Os sentimentos de Justiça e Segurança

Os sentimentos de Justiça e Segurança

 “O homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida” (José Joaquim Gomes Canotilho)

“Não há nada mais relevante para a vida social que a formação do sentimento da justiça” (Rui Barbosa)

 

No passado recente, o funcionamento da Justiça era uma problemática de discussão restrita a comunidade jurídica. A classe empresarial estava à margem disto, preocupando-se apenas com os aspectos do câmbio, juros, produtividade e do negócio propriamente dito.

Contudo, com o decorrer dos anos, com a abertura da economia nos anos 90, e das reformas liberais decorrentes em nosso país, o número de transações econômicas aumentou de forma substancial.

O protagonismo econômico de muitas transações também mudou, deslocando-se do governo e suas estatais para a iniciativa privada, impulsionando a formação de uma relação contratual entre as partes.

Por sua vez, o mercado de crédito explodiu com a inovação de inúmeras formas de títulos de crédito, espécies de transações, objetos, de proteção e garantia, associado a uma massificação da relação de consumo e demandas judiciais. Em consequência, novas demandas tiveram que ser absorvidas pelo Judiciário.

Todas estas transformações políticas e econômicas fizeram com que a Justiça fosse percebida como importante fator que compõe o chamado ‘Custo Brasil’.

Como leciona Armando Castelar Pinheiro [1]:

“Uma forma simples de definir Custo Brasil é como sendo o custo adicional de transacionar, de realizar negócios, no Brasil, em comparação ao custo em um país com instituições que funcionam adequadamente. Nesse sentido, Custo Brasil é um conceito associado, de um lado, às instituições do país e, de outro, ao custo de transacionar”

A participação da Justiça no custo Brasil se dá em razão do alto nível de insegurança jurídica representada pela imprevisibilidade das decisões judiciais, o que provoca o aumento do risco e dos custos das transações econômicas, afetando a competitividade das empresas brasileiras e onerando, por conseguinte, a renda familiar dos consumidores.

Por consequência, o direito certo, estável e, portanto previsível deve ser objeto de todo o ordenamento jurídico, em face da crescente massificação nas demandas judiciais.

Contemporaneamente, não há como subsistir um sistema que de soluções diversas a casos semelhantes, provocando instabilidades e entraves ao aperfeiçoamento do regime democrático do Estado de Direito.

O sistema codificado vigente vem se mostrando insuficiente no ato primordial de pacificação social das contendas.

As mudanças sociais ocasionadas pela dinâmica das relações de massa e dos negócios demandam uma nova reflexão quanto à defesa da previsibilidade das decisões judiciais, como meio de pacificação social e de maximização de riquezas.

A defesa da previsibilidade das decisões judiciais é manifestada no princípio da segurança jurídica.

Este princípio foi consagrado em nosso ordenamento jurídico por força da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro [2] ao estabelecer: a) a obrigatoriedade de as decisões administrativas e judiciais considerarem as consequências práticas, quando interpretarem valores jurídicos abstratos (artigo 20); e b) que as decisões administrativas e judiciais que fixem interpretação ou orientação nova prevejam regime de transição (artigo 23).

Não temos o intuito de se discutir aqui o seu conceito doutrinário e sim o seu substrato de acordo com o tema proposto, qual seja, a ideia intrínseca a segurança.

A busca pela segurança sempre esteve incutida na vida das pessoas, como uma aspiração contínua de ter seu cotidiano e seus negócios inseridos em ambientes propícios, sólidos e favoráveis ao regular desenvolvimento de sua atividade econômica, sem instabilidades repentinas.

Sob este contexto, a segurança é fato, dotado de valor pelos indivíduos, porquanto como bem assevera o jurista Canotilho [3] o “homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autónoma e responsavelmente a sua vida”.

Assim sendo, a segurança, enquanto valor, como um ideal a ser alcançado, passa ser na perspectiva tridimensional do Direito (fato, valor e norma) um princípio jurídico que deve nortear a atuação da administração pública e do Estado-juiz.

Partindo-se do raciocínio teórico da teoria tridimensional do Direito [4], a segurança como fato dotado de valor, deve ser tida como norma, como um todo indissociável de forma una e concreta.

Forma-se, então, a noção de segurança jurídica, delineado por Ávila [5] como a:

“prescrição, dirigida aos Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo, que determina a busca de um estado de confiabilidade e de calculabilidade do ordenamento jurídico com base na sua cognoscibilidade”

Realça-se aqui a acepção da segurança jurídica, como verdadeira norma-principio, e relegando a segundo plano a discussão doutrinária, quanto ao seu conceito preferimos destacar aqui o seu substrato, consubstanciado na possibilidade de os indivíduos e empresas preverem, concretamente, os efeitos jurídicos decorrentes de fatos ou comportamentos.

A segurança jurídica, uma quimera, ideal, um norte, um parâmetro, ou na visão de um realista esperançoso, pode ser concebido como um objetivo a ser alcançado, na qual nos perfilamos.

