A (pseudo)autonomia do Banco Central

A (pseudo)autonomia do Banco Central

A economia para ser sustentável deve incentivar a inovação, o crescimento da produtividade e da poupança. Essa sustentabilidade deve ser amparada por uma política monetária coesa onde há o equilíbrio dos fundamentos macroeconômicos (política fiscal, monetária e cambial).  

“Por muito tempo buscamos soluções públicas para problemas privados, agora chegou a hora de encontrarmos soluções privadas para problemas públicos” (Roberto Campos Neto)

 

O Presidente Bolsonaro sancionou em 24/02/2021 a Lei Complementar n. 179/2021, que estabelece a autonomia do Banco Central. A estabilidade de preços continua sendo o objetivo fundamental do BC que, sem prejuízo desse objetivo, também irá zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro e fomentar o pleno emprego.

Contudo, antes de opinarmos sobre o assunto, é imprescindível o estudo e a análise do perfil da instituição à luz da atual Carta, concomitantemente aos desafios e premissas para o desenvolvimento econômico do nosso país.

Estabelece o artigo 192 da constituição federal:

“O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do país e a servir aos interesses da coletividade...”

O governo pautado pelo ideal desenvolvimentista ou heterodoxo, cuja finalidade é o crescimento econômico a qualquer custo é totalmente incompatível com o teor do dispositivo constitucional supra, que expressamente preza: “…promover o desenvolvimento equilibrado”.

A corrente desenvolvimentista [1] foi traço marcante das políticas econômicas anteriores a promulgação da Carta de 1988.

O desenvolvimento econômico incentivado sem um lastro de uma política fiscal e monetária equilibrada podia trazer um crescimento da economia no curto prazo. Porém, em longo prazo, a dívida contraída devia ser paga, geralmente por uma recessão no período, motivada pelo corte de despesas, retração dos investimentos e uma política monetária contracionista.

É necessária a quebra, a disrupção deste processo. O BACEN não pode ser a eterna longa manus do capricho e das arbitrariedades do Executivo.

O BACEN é guardião da moeda e sua estabilidade, ostentando como características: a consistência, continuidade e credibilidade.

A priori, deve ser uma instituição consistente, ou seja, deve ter autonomia administrativa e institucional, e para tanto, ser estruturado por um regime interno íntegro que não seja modificado pela legislação (pressões políticas) e gozar de uma autonomia institucional, por força da constituição federal e não por uma mera decisão política (delegação) como foi feito anteriormente em nosso país (Plano real).

Neste contexto, a política monetária desenvolvida pelo Banco Central deve ser coordenada com a política fiscal (administração de gastos e tributação do governo) para alcançar um programa coeso que promova a estabilidade econômica.

É necessário ainda, que os diretores e o presidente da referida instituição sejam nomeados segundo critérios predominantemente técnicos.

Em outras palavras, a atuação da instituição deve ser caucada pela continuidade, em longo prazo, no compromisso com a estabilidade de preços e não ser influenciada por interesses eleitorais (populistas) de curto prazo.

Outra característica fundamental do BACEN contemporâneo é a sua credibilidade, tanto em nível interno como externo. Para o cidadão comum, um banco central forte pode significar a garantia da defesa contra os excessos do Poder executivo nos gastos desmedidos (irresponsáveis) do Estado e na certeza de expectativas associadas ao seu bem-estar econômico (ausência de inflação).

Em nível global, a comunidade financeira, na maioria das vezes irá preferir uma autoridade monetária imune às pressões do Executivo, voltada para a defesa da ordem monetária da sociedade, como forma de resguardar seus interesses (investimento com retorno compatível com o risco).

Por fim, a criação de uma nova ordem monetária gera problemas específicos de governabilidade democrática, tais como as inovações institucionais necessárias para torná-la mais responsável na relação com a sociedade. Sob essa ótica, a autoridade monetária ainda está por ser plenamente estabelecida na democracia brasileira.

É necessário estabelecer um contrato, “pacto social”, entre a sociedade e o banco central, para que este último possa, juntamente com outros membros do sistema financeiro, promover o desenvolvimento equilibrado do país, guiado pelos ideais sociais de desenvolvimento e de bem estar [2].

Nesse sentido, inovações institucionais como sindicâncias na esfera administrativa e judicial (além das CPI’s, nos casos de irregularidades apontadas), sabatinas públicas – conduzidas por membros da sociedade como estudantes, economistas, jornalistas, dentre outros e não apenas por políticos, seriam de tamanha utilidade para melhor conscientização e legitimação popular.

As experiências de hiperinflação ao longo da transição democrática brasileira foram traumáticas e prejudiciais à sociedade, em especial aos trabalhadores assalariados, cujos rendimentos eram corroídos diariamente pela inflação. Em suma, reduziu as expectativas associadas ao bem-estar econômico dos brasileiros e à democracia do país.

