De volta à caverna de Platão

De volta à caverna de Platão

As sombras foram transformadas em narrativas e bravatas e a opinião pública em correntes cabendo a ciência libertar os prisioneiros da caverna. 

 

“As massas nunca tiveram sede de verdade. Elas querem ilusões e não vivem sem elas” (Sigmund Freud)

 

Um certo pensador contemporâneo bravejou: “os livros de economia estão superados”. Para muitos, a sua fala foi algo trivial, típico de suas tradicionais bravatas.

 

Entretanto, episódios como esse faz ressurgir nas nossas mentes a alegoria ou mito da caverna de Platão.

 

O Mito da Caverna, ou Alegoria da Caverna, é uma história metafórica narrada por Platão por meio de um diálogo em seu livro “A República”.

 

Para Platão, a caverna simbolizava o mundo onde todos os seres humanos vivem. As sombras projetadas em seu interior representam a falsidade dos sentidos, enquanto as correntes significam os preconceitos e a opinião que aprisionam os seres humanos à ignorância e ao senso comum.

 

Platão descreve a importância do senso crítico e da razão para que os indivíduos possam se “libertar das correntes” e buscar o conhecimento verdadeiro, representado pelo mundo exterior à caverna.

 

O prisioneiro que se liberta das correntes e volta para ajudar seus iguais significa o papel do filósofo, aquele que tem como objetivo de libertar o máximo de pessoas da ignorância.

 

O Mito da Caverna chama atenção por manter-se atual. A alegoria de Platão pode ser interpretada como uma crítica aos crédulos que, por preguiça ou falta de interesse, não questionam a realidade e aceitam as ideias contidas em narrativas de pessoas midiáticas, como o exemplo de nosso personagem citado acima.

 

Em tempos de mentiras universais, o grande mal a ser combatido é a desinformação. Vemos com muito ceticismo a implementação de uma lei que possa combatê-la. Será preciso um esforço conjunto de governos, academia, sociedade civil, conselhos profissionais e empresas de tecnologia para promover a alfabetização e consequente responsabilidade digital.

 

A sinergia de todos estes envolvidos deve ser uníssona no sentido de não aceitar como óbvias e evidentes os fatos, as situações, e os comportamentos de nossa existência cotidiana; jamais aceitá‑los sem antes havê‑los investigado e compreendido. Noutros termos, devem exercer por meio de gestos concretos uma função educativa visando a formação de mentes proativas, desenvolvendo-se, por conseguinte a maturidade da inteligência e do caráter. 

 

Levando em consideração estes aspectos, tudo pode ser investigado, com base em evidências, por meio de investigação metódica e sistemática da realidade tendo como insumos o intelecto e como objeto as evidências (busca da razão e do conhecimento), sendo o livro uma fonte de conhecimento.

 

Por outro lado, todo e qualquer conhecimento é passível de crítica e possível de ser negado. Aliás, é justamente por conta disso que há desenvolvimento científico, já que o fato de um determinado conhecimento ser científico não o torna uma verdade definitiva, tampouco o torna imune a críticas.

 

Entende‑se aqui a existência do criticar em sua forma analítica, examinada, julgada a partir de determinados parâmetros técnicos, não necessariamente complexos, mas qualificados e, se necessário, quantificados. A crítica permitida ao conhecimento científico é a do comentário e da apreciação teórica, assumindo o papel de renovação, afirmação ou negação do que se estuda, do que se analisa. Assim, o sujeito torna‑se ativo no processo.

 

O cientista não se aproxima do objeto a ser estudado por paixão, mas sim pelo próprio estudo, pela análise, pela compreensão, pela possibilidade de dissecar, explicar a ocorrência dos fenômenos, por meio da abstração, observação, investigação, sistematização de ideias, interpretação, raciocínio e explicação, e não por meio de bravatas!

 

Feitas essas considerações, o mundo audiovisual, as experiências de metaverso e interatividade proporcionadas pela inteligência artifical (IA) são apenas um meio, enquanto complemento das virtudes humanas e não um processo de alienação.

 

Diferentemente do que pensa o senso comum, o virtual não se opõe ao real. Não há um mundo virtual (falso) e um mundo real (verdadeiro).

 

O ciberespaço diminui os limites impostos pelo nosso corpo biológico, ou seja, há uma ampliação nas possibilidades de interação. Por isso, automaticamente, ele é conhecido com um espaço virtual para criação e comunicação coletiva.

