A criança que habita cada um de nós

A criança que habita cada um de nós

     "O menino é pai do homem" é um belíssimo verso de William Wordsworth, usado também em um dos livros de Machado de Assis, que ressalta a existência e permanência viva do infantil no adulto. Na mesma linha, pode-se lembrar da música de Milton Nascimento e de Fernando Brandt, que diz: "Há um menino, há um moleque, morando sempre no meu coração". Tais trechos dizem de uma força motriz, de criação e geração de vida presentes no infantil, que se associam à criatividade, ao lúdico, aos sonhos, à esperança e ao pensamento mágico e ilusório, que se encontram na raiz das experiências artísticas, culturais e do viver criativo do mundo adulto.

     Ao passo que se verificam as inúmeras possibilidades inerentes ao mundo infantil, não se pode deixar de apontar que hoje se vive um paradoxo. Encurta-se cada vez mais o período da infância, transformando as crianças em adultos em miniatura, abarrotadas que ficam de compromissos - não é de se admirar que reajam a isso com agitação. As bonecas, os carrinhos e outras brincadeiras e jogos estão cada vez mais sendo substituídos por celulares e tablets, o contato humano entre pares trocado pelo contato inanimado. Imitam e vivem a expectativa ilusória do mundo adulto como ideal a ser atingido.

     O mesmo acontece com os adolescentes, que vivem um momento de suspensão em que não são nem crianças nem adultos. Esperam ansiosos a carteira de motorista, símbolo de sua carta de alforria, rumo a um estágio de independência, autonomia e liberdade. Aguardam um reconhecimento de identidade que demora a chegar, oscilando entre aspectos menos amadurecidos e assunção de características mais adultas, consoantes com seu período de desenvolvimento.

    Os adultos, por outro lado, buscam cada vez mais alargar o estágio em que podem protelar a assunção progressiva das responsabilidades por suas escolhas, lamentando o paraíso-infância perdido. Como envelhecer/crescer/desenvolver-se, uma vez que a aspiração do adulto é manifestamente rejuvenescer? Dependendo do impacto, esse movimento pode adquirir características regressivas, levando a pessoa a retornar a uma condição fragilizada e de dependência, o que a impossibilita de se desenvolver.

     No entanto, quando a criança que existe em nós pode ser reconhecida na mente do adulto, discriminando-se os aspectos infantis que podem atuar em prol do desenvolvimento, há a possibilidade de se usufruir positivamente de sua potência, de sua força de vida, o que pode contribuir para uma experiência de vida mais fecunda. O infantil nutre a capacidade criativa, imaginativa, artística, sonhadora, a espontaneidade, a renovação, a capacidade de brincar, manifestada nas expressões culturais do universo adulto. Quando integradas a outros recursos pessoais desenvolvidos por este ao longo de seu crescimento, podem favorecer um empoderamento diante das experiências cotidianas, do novo e do desconhecido, tornando o viver menos enrijecido, ossificado e mais espontâneo, livre e autêntico.

     Assim, poder adotar e acolher a criança que mora em cada um de nós, com quem se pode reconciliar, podendo reconhecer suas potencialidades, integrando-a ao processo de desenvolvimento, favorece a apropriação do viver, a experiência de integração e de ser quem se é. É como continua a música de Milton Nascimento e Fernando Brant referida anteriormente, "Toda vez que o adulto balança ele (o menino) vem pra me dar a mão/Há um passado no meu presente, o sol bem quente lá no meu quintal/Toda vez que a bruxa me assombra o menino me dá a mão". Que a nossa criança possa sempre nos ser uma companhia viva em favor da vida e do desenvolvimento.

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