Contratos inteligentes e a nova lógica de consumo

Contratos inteligentes e a nova lógica de consumo

O próximo passo da evolução humana será se tornar uma raça que poderá colocar sua confiança no próximo, não nos seus legisladores ou políticos” (S.E. Sever – escritor).

“Odeio clientes. Porque clientes têm uma escolha e você como dono do negócio não quer que eles escolham a outra opção. Por isso eles precisam se tornar fãs”.

"Seja lá o que você acha que você vende, o que você vende é relacionamento" (Bruce Dickinson).

Entenda o que são os smart contracts. As ideias de livre iniciativa, de protagonismo, e respeito à força obrigatória dos contratos, trazidos pela liberdade e autodeterminação destes contratos, devem ter o condão de criar uma nova lógica de consumo, guiada pela cooperação voluntária, prosperidade, riqueza, e eticidade dos negócios.

 

Os contratos legais com que habitualmente deparamos estão escritos em linguagem frequentemente ambígua, rebuscada e sujeita a interpretações diversas.

Com o advento da internet, e do comércio eletrônico, surgiram os denominados contratos inteligentes – “smart contracts”.

A sua denominação foi utilizada pela primeira vez pelo cientista da computação e criptógrafo Nick Szabo [1] em 1995.

A novel tecnologia é disruptiva, porquanto é um acordo escrito em código de software, e, deste modo, como linguagem de programação, é claro e objetivo.

O contrato se executa de maneira automática desde que algumas condições pré-definidas sejam devidamente cumpridas.

São transações digitais, diferentes dos contratos tradicionais: o uso do vernáculo para a confecção de suas cláusulas é substituída pela linguagem de programação Solidity (similar ao Java Script e C++) [2].

Os direitos e obrigações estabelecidas por meio da escrita, a título de cláusulas contratuais são programados como funções, neste novo modelo de contrato, dependentes de eventos/gatilhos pré-programados, para serem executados de forma automática.

E tudo ocorre em uma rede descentralizada de computadores. Não há nada que as partes possam fazer para evitar o cumprimento do contrato, porquanto se prescinde de intermediários, sendo, portanto, suas cláusulas, ora funções, autoexecutáveis e irreversíveis.

Smart Contracts, como bem define Tim Swanson [3], são protocolos de computador que facilitam, verificam, executam e obrigam os termos de um acordo comercial.

No tocante ao meio virtual onde há as transações desta espécie, o especialista Marcus Paulo Roder [4] analisa:

“Os contratos inteligentes são usualmente programados na plataforma Etherum que, muito embora também seja um token, possui o diferencial de também ser uma máquina virtual (Etherum Virtual Machine) em rede pública capaz de executar os scripts desses contratos num ambiente distribuído de confiança e reputação e que visa à redução de custos com intermediadores tradicionais”

A Etherum  é uma:

“Plataforma descentralizada capaz de executar contratos inteligentes e aplicações descentralizadas usando a tecnologia blockchain: São aplicações que funcionam exatamente como programadas sem qualquer possibilidade de censura, fraude ou interferência de terceiros, isso porque o contrato é imutável. Ele possui uma máquina virtual descentralizada Turing completude, a Ethereum Virtual Machine (EVM), que pode executar scripts usando uma rede internacional de nós públicos” [5]

Os contratos inteligentes almejam automatizar muitas das ações que historicamente se fizeram por meio de sistemas legais, com redução de seus custos e aumento de sua velocidade e segurança. Há economia de recursos e tempo.

A tecnologia ainda é incipiente, extremamente sofisticada, sendo utilizada por determinado nicho de negócio, e não de forma massificada, porém com forte possibilidade de causar uma profunda transformação social, econômica e jurídica sobre o tema.

A tendência para as gerações futuras é que surjam pontos de entrada de fácil utilização pelos usuários, desconstruindo a imagem de direcionamento exclusivo para desenvolvedores de software que temos hoje.

Num futuro próximo, os “leigos”, isto é, qualquer usuário, poderá elaborar e/ou configurar contratos inteligentes por meio de linguagens simplificadas e de forma segura, como se fosse um aplicativo de celular.

No mercado contemporâneo já há startups, deste novo nicho de desapego à propriedade e de intermediários, mormente no segmento de locação de veículos. Usando o aplicativo da empresa, os motoristas podem encontrar carros espalhados na cidade de São Paulo/SP e destravá-los pelo celular. Depois do uso, basta que o cliente devolva o carro no mesmo local. O pagamento, claro, é feito on-line.