O governo pautado pelo ideal desenvolvimentista ou heterodoxo, cuja finalidade é o crescimento econômico a qualquer custo é totalmente incompatível com a atual Carta, conforme visto.

Neste compasso, a obsessão pelo crescimento da demanda de consumo e de novos empregos por meio de medidas anticíclicas não se sustenta em longo prazo. É necessária a formação de um ecossistema financeiro pautado em tecnologia, segurança jurídica e atratividade de investimentos.

A moeda é o meio de troca mais difundido nas economias de mercado. A sua principal importância foi facilitar o fluxo de bens e serviços por meio de trocas indiretas, em contraposição ao escambo, como meio de unidade de conta e reserva de valor.

Sob o enfoque monetário, pode-se concluir que a inflação chega a ser um ato de fraude cometido por uma autoridade central, em detrimento aos geradores de riquezas, os indivíduos.

Para corroborar com esta afirmativa partimos da premissa que o fenômeno em relevo é, antes de tudo, um aumento na oferta monetária estipulada por burocratas que desviam recursos reais gerados pelos produtores de riquezas para si próprios, sem terem produzido nada em troca.

Desta forma, a inflação não pode ser diagnosticada apenas quando há um aumento generalizado e contínuo dos preços, e sim, quando houver a expansão do dinheiro, criado do “nada”, sem o lastro em qualquer riqueza, pelo portador do dinheiro (Estados e burocratas) com a consequente perda da renda real dos seus protagonistas (indivíduos).

Nos primórdios, na época do metalismo, os monarcas tinham o hábito de confiscar todas as moedas de ouro dos seus súditos, sob o argumento de que uma nova moeda iria substituir a atual.

Em verdade, não era essa a intenção. O regente falsificava o conteúdo das cunhas diluindo com outros metais, devolvendo-as aos plebeus, com o mesmo valor nominal, a um peso menor. Deste modo, os soberanos apropriavam-se das sobras de ouro, extraídas e armazenadas em uma espécie de “casa da moeda” para financiar seus próprios gastos.

Com a introdução do papel-moeda nas economias, a essência da inflação continuou a mesma: a emissão de dinheiro, do “nada”, sem o devido equilíbrio entre a sua oferta e demanda como meio para os governos pagarem suas despesas.

Os efeitos nefastos da inflação são notórios, em especial, pela perda do poder de compra da moeda, cujos maiores prejudicados são os assalariados de baixa renda. É um verdadeiro imposto inflacionário, sobre todos os que têm moeda.

Observa-se, mormente, nos países da América Latina e da África um histórico de má gestão dos governos no que se refere à quantidade de moeda circulante.

Portanto, o principal agente inflacionário não é o empresário, o industrial, e muitos menos a sociedade civil. A sua verdadeira identidade: O Estado, ao financiar o déficit público por meio de emissão de moeda, frisa-se, de forma desmedida e irresponsável, porquanto destituído de equilíbrio dos fundamentos macroeconômicos (política fiscal e monetária).

O populismo, a falta de uma cultura de educação e responsabilidade financeira, e de um projeto de nação, associado a uma baixa escolaridade e discernimento das camadas mais pobres, ora vítimas e objetos de sua ação, contribuem de forma significativa para adoção de medidas econômicas inflacionárias nos países em desenvolvimento.

Em face dos problemas apontados, fica evidente a necessidade de um projeto, um plano de negócio, em longo prazo a ser disseminada e difundida no âmbito da sociedade, e, ao mesmo tempo, um maior controle e rigidez no combate a corrupção.

Investimentos em tecnologias, de modo a criar um ambiente próspero para a originalidade, agregam riqueza contínua e duradoura, uma vez que diversificam as exportações de um país, que não pode ficar restrito as oscilações do seu mercado de commodities.

A demanda de mão-de-obra diversificada e especializada é outra carência/ineficiência, justificadas pela falta de alocação de recursos adequados. Escolas técnicas, Universidades corporativas e a educação continuada por meio das “edtechs” são soluções profícuas apresentadas pelo setor privado, passíveis de serem potencializadas pelo Estado por meio de “vouchers” de acesso às pessoas de baixa renda.

A intervenção do Estado na economia carece de incentivos e atratividade de investimentos estratégicos. É necessária a desregulamentação da atividade econômica, bem como, a redução da carga tributária, para que novos conceitos de negócio possam se concretizar, como as startups.

A crescente desvalorização da moeda, além de afetar os mais oprimidos, associado à pujança das tarifas de importação, impedem as empresas de adquirirem no exterior bens de capital bons e baratos que lhe proporcionem maior produtividade.