 

Neste contexto, como bem assevera Pether Thiel, “tecnologia significa complementaridade”. Noutros termos, a tecnologia está centrada no ser humano, como vetor de produtividade e não como substituto:

 

“No lado da oferta, os computadores são bem mais diferentes das pessoas do que duas pessoas quaisquer são diferentes entre si: homens e máquinas são bons em coisas fundamentalmente diferentes. As pessoas têm intencionalidade — forjamos planos e tomamos decisões em situações complicadas. Somos menos bons em compreender quantidades enormes de dados. Os computadores são exatamente o contrário: destacam-se no processamento eficiente de dados, mas lutam para fazer julgamentos básicos que seriam simples para qualquer ser humano” (THIEL, 2014, p. 104).

 

Nesta toada, os sistemas de inteligência artificial não possuem consciência própria ou senso de moralidade e ética - pelo menos até agora - como pela subjetividade da definição do que é informação falsa ou prejudicial, conceito que, com a relatividade do mundo de hoje, pode causar discussões.

 

Os seres humanos são a única raça autoconsciente no mundo. Daí, explica a complementaridade acima exposta, porquanto somos protagonistas e artífice dos programas e demais aparatos da IA.

 

O ecossistema tecnológico não pode ser visto como mundo paralelo e/ou de alienação, deve estar vinculado a realidade e focado na geração de empregos, qualidade de vida, produtividade, enfim, conforme as necessidades humanas.

 

Por outro lado, exige maior reciclagem profissional/qualificação e maior investimento em educação, sob pena de aumento de vagas ociosas no trabalho; quanto maior o nível educacional e técnico, menor o risco de o emprego ser automatizado.

 

O profissional moderno é aquele multidisciplinar, adepto das ferramentas tecnológicas que atua de forma propositiva e não responsiva. As emoções são capazes de afugentar a razão e deturpar a realidade. Assim sendo, ele busca conhecimento seja por meio da academia ou de uma escola técnica, não sendo, portanto, mero usuário da tecnologia.

 

O futuro será de profissionais com formações e/ou especializações além da área de sua formação, promovendo um serviço de maior valor agregado ao cliente, para a estruturação dos negócios das empresas, ocupando um papel proativo e complementar às áreas de negócio.

 

No mesmo compasso, a cooperação constrói a sociedade, fortalecendo as conexões humanas. É o cerne da empatia, o pilar de sustentação das relações negociais, com maior engajamento, cocriação e absorção de talentos. Somente com esses insumos será possível navegar as incertezas, com ouvidos e olhar atentos a todos os stakeholders impactados no projeto.

 

Em resumo: (i) somos protagonistas do cenário econômico, com atuação propositiva - a atual geração da inteligência artificial traz os usuários para a função de copilotos – em vez de operarem no piloto automático (NADELLA, 2016); (ii) a qualidade do profissional fará toda diferença; (iii) a diversidade e a visão holística serão essenciais; (iii) propósito (progresso material, qualidade de vida, ética nos negócios, busca da verdade e defesa da ciência) e ideias compartilhadas (cocriação) e; (iv) a sustentabilidade como pilar de decisão.

 

A centralidade está no ser humano. Com o advento da IA e demais benesses, estruturas muito grandes e hierarquizadas não parecem fazer mais sentido. Em contrapartida, ela fornecerá as informações necessárias para a tomada de decisão, sem que para isso sejam necessárias infindáveis horas de pesquisa e busca de informações, delegando para a máquina os trabalhos burocráticos.

 

Contudo, voltando ao tema dos primeiros parágrafos, estamos cada vez mais imersos na caverna de Platão, sob o encanto das falsas narrativas e imbuidos de um sentimento de hostilidade em relação ao trabalho de intelectuais e seus objetos de pesquisa. Isto pode ser expresso de várias formas, tais como ataques aos méritos da ciência, educação, arte ou literatura, cujo movimento podemos denominar de anti-intelectualismo.

 

Sobre esta corrente, explica Isaac Asimov (ASIMOV, 1980):

 

“O anti-intelectualismo tem sido uma ameaça constante se insinuando na nossa vida política e cultural, alimentado pela falsa noção de que a democracia significa que "a minha ignorância é tão boa quanto o seu conhecimento".

 

No que tange as suas origens, as crenças anti-intelectuais podem surgir de uma variedade de fontes, entre as quais podemos citar: políticas autoritárias (ditaduras), populismo e polarização de ideologias.

 

Em sentido inverso, a busca pela fundamentação do conhecimento e a tentativa de se aproximar da verdade são movimentos característicos do espírito científico.

