relento, fermentou, dando origem à cerveja. Em todos os processos, elas estavam presentes. Séculos depois, as mulheres ganham um outro papel nessa dinâmica. Bia dá o exemplo ao nos mostrar que podemos ter experiências mágicas a partir do entendimento e do domínio sobre o mundo cervejeiro.” Giuliano Zamboni, sommelier de cerveja.



Texto: Paula Zuliani.
Fotos: Júlio Sian.
Agradecimento: Cervejaria Nacional

Compartilhar: