Dissonância Cognitiva e seus reflexos no cotidiano

Dissonância Cognitiva e seus reflexos no cotidiano

Entenda o que é dissonância cognitiva e o porquê ser mais fácil distorcer a narrativa da realidade do que lidar com ela.

 

“O que narras, deves narrá-lo de tal modo que a pessoa com quem falas, ao ouvir o que dizes, creia e crendo, espere, e esperando, ame” (Quidquid narras ita narras ut ille cui loqueris audiendo credat, credendo speret, sperando amet. S. Agostinho, De Catechizandis Rudibus, c. IV, 8, em: PL 40, 316). 

 

“Uma onda de anti-intelectualismo tem sido uma constante trama se espalhando por nossa vida política e cultural, nutrida pela falsa noção de que Democracia significa que “minha ignorância tem tanto valor quanto seu conhecimento.” (Isaac Asimov)

 

 

A dissonância cognitiva (DC) é experimentada com frequência em nosso cotidiano, decorrente de frustrações de consumidores e cidadãos no âmbito dos processos de compra, contratação de serviços ou mesmo, em torno da escolha do representante político por meio do sufrágio. 

 

Outra situação contemporânea, é a relação que o indivíduo possui em seu ambiente organizacional. Se a cultura da empresa não condiz com os valores e crenças do indivíduo ocorre a dissonância e o relacionamento entre as partes pode ser prejudicado ou rompido se esta não for eliminada. Sendo assim a escolha de uma organização para se trabalhar vai muito além de aspectos financeiros, o ideal é que seja feita uma análise sobre quais são os valores da empresa para verificar se são consonantes com os do indivíduo que pretende fazer parte daquela organização. 

 

O mundo contemporâneo está repleto de signos e significados, no qual as palavras não se encontravam apenas na conjuntura de um dicionário, mas circunscritas a um contexto sócio-político em permanente estado de convulsão, decorrente de polarização ideológica/política. 

 

Neste contexto, a teoria da dissonância cognitiva desenvolvida pela psicologia social, auxilia na compreensão deste fenômeno. De acordo com o seu postulado, desenvolvida na área da Psicologia por Leon Festinger[1], existe uma dificuldade das pessoas em enfrentar situações onde suas opiniões ou crenças são confrontadas de maneira direta com uma informação notadamente contrária. Segundo esta teoria, esse choque entre os conhecimentos, o antigo e o novo, é a dissonância cognitiva, o que acaba por gerar um desconforto psicológico. E a partir disso, a tendência da pessoa nessa situação é evitar o contato com a informação dissonante e procurar apoio em informações que possam lhe oferecer suporte cognitivo.

 

Por sua vez, a literatura nos traz o exemplo da fábula “a raposa e as uvas”[2] onde na alegoria de Esopo, é fácil desdenhar daquilo que não se alcança, representada pela atitude da raposa que, perante as condições que lhe são colocadas, deprecia o seu objeto de desejo (as uvas).

 

No mundo imaginário de “1984” de George Orwell [3], a língua ganha novos termos, e palavras antigas, novas acepções. Na novela distópica a semântica é distorcida para criar um estado de torpor e confusão, expresso no lema do Partido único: “Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força”.

 

Aronson, Wilson e Akert [4] mencionam o “caso dos fumantes inveterados que buscaram tratamento para abandonar o vício, deixaram o cigarro por um tempo, mas depois voltaram a fumar intensamente, passando a minimizar os perigos do tabaco. Eles tinham ciência dos riscos inerentes à prática, isto é, sabiam que poderiam morrer prematuramente por conta de um câncer e que o mais coerente a fazer era mesmo deixar de fumar. Todavia, como cederam ao vício, para diminuir a dissonância, buscaram convencer-se de que fumar não era assim tão nocivo à saúde, passando a apresentar desculpas diversas para se justificar, dizendo, por exemplo, que os estudos sobre o câncer não eram conclusivos, que o filtro do cigarro retinha grande parte da nicotina ou que conheciam uma pessoa bem idosa que fumava desde a juventude”

 

Na disciplina comportamento do consumidor, a DC representa a distância entre expectativa e satisfação na compra.

 

É natural do indivíduo uma avaliação comparativa, subconsciente, da situação ambiental do ‘antes e depois’ da compra, a fim de identificar de maneira positiva o elo entre o que se desejava e o que se obteve. Em resumo, no pós-compra a análise inclui a disposição do produto, do serviço prestado, das experiências obtidas na compra e sobre as ideias que o consumior tinha a respeito daquela determinada marca.

