Trespasse x Cessão de quotas

Trespasse x Cessão de quotas

É muito comum ouvir no jargão popular expressões como “passo o ponto” e “vendo a empresa”. Em termos jurídicos, existem diferentes formas de realizar a operação, sendo imprescindível o seu conhecimento e aporte técnico para a correta condução do contrato e análise da sua matriz de risco.

 

“Não quero um advogado para me dizer o que eu não posso fazer. Eu o contrato para dizer como fazer o que eu quero fazer” (J. P. Morgan)

 

Expressões vistas em nosso cotidiano como: “passo o ponto” e “vendo a empresa” - suscitam, muitas vezes, confusão e desconhecimento da Lei e de suas particularidades, entre os empreendedores, a começar pelo conceito de estabelecimento empresarial.

Estabelecimento empresarial é o complexo de bens reunidos pelo empresário – corpóreos, como mercadorias, instalações, equipamentos, veículos, utensílios, etc. e incorpóreos, assim as marcas, patentes, ponto empresarial e etc. – organizados de forma racional e unitária para o desenvolvimento de sua atividade econômica (Código Civil, artigo 1142).

Destaca-se, neste contexto, o conceito de goodwill, mais abrangente ao de estabelecimento empresarial, uma vez que, se trata do valor econômico agregado, ou seja, do valor de mercado que excede ao total do capital investido em seus ativos, como bem leciona o Professor Assaf Neto [1]: “O preço que um investidor pagaria por uma empresa a mais do que gastaria na hipótese de construí-la na atual estrutura de investimento”. 

Para fins didáticos, ilustramos a hipótese de um empreendedor interessado em se estabelecer no ramo farmacêutico.

Neste compasso, tem duas opções: adquirir uma farmácia já pronta ou construí-la com todos os bens que devem existir nessa seara. Por obvio, na primeira, o empresário irá desembolsar valor maior que no segundo, em face da organização unitária, ora valorizada pelo mercado.

Vale ressaltar que contratos, créditos e dívidas da empresa que não estejam ligadas diretamente ao estabelecimento não fazem parte do complexo de bens que formam o estabelecimento comercial, mas sim o patrimônio da empresa, que são coisas diferentes.

O patrimônio é o conjunto de bens, direitos e obrigações vinculados à empresa, já o estabelecimento é o conjunto de bens que servem para a atividade fim da empresa, logo, o estabelecimento compõe o patrimônio da sociedade empresária, mas não se confunde com ele.

Feito essas considerações preliminares, veja-se na casuística, que muitos empreendedores pretendem vender ou comprar um negócio empresarial em atividade, como um restaurante, ou mesmo, participar de seus negócios, como sócio ou investidor.   

Existem diferentes formas de realizar a operação, sendo a venda de estabelecimento (trespasse) e a cessão de quotas, as mais utilizadas.  Começaremos pelo trespasse.

TRESPASSE

O instrumento de compra e venda e/ou alienação do estabelecimento é denominado de trespasse, que deverá ser celebrado por escrito e seguir os tramite formais da norma civil (Código Civil, artigos 1.144 e 1.145).

O objeto do negócio jurídico é o estabelecimento, que representa um bem coletivo (uma universalidade de fato), na forma do artigo 1.143 do Código Civil. As partes contratantes são o trespassante, titular do estabelecimento (a sociedade LTDA, por exemplo) e o trespassário (uma outra sociedade ou mesmo uma pessoa física).

O trespasse pressupõe a averbação do contrato na junta comercial e a sua posterior publicação na imprensa oficial (Código Civil, artigo 1.144) para sua eficácia perante terceiros.  

DÍVIDAS EXISTENTES ANTES DA TRANSFERÊNCIA

O artigo 1.146 do Código Civil estabelece a responsabilidade do adquirente por dividas anteriores, desde que, estejam regularmente contabilizadas, permanecendo, em contrapartida, a responsabilidade solidária do alienante, pelo prazo de um ano. Por essa razão, é de extrema importância a realização da due diligence (auditoria) para este fim específico.

Contudo, há exceções. O adquirente responde por débitos fiscais e trabalhistas, ainda que não contabilizados, conforme disposição dos artigos 133 do Código Tributário Nacional e 448 da CLT, respectivamente.

Diante do trespasse, os contratos de trabalho permanecem (CLT, artigo 448) em respeito ao Princípio da Continuidade da Relação de Emprego.

Note-se a importância da realização de diligências prévias como a obtenção de certidões negativas perante o fisco e da Justiça do trabalho, para melhor resguardo de direitos ao comprador.

