A Boa-fé objetiva e a gestão empresarial

A Boa-fé objetiva e a gestão empresarial

A gestão e representação da sociedade limitada assenta em três pilares, que se complementam: nos princípios de governança corporativa, que inspiram e norteiam a atuação diuturna dos administradores; nos deveres de diligência, lealdade e informação, e na “responsabilidade social da empresa”, que abarca uma gama de situações, que vão desde as estritamente financeiras e econômicas até preocupações com a biodiversidade e o ecossistema.

 

O princípio das empresas hoje é o da perpetuidade!

 

A confiança é pressuposto de todo e qualquer negócio. É a força motriz da economia porquanto permite a troca de serviços e/ou produtos e benefícios mútuos entre as pessoas. É, de certo modo, um meio indispensável para o surgimento e conclusão de negócios.

Com a evolução da sociedade, da tecnologia e da globalização os negócios jurídicos, além de serem instrumentos econômicos, passaram a exercer uma “função social” que juntamente com a boa-fé objetiva tornaram-se princípios norteadores do vigente Código Civil.

Neste contexto, o principio da boa-fé objetiva, pode ser compreendido como um conceito ético de conduta, moldado nas ideias de proceder com correção, com dignidade, pautada a atitude nos princípios da honestidade, da boa intenção e no propósito de a ninguém prejudicar, consoante estabelecem o artigo 422 do Código Civil e artigo 4º, inciso III, do Código de defesa do consumidor.

Em resumo, a boa-fé objetiva constitui um modelo de conduta social ou um padrão ético de comportamento, que impõe, concretamente, a todo cidadão que, nas suas relações, atue com honestidade, lealdade e probidade.

De fato, é um modelo de probidade de comportamento que ecoa em todo o ordenamento jurídico, servindo como referência para a gestão de sociedades limitadas, vinculando-se, deste modo, os seus administradores.

Feitas essas considerações, viralizou recentemente uma declaração da chef Paola Carosella [1], ex-jurada do programa de TV Masterchef, em que ela revelou os bastidores do seu restaurante no Brasil.

Segundo Paola, ela só conseguiu abrir seu restaurante com a ajuda de sete colegas argentinos: eles entraram com o capital, enquanto ela tocava diretamente a atividade.

Contudo, após certo tempo, ela confessou que não estava mais interessada no modelo desse negócio, e assim, tomou as seguintes atitudes “estratégicas”, conforme os seus dizeres: (i) “Abandonar um pouco” o restaurante; (ii) deixar o faturamento cair por “três ou quatro meses”; e (iii) com a desvalorização do empreendimento, adquirir a participação dos sócios investidores.   

A “estratégia” (sic), assim entendida pela entrevistadora Ana Paula Padrão e vista pela jornalista como “arriscada”, “funcionou” segundo a famosa chef.

Levando em consideração estes aspectos, e partindo do pressuposto da veracidade do ocorrido, conforme relatado pela referida empreendedora, como podemos analisar esse casos nos termos da lei vigente e conforme a temática proposta?

Preliminarmente, percebe-se que Paola e seus sócios celebraram um contrato social para constituição da sociedade, de modo que ela pode ter violado o artigo 422 do Código Civil, que diz que “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.

Deste modo, como Paola provavelmente era a administradora da sociedade, ela também pode ter violado o art. 1.011 do CC, que diz que “o administrador da sociedade deverá ter, no exercício de suas funções, o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios”.

Na sequência, ainda na condição de administradora, Paola pode ter sua conduta enquadrada no art. 1.016 do CC, que diz que “os administradores respondem solidariamente perante a sociedade e os terceiros prejudicados, por culpa no desempenho de suas funções”.  

Por óbvio, que a análise aqui é limitada e se funda apenas na narrativa da própria empresária, sendo certo que podem ter ocorrido fatores desconhecidos que alterem o exame da questão.

Entretanto, com o intuito didático, face as suas complexidades e repetição no cotidiano corporativo, para um advogado empresarialista propicia algumas inquietações e consequente reflexão: há a possibilidade de postular alguma medida judicial contra ela e em defesa dos sócios investidores?

Conforme é cediço, em empresas LTDA, a administração pode ser feita por uma ou mais pessoas, desde que esteja previsto em contrato. Além disso, também pode ser administrada por profissionais qualificados em gestão de empresas, mesmo que eles não sejam sócios. Isso também deve estar estipulado no contrato social e não é preciso de um prazo de mandato para os administradores.