O que se espera dos contratos inteligentes é que, em um futuro próximo, toda a sociedade se beneficie das vantagens econômicas que eles proporcionam, por meio da sua intensa difusão. A sua concretização elimina os intermediários, fornecendo robustez de confiança e integração de mercados.

Na espécie, há o ápice da autonomia da vontade e da liberdade de iniciativa, aos particulares, capitaneados por uma crescente demanda por mais personalização e menos burocracia no mercado, como exemplo, os bancos digitais.

O Estado não é fonte de riqueza. As relações econômicas se desenvolvem com a interação de demanda e serviços mútuos ocorridos e desenvolvidos no âmbito da sociedade, cuja complexidade não pode ser planificada pelo legislador.

A tecnologia em estudo tem como objetivo extirpar comportamentos maliciosos e de má-fé de muitos contratantes com deliberada premeditação em assumir uma obrigação, e não a cumprir, em face da notoriedade das delongas e burocracia do sistema legal, na qual poderá se beneficiar.   

Em decorrência de suas próprias características, quais sejam: autoexecutabilidade, fiabilidade, obrigatoriedade e irretroatividade, esse comportamento censurável não seria possível, pela autonomia destes contratos, com economia de recursos e tempo.

In casu, a autoexecutabilidade do contrato, fará com que o devedor moroso, não utilize mais o bem, de forma ágil, e sem custos, em favor do credor, agraciado pela tecnologia de fechaduras inteligente [6], além de contribuir, em logo prazo, com o escopo social da educação, concernente ao cumprimento das obrigações. 

A visão puramente jurídica do processo, hipervalorizando a forma e o formalismo ao arrepio dos problemas e incômodos vivenciados pelas partes, tornaram-no distante dos anseios da sociedade a ponto de se colocar como objeto de desconfiança e descrédito.

Neste contexto, surge a tecnologia, para preencher essa lacuna.

Não se está aqui defendendo uma “anarquia” digital e sim a necessidade de conferir maior autonomia e liberdade aos particulares no âmbito dos negócios, bem como, da necessidade de uma reflexão quanto à figura do judiciário e dos profissionais do direito perante esse novo ecossistema.

Importante ressaltar que o próprio Poder Público, já está fazendo uso desta tecnologia.

A Junta Comercial do Estado do Ceará – JUCEC implementou, em maio de 2018, a tecnologia Blockchain em seu banco de dados para garantir a segurança das informações coletadas. Por conseguinte, após a aprovação de um documento pela JUCEC o registro é feito na Blockchain para impedir que possa ser modificado depois por terceiros [7].

Os contratos inteligentes são tipos de contratos eletrônicos, a eles são aplicadas as regras do direito contratual, possuindo validade e eficácia no ordenamento jurídico. Eventuais desconformidades, cometidos pelo “programador”, não ficará a margem da apreciação judicial, podendo o contratante prejudicado invocar a tutela de obrigação de fazer com pedido liminar, ou outra medida judicial, dependendo da casuística.

Somente a experiência revelará a dimensão exata desta nova realidade contratual: a sua posição e consolidação perante a sociedade e ao judiciário.

No atual estágio a maior contribuição desta nova era contratual é de servir como uma provocação, para a necessidade de se compreender o processo, como um sistema que pretenda satisfazer os direitos das pessoas, de acordo com suas especificidades, mais aderente à realidade e de forma ágil, em vez de tutelá-los de forma inquisitorial e autoritário.

As ideias de livre iniciativa, de protagonismo, e respeito à força obrigatória dos contratos [8], trazidos pela liberdade e autodeterminação destes contratos, devem ter o condão de criar uma nova cultura, guiada pela cooperação voluntária, prosperidade, riqueza, e eticidade dos negócios.

Afinal de contas, como bem pondera o renomado economista Milton Friedman [9]:

“Nossa sociedade é o que fazemos dela. Podemos moldar nossas instituições. As características físicas e humanas limitam as alternativas disponíveis a nós. Mas nenhuma nos impede, se quisermos de construir uma sociedade que se fundamenta essencialmente na cooperação voluntária para organizar tanto a atividade econômica quanto as outras atividades, uma sociedade que preserva e amplia a liberdade humana, que mantém o governo em seu lugar, tornando-o nosso servo e não deixando que se torne nosso senhor.”

Embora pairem incertezas no meio jurídico quanto a sua tutela, as inovações disruptivas sempre exigem uma maior reciclagem.

Não se pode admitir ofensa à garantia constitucional da liberdade de iniciativa simplesmente pela não compreensão da complexidade desta nova modalidade de contrato.