Outra exceção: trespasse na Falência ou Recuperação Judicial. Quem compra, nesta hipótese (arrematante), não assume nenhum ônus (Lei 11.101/05 – Lei de Falência e Recuperação, vide artigos 60, 60-A e 141, inciso II).

Vale esclarecer que, o empresário que quer vender o estabelecimento empresarial, caso tenha dívidas, deverá quitá-las ou conservar bens suficientes para pagar todas elas, ou, então, deverá obter o consentimento dos credores, sob pena de ser decretada a sua falência (LFR, artigo 94, inciso II, alínea “c”).

DISPOSIÇÕES CONTRATUAIS

O código civil pune o vendedor que de forma intencional não informa sobre um dado sensível para a escolha do negócio, como omissão dolosa, (Código Civil, artigo 147). É, pois, causa à resolução do contrato (Código Civil, artigo 475).

A título de ilustração, citamos a hipótese de um vendedor omitir ao comprador que o estabelecimento funcionava sem o competente alvará de funcionamento, auto de vistoria do Corpo de Bombeiros - AVCB, nem Alvará de Vigilância Sanitária.

Os reflexos deste ardil denotam a importância da advocacia preventiva e especializada, como suporte, visando resguardar as condições necessárias para o exercício regular da atividade comercial, por meio de redação assertiva, no bojo do contrato, a título de exemplo:

 

“Obriga-se o VENDEDOR a liquidar todas as dívidas, sejam estas fiscais, trabalhistas, ou débitos perante terceiros, com a devida regularização administrativa do estabelecimento empresarial perante a municipalidade e demais repartições, entregando assim ao COMPRADOR, o estabelecimento objeto do presente contrato, livre e desembaraçado de quaisquer ônus”

 

O objetivo deste aporte técnico e consultivo é minorar os riscos de sua judicialização e/ou amenizar os seus efeitos deletérios, de ordem patrimonial e emocional.

A pessoa que vende o estabelecimento não poderá exercer concorrência ao adquirente pelo prazo de 05 (cinco) anos, salvo se no contrato estipular prazo diferente (liberdade das partes em ajustarem o prazo, atividade explorada, restrição territorial, etc.) – artigo 1.147 do Código Civil.

CONTRATO DE CESSÃO DE QUOTAS

Como é cediço, a quota é a parcela constituída em bens ou dinheiro que cada sócio incorpora para a formação total do capital social que, por sua vez, é o valor necessário para iniciar as atividades da empresa, conferindo-lhe direitos em relação à sociedade, seja direito político (voto, gestão) e/ou direito econômico (lucros/dividendos).

Por sua vez, a cessão de quotas é negócio jurídico que tem como partes os sócios cedentes, de um lado, e de outro, os novos sócios cessionários, promovendo-se a alteração do quadro societário da empresa.

Deste modo, o objeto do negócio são as quotas sociais e, não o estabelecimento, que continua pertencendo à mesma pessoa jurídica.

Em comparação ao trespasse, o rito para a cessão de quotas é sensivelmente mais simples. Basta a alteração contratual ou mesmo um instrumento particular de cessão. Em qualquer caso, o instrumento tem que ser levado à averbação na Junta Comercial (Código Civil, artigo 1.003).  

A referida cessão deve respeitar a legislação vigente (direito de preferência, quórum de aprovação, etc.) e as disposições do contrato social e/ou acordo de sócios e mais especificadamente, o contrato particular de cessão de quotas (formas, valores, exigências e etc).  

Com a cessão das quotas, o sócio cedente poderá ter prejuízo ou lucro, conforme o preço da operação seja inferior ou superior ao preço de aquisição. Lembrando que, havendo lucro a operação estará sujeita a tributação pelo imposto de renda por ganho de capital.

OBSERVAÇÕES: SOCIO CEDENTE E O ADMITIDO

O sócio, admitido em sociedade já constituída, não se exime das dívidas sociais anteriores à admissão (Código Civil, artigo 1.025).

Ainda, o cedente poderá responder de forma solidária com o cessionário pelo período de 02 (dois) anos contados da averbação por todas as obrigações que tinha até o momento (Código Civil, artigo 1.032).

TERCEIROS ESTRANHOS A SOCIEDADE (LTDA)

Vale ressaltar que a cessão de quotas a terceiros estranhos à sociedade (LTDA) só será concretizada se não houver oposição de mais de ¼ (um quarto) do capital social (Código Civil, artigo 1057).  