 

Este processo de avaliação é muito espontâneo e harmonioso na mente humana, dentro do processo vivido. É praticamente imperceptível e involuntário. É como se fosse um tipo de auto-aprovação do indivíduo.

 

O grande desafio do mercado e das empresas está na detecção da dissonância cognitiva, de maneira antecipada.

 

Empresas que reconhecem a dissonância cognitiva como um possível gerador de imagem negativa na relação cliente-empresa, treinam seus colaboradores para minimizar esta situação. É onde aparecem os vendedores-consultores, que não apenas vendem, mas criam uma experiência de consumo ao cliente.

 

Além dos vendedores-consultores, recursos como o “recall” feito pelo segmento automotivo, brindes, restituições de produtos, SAC com pronto-atendimento, ombdusman e pesquisa de pós-venda, são alguns dos recursos que podem ser utilizados na construção de uma imagem positiva perante os consumidores e o mercado. Atividades sociais, apoio a instituições e reversão de lucros também são estratégias consideradas válidas.

 

Dentre todas as ações que podem e devem ser utilizadas por um empresa, o mais importante de tudo é o conhecimento do processo, do produto/serviço e, principalmente, do consumidor.

 

Sondar o cliente durante o processo de venda, observar detalhes e comportamentos, verificar quem é o tomador de decisões e construir uma relação de troca de experiência, são pontos cruciais. Ao fazer esta análise de fatores, há mais facilidade de influência na hora da venda, através de estímulos positivos, onde o processo flui com naturalidade reduzindo a dissonância.

 

Em suma, perceber os valores do cliente, suas expectativas e anseios, conhecer suas experiências negativas e positivas, buscar se antecipar em resposta às possíveis dissonâncias e responder de maneira coerente e personalizada é manter a empresa voltada para o consumidor e não para o produto. É a busca constante pelo posicionamento positivo perante o mercado, destacando-se na mente do consumidor.

 

O grande desafio é fazer o processo mercadológico acontecer na vida do consumidor, de maneira natural, positiva e recorrente, de modo a fidelizá-los, e, por conseguinte maximizar o valor da empresa.

 

Diante destas situações expostas a dissonância cognitiva é considerada um conflito psicológico gerado por incoerência de opiniões, atitudes e comportamentos.

 

A teoria da dissonância cognitiva, concebida por Leon Festinger, se assenta na premissa de que o indivíduo experimenta um estado de desconforto psíquico quando percebe que há discrepância ou incoerência entre suas cognições ou atitudes, de forma que passa agir, voluntária ou involuntariamente, buscando diminuir ou afastar a dissonância e recuperar a sensação de coerência.

 

Uma de suas premissas é a forma que vemos o mundo, algo que tem como base nossa vivência e seus aprendizados, experiências e valores. Ou seja, são os aspectos cognitivos associados à nossa memória.

 

Em ato contínuo, figura nosso comportamento padrão e suas ações, que é a maneira como: comunicamos, consumimos, investimos, pensamos, reagimos e agimos.

 

Os seus efeitos práticos são visualizados no cenário econômico. Entender de economia é saber reconhecer as consequencias secundárias e nem sempre perceptíveis de uma política econômica.

           

O filósofo Henry Hazlitt[5] cita alguns exemplos:

 

Quando dizem que o governo deve estimular o crédito para salvar a economia, estão na realidade dizendo que a maneira de salvar a economia é aumentando o endividamento das pessoas. Crédito e dívida são nomes distintos para a mesma coisa, vista de lados opostos.”

 

“Quando dizem que o caminho para a prosperidade é aumentar os gastos do governo, estão na realidade dizendo que o governo deve ou tributar mais as pessoas ou incorrer em déficits. A tributação retira renda (logo, capacidade de consumo e investimento) das pessoas e empresas. Déficits significam que pessoas e empresas estão emprestando para o governo, em vez de utilizarem esse dinheiro na própria economia. Significa também que os bancos, em vez de financiarem investimentos produtivos, estão financiando a folha de pagamento do governo. E, finalmente, significa também que haverá aumento de impostos no futuro para que o governo possa arcar com o serviço dessa dívida. 

 

Feitas essas considerações, antes de analisarmos se há possibilidade de eliminarmos a dissonância cognitiva ou somente mitigá-la, cumpre trazer a premissa esposado por Santo Agostinho em sua obra “De Magistro”[6] no que tange a depedendência da palavra com o pensamento.