Observa-se que não há tradição de enaltecimento do direito fundamental a livre iniciativa e da autonomia da vontade no âmbito jurídico, em especial da nossa academia. 

O mundo sofreu mudanças profundas e rápidas nas últimas décadas, para não dizer nos últimos anos. Grande parte da crise atual, e das incertezas do futuro, está em nossa incapacidade de compreender estas mudanças, as novas tendências do mercado, e cada empresário entender efetivamente o seu próprio negócio.

Há uma crescente inovação disruptiva quanto aos hábitos de consumo. Sob esta nova perspectiva comportamental, o consumidor procura mais serviços e abre mão de ter os produtos ou uma unidade física. Vejam-se os exemplos dos streamings, aplicativos de compartilhamento de carros, dentre outros.

À medida que os consumidores demandam esse tipo de serviço, nascem soluções interessantes e instrumentos para atendê-los, como é o caso dos contratos inteligentes.

Com efeito, o judiciário, não pode ficar a margem deste novo ecossistema tecnológico onde há maior protagonismo econômico dos particulares, sendo necessário refletir e absorver essas mudanças, sem ficar preso na falsa dicotomia entre promover o progresso econômico ou assegurar direitos.

Na atual era da sociedade da informação e do conhecimento, o protagonismo econômico dos agentes, representado pelos smart contracts, mostra-se um importante vetor para a transformação do status quo vigente, de modo a posicionar o indivíduo ao seu devido lugar, como criador de riquezas, consagrando-se a autonomia da vontade em toda a sua plenitude.

Notas

[1] [2] SZABO, NICK. Formalizing and Securing Relationships on Public Network, 1997. Disponível em: <https://ojphi.org/ojs/index.php/fm/rt/printerFriendly/548/469>. Acesso em: 07 abr. 2018.

[3] SWANSON, Tim. Great Chain of Numbers: a guide to Smart Contracts, Smart Property and Trustless Asset Managemen (English Edition). São Francisco: Amazon, 2014.

[4] RODER, Marcus Paulo. Blockchain e o Direito: o futuro dos contratos. Disponível em: https://www.vgplaw.com.br/blockchain-e-o-direito-o-futuro-dos-contratos/. Capturado em 07/12/19.

[5] CONTEÚDO aberto. In: Wikipédia: a enciclopédia livre. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ethereum. Capturado em 07/12/19.

[6] O grande desafio é desenvolver a infraestrutura necessária para que os contratos inteligentes possam ser executados. Isso inclui a criação de fechaduras inteligentes que respondam às ordens desses contratos. Elas farão a hipotética devedora “A” não conseguir abrir o carro por ter deixado de pagar as prestações. A empresa Slock.it desenvolve uma rede universal de compartilhamento (universal sharing network) na qual, espera-se, vão interagir carros, casas e outros ativos da economia compartilhada. Será uma peça fundamental para o desenvolvimento dos contratos inteligentes na nova economia (Federico Ast. Como faremos justiça? – A chegada dos contratos inteligentes. In: ÉPOCA negócios. 9/12/2018. Internet: <https://epocanegocios.globo.com> (com adaptações).

[7] Jucec implementa tecnologia blockchain para fornecer segurança do banco de dados. JUCEC. Disponível em: <https://www.jucec.ce.gov.br/2018/05/22/jucec-implementa-tecnologia-blockchain-para-fortalecer-segurancado-banco-de-dados/>. Acesso em: 14 abr. 2018

[8] O princípio da força obrigatória dos contratos, apesar de não estar positivado no ordenamento jurídico brasileiro, é um princípio geral do Direito, de caráter universal transcendente, de forma que “estipulado validamente seu conteúdo, vale dizer, definidos os direitos e obrigações de cada parte, as respectivas cláusulas têm, para os contratantes, força obrigatória” (GOMES, Orlando apud GOMES, Sidney Campos. Algumas restrições ao princípio da força obrigatória dos contratos no compromisso de compra e venda de imóvel. Disponível em: <https://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=566>. Acesso em: 09 fev. 2006). A finalidade deste princípio é outorgar segurança aos negócios jurídicos, incentivando a sua concretização, com a possibilidade de execução do patrimônio da parte inadimplente, como meio de coerção e pacificação social, além de garantir a existência do princípio da autonomia da vontade.

[9] FRIEDMAN, Milton, Rose. Livre para escolher. Tradução Ligia Filgueiras. 1ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2015.

*Foto:  Free-Photos por Pixabay (Imagem ilustrativa).

 

 

 

 

 

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