Em resumo, a ideia inerente a sua concepção pode ser entendida como uma estabilidade duradoura/permanente de normas jurídicas certas, estáveis, previsíveis calculáveis e, ao mesmo tempo coercitivas, de modo a incutir na sociedade os deveres de convivência que devem ser observados.

Deste modo, o exercício continuado e eficiente da jurisdição proporcionará um clima generalizado de confiança no Poder judiciário, qual seja de segurança social e insatisfações eliminadas.

Por outro lado, com a promulgação do novo código civil houve a relativização do sistema codificado. A lei deixa de ser o único paradigma obrigatório que vincula a decisão do julgador.

O vigente Código de Processo Civil estabelece que não se considera fundamentada qualquer decisão judicial que deixar de seguir precedente ou jurisprudência invocada pela parte, sem mostrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

Dispõe a redação do artigo 489, § 1º, VI, do CPC:

                     “Art. 489. (…).

§ 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

(…)

VI deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”

Sobre o assunto, o Ministro Barroso [6] destaca que: “Um precedente só deve ser aplicado quando o caso subsequente versar sobre a mesma questão de direito tratada no primeiro e desde que os fundamentos utilizados para decidi-lo sejam aplicáveis à nova demanda. Do contrário, deve-se proceder à distinção entre os casos, tal como ocorre no common law (art. 966, §5º, 985, §2º, c/c art. 966, §§ 9º e 12)”

Este novo panorama é observado também nos artigos 926 e 927 do CPC.

                   “Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.

§ 1º Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante.

§ 2º Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação"

"Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:

I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;

II - os enunciados de súmula vinculante;

III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;

IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;

V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.

§ 1º Os juízes e os tribunais observarão o disposto no art. 10 e no art. 489, § 1º , quando decidirem com fundamento neste artigo.

§ 2º A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.

§ 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.

§ 4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.

§ 5º Os tribunais darão publicidade a seus precedentes, organizando-os por questão jurídica decidida e divulgando-os, preferencialmente, na rede mundial de computadores”

O sistema de precedentes foi introduzido com o objetivo de dar concretude à uniformização das decisões judiciais, e, por conseguinte a segurança jurídica, de modo que sejam tomadas com coerência e integridade em casos análogos, como forma de dar maior estabilidade as relações sociais.

Destaca-se, neste ato, a importância dos precedentes, porquanto se há a existência de um que contraria a tese de defesa, o risco de perda é provável e a empresa deve provisionar os valores.

O principio da competência, nos meios contábeis estabelece que todas as receitas (vendas) e despesas sejam consideradas dentro do período em que se realizaram, mesmo que não tenham sido pagas (despesas) ou recebidas (vendas).

Deste modo, provisões são os valores estimados pelas empresas que reduzem o seu ativo, ou incrementam o seu passivo, modificando (reduzindo) o valor do patrimônio líquido da entidade.

Provisões judiciais, não é o valor pedido pelo autor de uma demanda, mas sim a estimativa do valor a ser efetivamente desembolsado pela empresa demandada na fase de execução da sentença.

A classificação de risco de perda em processos judiciais de acordo com a disposição da Deliberação CVM nº 489 [7], prevê que se o grau for alto, deve ser considerada provável a perda e realizar o seu provisionamento; se for médio o grau, o risco será possível, mas pode ser feita apenas uma nota explicativa; e se houver mais chances de ganho, o risco será remoto, sem a necessidade de menção no balanço.

O correto dimensionamento dos riscos judiciais, favorecidas por uma segurança jurídica aqui entendida, pela previsibilidade das decisões judiciais, reduzem os recursos destinados ao provisionamento, o que significa trocar o dinheiro de coluna no balanço, saindo da parte de perdas, liberando-se recursos para o crescimento do negócio, com o acréscimo de riquezas.

A falta de confiança de que as instituições garantirão o direito vigente gera dúvidas sobre a estabilidade das relações jurídicas e incertezas sobre as consequências dos atos baseados nas normas jurídicas vigentes, ocasionando no âmbito da sociedade a sensação de insegurança jurídica.

É comum verificarmos divergências entre turmas de um mesmo Tribunal, deixando o litigante à mercê da sorte na distribuição de seu recurso. Outro grave problema, que ameaça o princípio da isonomia, é a mudança de orientação jurisprudencial em pouquíssimo tempo, seja pela alteração da composição da corte superior, ou até em razão da mudança de entendimento de um ministro.

Conforme exposto, esse ambiente é pouco favorável ao desenvolvimento da atividade econômica, o que limita a competitividade das empresas, encarece o crédito, provoca a retração de investimentos, enfim, produz efeitos nefastos na economia.

Segurança jurídica significa também crescimento sustentável da economia. Os investimentos somente serão duradouros e capazes de impulsionar o desenvolvimento econômico se houver mecanismo legal de garantia da relação contratual e uma maior previsibilidade das decisões judiciais.

Em decorrência da falta de segurança jurídica, o setor produtivo fica fragilizado juridicamente, afugentando-se os investimentos.

A segurança jurídica, uma quimera, ideal, um norte, um parâmetro, ou na visão de um realista esperançoso, à qual nos perfilamos, pode ser concebido como um objetivo a ser alcançado.