 

A teoria da DC acima exposta revela que “a existência de dissonância origina pressões para reduzi-la e para evitar o seu recrudescimento. As manifestações da operação dessas pressões incluem mudanças de comportamento, mudanças de cognição e busca de novas informações”[7]. O ser humano modifica suas ações ou atitudes e adiciona seletivamente novas informações com o propósito de tentar manter a consistência, buscando atingir a coerência entre suas cognições conflitantes.

 

Todavia, o compartamento acima apontado seria o dever-ser, baseado na racionalidade e não mediante uma condulta impulsiva permeada de emoções e sentimentos, muitas vezes infladas pelo ego, preguiça mental e, portanto, sombrias, sem a luz da razão. Nesse particular, há um medo de “encarar o novo”, “assumir o risco”, sendo mais confortável, permanecer na “zona de conforto” da mediocridade.

 

A negação de evidências e outros mecanismos de defesa do ego é capaz de desumanizar o homem, violando a sua natureza intrínseca de racionalidade, podendo criar falsas memórias, distorcer percepções, ignorar afirmações científicas e até mesmo desencadear uma perda de contato com a realidade (surto psicótico), capaz de provocar uma catarse social exponenciado por fanatismos e ilusões.

 

Parafraseando uma das falas da saga matrix[8], a realidade não são “apenas sinais elétricos interpretados pelo seu cérebro”. A verdade é uma construção da realidade, pavimentada pelas fontes do saber.

 

Todas as áreas do conhecimento são importantes, não deve haver hierarquia entre elas, ainda que com base na tradição, porquanto elas não são absolutas, dependendo da interação mútua para a compreensão das problemáticas contemporâneas, além de poder contribuir para uma sociedade mais pluralista e com discernimento.

 

Noutros termos, o indivíduo é dotado de racionalidade, sendo assim não é mero consumidor de ideias/replicantes de mantras. Em verdade, são criadores de conhecimento. Deste modo, acima do ato de opinar, está o discernimento sobre o assunto abordado, em compasso com a ciência, de forma objetiva e com evidências/lógica, sem relativismos.

 

Todavia, estamos imersos em uma pós-verdade[9], onde fatos ou dados objetivos sobre a realidade têm menor peso (influência) na avaliação das informações recebidas do que as emoções e as crenças que circulam no ciberespaço, sendo um terremo fértil para a disseminação de fake news e manifestações eivadas de desonestidade intelectual.

 

A dissonância cognitiva sempre vai ocorrer em algum momento, afinal somos muitas vezes irracionais, e não temos todo o conhecimento do mundo, mas tendo consciência desse fenômeno é possível mudarmos nosso comportamento de propósito, em busca da da verdade e não em desfiladeiros de arrogância e medo.

 

Notas

[1] FESTINGER, Leon. Teoria da Dissonância Cognitiva. Tradução por Eduardo deAlmeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.

[2] A Raposa e as Uvas. É uma fábula atribuída a Esopo e que foi reescrita por Jean de La Fontaine. Com pequenas variações, é basicamente a história de uma raposa que tenta, sem sucesso, comer um cacho de convidativas uvas penduradas em uma vinha alta.

[3] ORWELL, George, 1984; tradução Alexandre Hubner, Heloisa jahn; posfácio Erich Fromm, Ben Pimlott, Thomas Pynchon. – São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

[4] ARONSON, Elliot; WILSON, Timothy D.; AKERT, Robin M. Psicologia Social. 3ª ed. Trad. de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: LTC, 2002, p. 116.

[5] HAZLITT, Henry. Repetindo algumas lições básicas de economia - que, inexplicavelmente, seguem sendo ignoradas. Disponível em: https://www.mises.org.br/article/2491/repetindo-algumas-licoes-basicas-de-economia--que-inexplicavelmente-seguem-sendo-ignoradas. Capturado em: 10/01/2023.

[6] AGOSTINHO, Santo, Bispo de Hipona, 354-430. De Magistro [recurso eletrônico] / [tradução, organização, introdução e notas Antonio A. Minghetti]-- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2015.

[7] FESTINGER, Leon. Teoria da dissonância cognitiva. Trad. de Eduardo Almeida. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975, p. 22-23.

[8] Morpheus. MATRIX. Direção: Irmãs Wachowski. Warner Bros Pictures, 1999. 1 DVD (136 min).

[9] LÉVY, P. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 2010.

*Foto:  Free-Photos por Flickr (Imagem ilustrativa).

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