De volta a "1984"
Resenha da obra distópica de George Orwell e sua análise e conjuntura política atual.
"Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado" (George Orwell)
21 de janeiro de 1950. Falece George Orwell[1], escritor, jornalista e ensaísta político inglês, nascido na Índia Britânica, vítima de tuberculose. Autor, entre outros, de “A Revolução dos Bichos” (1945) e “1984” (1949). Este último publicado meses antes de sua morte e que vamos falar um pouco.
Setenta quatro anos se passaram. E a obra “1984” de George Orwell permanece atual. Graças a um dos seus temas: o poder. Apesar de não haver um conceito uníssono sobre o vocábulo[2], pode ser compreendido como algo que é exercido por um agente capaz de impor sua vontade a outrem, independentemente da sua anuência. Não mais, por força física, de épocas passadas e sim por meio de discursos, como a do “Grande Irmão”.
Na novela distópica, era perfeitamente possível um homem estar fora da prisão e ainda não ser livre, imerso em uma bolha psicológica. O projeto era apenas de poder, do partido único – ingsoc. Não havia, portanto, um projeto de país. As armas não eram letais e sim mentais, como a novilíngua e os discursos.
Transpondo para hoje, seria essa obra uma ficção?
Em certos momentos, parece que não. Há a sensação de uma continuação do trama em nossa realidade. A título exemplificativo citamos a polarização ideológica, o negacionismo econômico em torno da questão dos juros e da afronta a autonomia do banco central, sem olvidar daquela da saúde, sobre as vacinas, o loteamento de cargos no executivo, o “centrão”[3], em nosso país.
No Brasil e no mundo, muitos formadores de opinião, autoridades e meios de comunicação têm normalizado o duplopensar no debate público de diversas formas: defendem a democracia buscando cancelar as vozes dissonantes; acusam de fake news manipulando a verdade; defendem a saúde e promovem discurso antivacina, ofendem religiões alegando que elas praticam discurso de ódio; promovem censura com o pretexto de salvaguardar a diversidade de visões de mundo.
Considerando esse contexto, há certa similaridade ao conceito orwelliano de “duplopensar”[4]. O exemplo vem de um preceito do próprio livro quando a narrativa diz que, se o Partido afirma que 2 + 2 é igual a 5, então 2 + 2 será igual a 5, mesmo que você saiba que a resposta correta seja 4.
Outro exemplo trazida pela obra: o governo do partido único dissemina a ideia de que "guerra é paz" e que "ignorância é força", enquanto os cidadãos acreditam sinceramente nessas declarações contraditórias.
Embora seja uma criação literária, a sua relevância não pode ser maginalizada no contexto atual.
Vivemos em uma era de informações abundantes e frequentemente contraditórias, onde as redes sociais, políticos e meios de comunicação muitas vezes promovem narrativas divergentes e muitas vezes fake news, em detrimento da ciência.
Além disso, as redes sociais e os algoritmos de recomendação frequentemente nos expõem a informações que reforçam nossas crenças existentes, criando uma bolha de confirmação que dificulta a consideração de pontos de vista opostos, ou seja, o desenvolvimento da ciência e a busca da verdade e do contraditório.
A novilíngua é outro tema relevante trazido no seu enredo. Consiste em um sistema linguístico elaborado pelos detentores do poder da ficção orwelliana que, quando finalizado e colocado em uso, impediria a expressão de opiniões contrárias ao regime e a existência de outras línguas.
Trancrevo um dos diálogos do narrador-personagem Winston com Syme[5]:
“É uma coisa linda a destruição das palavras..
(..) Então a Revolução estará completa quando a língua estiver perfeita.
O segredo é passar diretamente da ideia à resposta automática.
“Você não vê que todo o objetivo da Novalíngua é reduzir o alcance do pensamento? No final, tornaremos literalmente impossível o crime do pensamento, porque não haverá palavras para expressá-lo.