Embora muitas pessoas acreditem que o administrador é o dono da empresa, nem sempre é assim. O administrador pode ser um dos sócios ou gerenciar a empresa como um empresário individual. Contudo, os sócios podem optar por contratar um terceiro para exercer esse cargo.

Portanto, o administrador é a pessoa que atua diretamente na gestão da empresa, em seu cotidiano, para que a organização alcance suas metas e objetivos, de acordo com sua produtividade e eficiência.

Nesta toada, para garantir a eficiência da gestão empresarial e adequar a atuação dos diretores e administradores aos interesses das sociedades, o legislador definiu deveres que os administradores de sociedade devem observar.

Em apertada síntese, podemos expor as seguintes observações:

1. O Contrato Social deve prever os limites das funções e poderes conferidos ao(s) administrador(es) da sociedade;

2. Se o administrador ultrapassar os limites impostos a ele no Contrato Social, será responsabilizado por seus atos e que estes não produzirão efeitos em relação à sociedade;

3. Deveres do Administrador - O administrador da sociedade deve agir com cuidado, diligência e lealdade perante a sociedade, sendo a ele vetado atuar com conflito de interesse e utilizar-se de patrimônio da sociedade em benefício próprio ou de terceiros. (artigos 1.011 e 1.017 do CC);

4. BUSINESS JUDGEMENT RULE - Desde que aja de acordo com a lei, o Contrato Social e observe os deveres do cargo, o administrador não deverá ser responsabilizado caso seus atos tragam prejuízo à sociedade, pois tem liberdade de julgamento ao tomar suas decisões administrativas e negociais.

A "Business Judgement Rule" é a regra segundo a qual o administrador de uma sociedade precisa ter liberdade de julgamento na tomada de decisão (discricionariedade). 

Apesar de ser uma teoria estrangeira, ela é aplicável no nosso Direito pátrio, com fundamento no artigo 159 § 6º da Lei das Sociedades Anônimas, que por sua vez, pode ser aplicada também as limitadas, em face da regência supletiva prevista no parágrafo único do artigo 1053 do Código Civil.

Conforme inteligência deste dispositivo, o mérito das decisões dos administradores é insuscetível de alteração judicial, desde que atue dentro da Lei e do contrato social e tenha cumprido com os seus deveres fiduciários, há a presunção de que o administrador está agindo de boa-fé e que o ato de gestão visa ao melhor interesse da empresa.

Neste caso, caberia ao juiz apenas julgar se o administrador agiu contra a lei ou o contrato social ou de má-fé, por meio de fraude, conflito de interesse, ilegalidade ou negligência grave.

Voltando a casuística citada, a chef levantou polêmica com sua entrevista. Acredito que há detalhes não revelados. De qualquer forma, é bastante reprovável a conduta descrita por ela a título de “estratégia”, por violar a boa-fé objetiva que deve pautar toda a relação empresarial, debochando, por conseguinte, da Lei e da lisura nos negócios.

A sua atitude constitui "comportamento contraditório" (uma das facetas da boa-fé objetiva) e ela se utilizou da própria torpeza para falir algo que deveria ser abraçado social e juridicamente com maestria.

Para além de consequências empresariais propriamente ditas, poderá sujeita-la a consequências de cunho civil por perdas e danos, a depender da prova quanto à extensão dos supostos danos, sem prejuízo da possibilidade de eventual anulação do negócio jurídico pelo dolo (artigo 145, CC) ou perdas e danos decorrentes do dolo acidental (art. 146, CC).

Finalmente, percebemos deste episódio a importância da consultoria societária, como blindagem quanto aos efeitos deletérios da má gestão e como medida corretiva, visando à destituição do administrador faltoso com segurança jurídica.

Havendo dúvidas sobre a responsabilidade dos administradores e da aprovação de contas na sociedade limitada, é primordial a consulta perante um advogado empresarial, enquanto aporte intelectual estratégico para a sustentação, o crescimento e a perpetuidade dos negócios e das atividades da empresa.

*Foto:  Free-Photos por Unsplash (Imagem ilustrativa).

 

Notas:

[1] Canal de Cortes Oficial - Jornal da Cidade Online. PAOLA CAROSELLA REVELA 'OLÉ' EM SÓCIOS PARA FICAR COM RESTAURANTE 'SÓ PARA ELA'! Youtube. Publicado em 24 de mai. de 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=YCyiBeG9DYk&t=112s. Capturado em: 27/05/2022.

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