OBSERVAÇÕES: MANUAL DREI [2]

A - PRESUÇÃO DE ONEROSIDADE

A transferência de quotas presume-se onerosa e somente será considerada gratuita se ex-pressamente consignado no instrumento. Quando a transferência for gratuita, não será exigida comprovação de quitação de qualquer tributo, nos termos do art. 9º da Lei Complementar nº 123, de 2006, com a redação dada pela Lei Complementar nº 147, de 07 de agosto de 2014.

Se o contrato social contiver cláusula determinando a regência supletiva da Lei de Sociedades por Ações, a sociedade limitada pode adquirir suas próprias quotas, observadas as condições legalmente estabelecidas, fato que não lhe confere a condição de sócia (Enunciado nº 391, da IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal)

B – CESSÃO DE QUOTAS, SEM NECESSIDADE DE ARQUIVAMENTO DE ATO ALTERADOR

Na omissão do contrato social, a cessão de quotas de uma sociedade limitada pode ser feita por instrumento de cessão de quotas, total ou parcialmente, averbado junto ao registro da sociedade, com a devida repercussão no cadastro e independentemente de alteração contratual (Enunciado nº 225, da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal), observando o disposto no art. 1.057 e parágrafo único, do Código Civil:

I - a quem seja sócio, independe de audiência dos outros sócios, ou

II - a estranho, se não houver oposição de titulares de mais de um quarto do capital social.

C- REUNIÃO OU ASSMBLEIA DE SÓCIOS

A reunião ou assembleia de sócios pode ser suprida, se substituída pela expressa anuência escrita, no instrumento de cessão ou em outro, de detentores de mais de setenta e cinco por cento do capital social da limitada em questão.

Será obrigatória na primeira alteração contratual que sobrevier após a averbação da cessão, a consolidação do Contrato Social, com o novo quadro societário.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O contrato de Trespasse não pode ser confundido com a alienação de quotas de sociedade.

Conforme acima exposto, no trespasse, o estabelecimento empresarial alienante passa a não fazer mais parte do patrimônio da sociedade o qual, então, passará a integrar o patrimônio da sociedade do adquirente. Assim, a empresa vendedora pode continuar exercendo sua atividade normalmente, porém, em outro estabelecimento. Neste caso, deve-se observar a cláusula de não concorrência (tempo + delimitação territorial + atividade explorada).

A empresa cedente não pretende compor o quadro societário da adquirente, seja como sócio ou investidor, apenas vender o estabelecimento, o que não incluí o CNPJ, ou seja, apenas o conjunto composto por elementos suficientes ao exercício da atividade empresarial (Exemplo: adquirir uma padaria “montada”).

Na outra ponta, na cessão de quotas, o estabelecimento comercial não muda de titular, pois ele vai continuar pertencendo à sociedade empresária (CNPJ), o que será alterado neste caso é apenas o quadro societário.

Cada caso deve ser analisado com cautela e com particularidade [3], contudo, a cessão de quotas é, normalmente, o instrumento mais acertado para a maioria dos casos em que o titular pretende “vender a empresa”.

Um bom advogado contratualista se difere do generalista devido a sua capacidade de também identificar o que não se vê [4], por meio da redação de cláusulas contratuais customizadas, para melhor alocação de riscos, maximizando oportunidades e acima de tudo, gerando valor agregado aos negócios, por meio da perpetuidade e segurança jurídica.  

*Foto:  Free-Photos por Pixabay (Imagem ilustrativa).

 

Notas:

[1] ASSAF NETO, Alexandre. Finanças Corporativas e Valor. São Paulo: Atlas, 2003. P. 244.

[2] BRASIL. Ministério da Economia. Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital Secretaria de Governo Digital. Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração. MANUAL DE REGISTRO DE SOCIEDADE LIMITADA Alterado pela Instrução Normativa DREI nº 55, de 2 de junho de 2021. Publicado no D.O.U. em 15 de junho de 2020. Disponível em: https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/drei/legislacao/arquivos/legislacoes-federais/in-81-2020-anexo-iv-manual-de-ltda-alterado-pela-in-55-de-2021-revisado-10jun2021.pdf. Capturado em: 26/01/22.

[3] Este é um artigo informativo e não substitui uma consulta com advogado(a) da sua confiança.

[4] Os contratos empresariais são uma rede que fomenta a Economia. Esta ideia de perquirir os seus reflexos ocultos, encontra-se amparo na doutrina de Frederic Bastiat, na qual afirma que toda ação na economia tem consequências, algumas aparecerão imediatamente (o que se vê) e outras posteriormente (o que não se vê). BASTIAT, Frederic. “O que se vê e o que não se vê”. Editado pelo Instituto Mises Brasil em 2010 (2ª edição).

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