 

Sob este viés, elucida o escritor Saramago (SARAMAGO, 1922-2010):

 

“Nós nunca vivemos tanto na caverna de Platão como hoje. Hoje é que nós estamos de fato vivendo na caverna de Platão. Porque as próprias imagens que nos mostram da realidade, de tal maneira substituem a realidade.

 

“Nós estamos num mundo que chamamos mundo áudio-visual, nós estamos efetivamente a repetir a situação das pessoas aprisionadas ou atadas na caverna de Platão, olhando em frente, vendo sombras e acreditando que estas sombras são a realidade.

 

“Foi preciso passar todos esses séculos para que a caverna de Platão aparecesse finalmente num momento da historia da humanidade que é hoje.”

 

“Nesse mundo do audiovisual acaba que nos perdermos de nós próprios, do mundo que vivemos, sem saber bem quem somos, para que viemos e que sentido tem a vida”

 

“A maioria das coisas em nossas vidas acontecem sem muito sentido. Então somos todos avidos pelo significado”.

 

Se na ciência moderna o grande salto qualitativo do saber se dá por meio da passagem do senso comum para o conhecimento científico, na ciência pós‑moderna o salto é outro: trata‑se de transformar o conhecimento científico em senso comum. O conhecimento científico pós‑moderno só se realiza enquanto tal na medida em que se converte em senso comum.

 

Porém, inúmeros são os desafios e entraves como a falta de popularidade e acesso do grande público a ciência, muitas vezes visto como “perfumaria”. De fato, em muitas ocasiões, o cientista escreve majoritariamente para seus pares. O principal desafio é passar a escrever a mesma informação para públicos diferentes, com diversos graus de instrução e letramento científico.

 

De modo a enfrentar essa realidade o cientista não deve mais somente pensar em disseminar seu trabalho para seus pares, mas para a sociedade como um todo, cujo movimento é conhecido como ciência aberta[1]. Assim, deve tornar resultados e conclusões disponíveis para outros cientistas, tomadores de decisões e para a sociedade, preferencialmente de forma livre, transparente, gratuita, convidativa, além de utilizar as redes sociais como forma de difundir o conteúdo, por meio de infográficos, post carrossel e etc.

 

A vacina representada pelo conhecimento desempenha um relevante vetor de desenvolvimento econômico, responsável por criar empregos, renda e soluções para os problemas sociais. Afinal de contas, a realidade é mais forte do que a percepção dos fatos.

 

O populismo, ao contrário, culmina na destruição das instituições para ter o personalismo do poder. O conhecimento jamais pode ser soberbo, pois ele não é estático, está em constante transformação e expansão.

 

Eis o desafio da ciência na pós-modernidade: traçar uma linha divisória entre conhecimento e ignorância, a exemplo do trabalho desenvolvido pelas agências de checagens de notícias, demandando, portanto, maior proatividade dos conselhos profissionais e demais envolvidos, incluindo este autor e você leitor, porquanto a verdade é uma construção da realidade e não mera sombra refletida na alegoria de Platão.

 

*Foto Free-Photos por Flickr. Imagem representativa do Mito da Caverna por Jan Sanraedam (1604).

 

Notas:

 

[1] MOCKAITIS, Gustavo. O Que é Ciência Aberta?. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/biotech/2021/08/26/o-que-e-ciencia-aberta/. Capturado em 15/04/23.

 

Referencias Bibliográficas:

 

ASIMOV, Isaac (21 de enero de 1980). «El antiintelectualismo en Estados Unidos». Learnt in translation. Disponível em: https://alexiscondori.com/translation/0014-asimov-antiintelectualismo-culto-ignorancia. Capturado em 15/04/23.

 

CONTEÚDO aberto. In: Wikipédia: a enciclopédia livre. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Anti-intelectualismo. Capturado em: 16/04/23.

 

NADELLA, Satya. In Bloomberg business. Disponível em: https://www.instagram.com/reel/Cp3SziHOPnO/?igshid=MDJmNzVkMjY%3D. Capturado em 15/04/23.

 

PLATÃO. A república. Tradução de Carlos Alberto Nunes. 3ª ed. Belém: EDUFPA, 2000, p. 319-322.

 

SARAMAGO, Jose de Souza. o Mito da Caverna nos dias de hoje. Disponível em: https://www.netmundi.org/home/2017/saramago-mito-da-caverna-platao/. Capturado em: 15/04/23.

 

THIEL, Peter. De Zero a Um. Trad. Ivo Korytowski. 1ª.ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.  

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