A falta de universalização de serviços financeiros a toda a população, também é um óbice à produtividade e a poupança, em especial, aos pequenos produtores de regiões mais remotas.

Destaca-se também a necessidade de medidas para conter o endividamento público com medidas de austeridade e metas rígidas de gasto público pelos governos.

Por outro lado, a estabilidade de preços passou a ser reconhecida como um bem público de primeira ordem – depois de uma série de planos econômicos (Plano Cruzado I e II, Bresser, Verão e Cruzado Novo) que não lograram êxito no combate à inflação – refletindo uma clara transformação das preferências sociais e dos critérios de legitimação política.

Deste modo, o fato (estabilidade de preços) passou a ser valorado pela sociedade brasileira como um bem público, faltando ainda nos dias de hoje (no caso brasileiro) que tal bem seja garantido e previsto por uma norma constitucional (fato, valor e norma da Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale) e por um BACEN que goze de credibilidade, continuidade, consistência e seja acima de tudo democrático.

A causa determinante para a riqueza e a prosperidade econômica de um país é o que ele produz, e não a massa de moeda que circula. Assim sendo, a expansão da capacidade produtiva nos países deve ser contínua, de modo a aumentar a oferta de produtos e reduzir os preços dos mesmos.

Na atualidade, a moeda emitida pelos governos não tem lastro algum, senão, a confiança depositada no seu monopólio estatal. O cidadão não tem controle algum sobre seu dinheiro, muitas vezes, ficando a mercê de caprichos e arbitrariedades, com a conivência do sistema bancário.

A nova lei conferiu apenas uma pseudoautonomia ao BACEN. Muito embora, tenha tido um impacto positivo a reputação do Brasil nos mercados financeiros internacionais, o seu texto apresenta fendas para a ingerência do executivo na instituição.

A título de ilustração o parágrafo único do artigo 1º da referida norma estabelece que além de sua função de zelar pela estabilidade monetária, terá que “fomentar o pleno emprego”. E é justamente aqui que reside o problema.

O histórico de planos econômicos da nossa economia serve como testemunha quanto aos efeitos deletérios da intromissão do executivo na taxa básica de juros: economia estagnada e aumento da inflação.

Por outro lado, a lei abre a possibilidade de as decisões do Banco Central serem contestadas no Judiciário por supostamente falharem em atingir um dos objetivos, colocando em risco o prestígio e a confiança dos mercados financeiros sobre a instituição, afugentando-se os investimentos.

Em face destes desafios, a instituição tem a missão de exercer uma liderança com empenho e firmeza em defesa da ciência econômica, sem ceder às pressões políticas, com o apoio da sociedade civil.

A nova lei, por si só, não terá efeito prático relevante. A liderança da instituição continuará a ter que mostrar firmeza perante governo e Congresso, para que se alcance o almejado avanço institucional. 

A economia, enquanto ciência não é opinião e muitos menos artifício para falsas narrativas populistas. Para ser sustentável deve incentivar a inovação, o crescimento da produtividade e da poupança. Essa sustentabilidade deve ser amparada por uma política monetária coesa onde há o equilíbrio dos fundamentos macroeconômicos (política fiscal, monetária e cambial). 

O progresso não é um programa de governo. Portanto, compete ao BACEN, precipuamente, a função de zelar pela estabilidade monetária (ausência de inflação, estabilidade das taxas de câmbio, etc.), enquanto instituição autônoma, livre de toda pressão política, não podendo, portanto, ser um arremedo do executivo.

 

Notas

[1] As correntes desenvolvimentistas quase sempre se impuseram, conseqüência do grande dinamismo e potencial de crescimento de nossa economia, bem como do amplo apoio da sociedade a esse tipo de política” LACERDA, Antonio Corrêa de. et al. Economia brasileira. São Paulo: Saraiva, 2.ed., 2003. P. 140.

[2] Nesse sentido, o jurista Jairo Saddi: “Melhor será, neste estágio um contrato entre a sociedade e o Banco Central. Qual é o nível de inflação que se deseja? Qual é o tipo de supervisão bancária mais adequada para o consumidor de serviços bancários? Estas são algumas das perguntas que ecoam no sentido de avançar numa convenção que possa ser estabelecida entre os sujeitos de Direito Privado e os de Direito Público, orientados, é claro, por ideais sociais de desenvolvimento e de bem estar. Poder-se-ia estabelecer um rol específico de metas e objetivos e a cada um deles estabelecer sanções por seu não cumprimento” SADDI, Jairo. “Autonomia,  Independência ou Contrato: o que devemos esperar do Banco Central”. [Internet] Disponível em: https://www.saddi.com.br, Acessado em 07/07/21.

*Foto:  Free-Photos por Pixabay (Imagem ilustrativa)

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