A ideia inerente a sua concepção pode ser entendida como uma estabilidade duradoura/permanente de normas jurídicas certas, estáveis, previsíveis calculáveis, de modo que as empresas possam contingenciar os riscos judiciais, de forma adequada por meio de provisões.

Mostram-se ainda incipientes os efeitos concretos do novo sistema de precedentes trazidas pelo Código de Processo Civil, que nasceu com o propósito de trazer celeridade, racionalidade e uniformização da jurisprudência.

A ideia consistente de garantir a previsibilidade das decisões judiciais por meio de precedentes é digna de louvor. O período de maturidade despendido na absorção de suas inovações vai ser de importância ímpar para analisarmos os resultados de sua aplicação na satisfação das demandas.

Contudo, atualmente é possível observar uma grande dificuldade do Judiciário em colocar em prática estes ideais que foram transformados em Lei.

Em uma sociedade de consumo submetida às oscilações e dificuldades da oferta e procura inerente as regras de mercado, provisionar perdas é essencial às atividades empresariais.

As constantes roletas russas e loterias judiciárias geram no âmbito da sociedade não apenas imprevisibilidade e insegurança, mas principalmente a sensação de descrédito perante o Poder Judiciário.

Não se pretende com o presente estudo dar qualquer conclusão definitiva de qual sistema de dogmas se mostra mais efetivo (Civil Law e o Commom Law), mas alertar para a necessidade de todos os poderes constituídos na república pautarem sua atuação no mesmo propósito, qual seja, pacificar com justiça, equidade, de forma célere e racional as demandas judiciais, sob os auspícios dos princípios da eficiência e da isonomia.

Sob este contexto, mostra-se defensável essa relativização do nosso sistema codificado, como forma de dar maior protagonismo aos precedentes judiciais no julgamento das demandas, em defesa da segurança jurídica.

O Estado de Direito é antes de tudo uma conquista dos povos civilizados, que gera segurança e previsibilidade, constituindo-se como uma defesa contra a arbitrariedade.

Há uma diferença entre conhecer o caminho e percorrê-lo. Contudo, as bases teóricas e as estruturas do direito constitucional positivo estão postas para a concretude do direito fundamental a segurança jurídica.

Em tempos de pandemia, a segurança jurídica é elemento imprescindível como vetor de restabelecimento da normalidade produtiva, como meio de soerguer a economia da crise social e econômica decorrente da calamidade.

Nesse contexto, ressurge como primordial a reforma tributária enquanto instrumento para sustentar a retomada da atividade econômica no pós-pandemia; em defesa da proposta de simplificação tributária para diminuir a litigiosidade, da previsibilidade e que seja mais adequada a nova realidade tecnológica e econômica do comércio digital.

No mesmo grau de importância, a especialização do judiciário, conforme a natureza da causa garante segurança jurídica na tomada de decisões. As empresas competem em mercados cada vez mais globalizados, com margens cada vez menores e, inexoravelmente, embutirão nos preços de seus produtos a incerteza das decisões judiciais.

Não obstante, deve haver uma maior cooperação e sintonia entre os órgãos judicantes, em face dos efeitos macro-institucionais, que os cercam, em favor de decisões consolidadas, de modo a prestigiar isonomia, segurança jurídica e eficiência.

Portanto, não se está aqui a defender que o judiciário seja mero “despachante de precedentes” e sim dar uma nova guinada nos rumos do processo civil contemporâneo, que preza por resultados, em defesa de um direito estável, certo e previsível, como forma de garantir a qualidade das decisões judiciais, a celeridade das demandas, o uso racional dos recursos e a isonomia entre os casos semelhantes, a fim de que o jurisdicionado e a economia depositem suas confianças na Justiça, realizando-se a paz social; em cenário favorável a maximização de riquezas.

 

Notas

[1] PINHEIRO, Armando Castelar. A Justiça e o Custo Brasil. REVISTA USP, São Paulo, n. 101, P. 141-158 março/abril/maio 2014

[2] BRASIL. Decreto-lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Com redação dada pela Lei nº 12.376, de 2010. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro.

[3] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e a teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. P. 965-66.

[4] REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, págs. 37.

[5] ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 10. ed. ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 2009. Pg. 112.

[6] BARROSO, Luis Roberto e MELLO, Patricia Perrone Campos. Trabalhando com uma nova logica: a ascensão dos precedentes no direito brasileiro. Disponível em https://www.conjur.com.br/dl/artigo-trabalhando-logica-ascensao.pdf. Capturado em 29/05/21. Pg. 44.

[7] BRASIL. Comissão de Valores Mobiliários. Deliberação CVM n. 489, de 03 de outubro de 2005. Aprova o Pronunciamento do IBRACON NPC nº 22 sobre Provisões, Passivos, Contingências Passivas e Contingências Ativas. Disponível em: https://www.cvm.gov.br/legislacao/deliberacoes/deli0400/deli489.html. Capturado em 29 maio.21. 

*Foto  Free-Photos por Unsplash (Imagem ilustrativa)

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