Todo conceito que possa ser necessário será expresso por uma única palavra, com seu significado rigidamente definido e todos os seus significados subsidiários apagados e esquecidos. Agora, na décima primeira edição, não estamos longe desse ponto. Mas o processo ainda vai continuar muito tempo depois que você e eu estivermos mortos. A cada ano teremos menos palavras, e o alcance da consciência sempre se torna um pouco menor. Mesmo agora, é claro, não há razão ou desculpa para cometer crimes de pensamento. É apenas uma questão de autodisciplina, de controle da realidade. Mas no final não haverá nenhuma necessidade nem mesmo disso. A Revolução estará completa quando a linguagem for perfeita. Novalíngua é Socing e Socing é Novalíngua”
No mundo real a linguagem neutra, mostra-se perigosa, porquanto é utilizada muitas vezes, nos canais oficiais do governo vigente, em detrimento daquela do seu povo, como se fosse imposta. Há que se defender a liberdade de criação coletiva, anônima e espontânea da língua, contudo, não pode ter o condão de servir de artifício ideológico para destruir os costumes, as tradições, e a liberdade em seu sentido macro (pensamento, opinião, cultural) e a autodeterminação dos povos.
Ademais, o seu uso pode acarretar em prejuízos a educação básica; será mais um ‘ruído’ no processo de ensino-aprendizagem da lectoescrita.
Levando em consideração estes aspectos, denota-se a existência de um projeto apenas de poder e não de país, hodiernamente, situação muita assemelhada com o romance distópico citado.
O país está dividido; as pessoas rotuladas, imersas em uma polarização ideológica conforme o espectro político defendido.
Nexte contexto, o momento é de discutir divergências e encontrar agendas comuns e não do “partido único” da novela. Podemos elencar:
a. Reforma administrativa, reduzindo o tamanho da máquina (privatizações, cortar altos salários e privilégios e etc) ;
b. Reforma tributária: simplificar, facilitar e melhorar o sistema tributário brasileiro, gerando impactos positivos na produtividade e no crescimento do país;
c. Respeito as leis de responsabilidade fiscal, teto de gastos e da autonomia do Banco Central (deveriam ser protegidos por meio de cláusula pétrea na constituição federal);
d. Programas públicos de treinamento, capacitação e reciclagem profissional, tendo a tecnologia e o empreendedorismo como prioridade, em parceria com o setor privado (vide o exemplo das universidades corporativas, hubs de inovação e parques tecnológicos);
e. Combate a corrupção: as investigações das autoridades (fisco, policiais e etc.) devem se aprimorar no mesmo ritmo das tecnologias, sendo necessária uma maior especialização nos métodos investigativos;
f. Respeito as leis da economia. Manter, acima de tudo, a estabilidade da moeda e inflação sob controle, de modo a atrair o capital local e estrangeiro para investir e ajudar a economia crescer, criar novos postos de trabalho, renda e prosperidade.
Todo estadista e formulador de politica pública deve zelar pela gestão, contabilidade responsável e acima de tudo, ser amparado por um economista cujo foco de análise é sobre “tanto o efeito que se vê quanto aqueles que se devem prever”, como já dizia Frederic Bastiat[6].
Falta portanto, um projeto de país, de longo prazo, não bastantando, apenas a alternância do poder, para a completude da democracia.
Não podemos mais ter governos que apenas promovam mudanças cosméticas e que se preocupem somente com a reeleição, ou no projeto para se perpetuar no poder. O populismo, a falta de uma cultura de educação e responsabilidade financeira, associado a uma baixa escolaridade e discernimento das camadas mais pobres, ora vítimas e objetos de sua ação, são entraves à sua prosperidade.
Uma medida sugerida seria a maior disseminação de Think tanks[7] da sociedade civil, prestigiando-se a ciência em detrimento da ideologia, o contraditório e o consenso no lugar da polarização, acompanhada de sabatinas públicas, como explica o Professor Kanitz[8]:
“Esse é o espaço público para discutir divergências e encontrar agendas comuns. Silenciosamente, discretamente, até obtermos consenso. Think tanks focados em políticas públicas baseadas em evidência, com dados e mecanismos de auditoria e acompanhamento. Multidisciplinares e pluralistas ideologicamente. Onde dois e eventualmente três, quatro, cinco polos poderão trabalhar juntos em vez de se digladiarem como hoje”.
Noutros termos, a agenda comum é promover o progresso econômico, social e econômico do Brasil como a busca de melhores índices de IDH, rankink doing business, entre outros indicadores, livres de demagogias e espectros ideológicos da linguagem (narrativas), tendo como norte a ciência e suas evidências, seja qual for o governo escolhido pelo sufrágio.
A economia é primordial para a vida das pessoas[9]. É preciso ter coerência e visão de longo prazo para mudarmos o Brasil, enquanto projeto de nação, com governança, seriedade, ética e respeito a ciência, transparência e condizente com a realidade de seus governados, ora contribuintes, e não massas de manobra. Façamos “1984” ser ficção novamente!
*Foto Free-Photos por Flickr (Imagem ilustrativa).
Notas
[1] Pseudônimo de Eric Arthur Blair.
[2] Para Norberto Bobbio, o poder é a capacidade de agir, que determina comportamentos de outras pessoas. Max Weber considerava que o poder estava relacionado à força do Estado para estabelecer uma relação de mando e obediência. Para Max Weber, há três tipos de poder e dominação, que são os seguintes: O legal, o tradicional e o carismático. O poder legal é baseado em determinada forma de regulamentação legal, como uma Constituição. O poder tradicional está baseado nos costumes e na tradição. O poder carismático está relacionado ao carisma de uma pessoa. Bertrand Russell entendia que opoder produzia certos efeitos desejados. Em sua concepção, ele seapresentava de três formas distintas: o poder físico, associado ao uso daforça, o psicológico, por intermédio de um sistema de recompensas e punições, e o mental, relacionado à capacidade de persuasão dos indivíduos. [3] No confuso quadro partidário atual, há os denominados “partidos nanicos” e os denominados “partidos de aluguel”: muitos deles participam de um jogo político que serve de massa de manobra para os grandes partidos políticos, principalmente em épocas eleitorais e na composição do Congresso Nacional.
[4] O termo "duplopensar" foi cunhado por George Orwell em seu romance "1984", publicado em 1949. No contexto da história, o duplopensar é a capacidade de manter duas crenças contraditórias em mente ao mesmo tempo e aceitá-las ambas como verdadeiras. É a habilidade de aceitar, sem questionamento, ideias opostas e inconciliáveis, tornando assim possível que o Estado totalitário do Partido manipule a realidade de acordo com seus interesses (ORWELL, op. cit pag. 456).
[5] Colega de Winston no Ministério da Verdade, um lexicógrafo envolvido na compilação de uma nova edição do Dicionário de Novilíngua.
[6] BASTIAT, Frederic. O Que Se Vê E O Que Não Se Vê. 2010. Editora Mises Brasil.
[7] Um laboratório de ideias, think tank, gabinete estratégico, centro de pensamento ou centro de reflexão, é uma instituição de pesquisa composta por especialistas que realizam investigações e defesas sobre tópicos reflexiva cuja função é a reflexão intelectual sobre assuntos de política social, estratégia política, economia, assuntos militares, de tecnologia e cultura. A maioria dos think tanks são organizações não-governamentais, mas algumas são agências semi-autônomas possuindo laços com o governo, partido políticos, empresas ou militares. CONTEÚDO aberto. In: Wikipédia: a enciclopédia livre. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Laborat%C3%B3rio_de_ideias.
[8] KANITZ. Stephen. Blog para se Pensar. Disponível em: https://blog.kanitz.com.br/.
[9] Empreendedores planejam seus investimentos e sua produção com base nos cálculos de lucros e prejuízos. Trabalhadores planejam seus orçamentos domésticos com base nos salários; e consumidores planejam seu padrão de consumo com base nos preços dos bens e serviços. A economia e a moeda são tão presentes no cotidiano das pessoas que Ludwig Von Mises já disse que uma moeda sólida representa uma liberdade civil básica, que deveria estar na mesma classe das constituições políticas e dos direitos humanos. MISES, Von Ludwig. The Principle of Sound Money. Disponível em: https://mises.org/library/principle-sound-money. Capturado em 14/11/22.
Referências Bibliográficas:
BOBBIO, N. Estado, governo e sociedade: fragmentos de um dicionário político. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.
BOBBIO, N. Estado, governo e sociedade: para uma teoria geral da política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
BOBBIO, N. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 13. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015.
WEBER, M. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1963.
ORWELL. George. 1984. Tradução de Wilson Velloso. 29ª edição. 2004. Companhia Editora Nacional.
RUSSELL, Bertrand. O poder: uma nova análise social. Editora: Companhia editora nacional. São Paulo: 1957.