Da capacidade de se entediar

Da capacidade de se entediar

O momento atual em que vivemos é caracterizado por uma intensa necessidade de estimulação - a exemplo, pode-se citar o uso da tecnologia, com seus numerosos recursos e aplicativos que prometem facilitar a vida. Há também numerosos exemplos cotidianos de ações a que somos levados, preenchendo todo o tempo de nossos dias e nossas vidas, que podem ser reconhecidos nas recorrentes frases "está corrido", "o dia devia ter mais horas", apontando o quão abarrotados ficamos de atividades, funções, ocupações, distrações... 

Calligaris abordou sensivelmente essa questão, em seu texto "A favor do tédio" publicado na Folha no ano passado. Segundo ele, a necessidade de constantemente ser estimulado e entretido não levaria a um enriquecimento da vida, pelo contrário, provocaria uma dispersão empobrecedora das próprias experiências. Sensatamente, lembra que é necessário certo tédio - equivalente a não estar ocupado com atividades mil, mas vivenciando espera, pausa, vazio, de onde se pode surgir pensamento, imaginação, criação. Para Calligaris, a capacidade de se entediar, não estando o tempo todo muito estimulado por atividades, é favorecedora da construção de uma vida interior. Evitar o tédio estaria a serviço de negar e impedir o conhecimento de experiências importantíssimas para o desenvolvimento do indivíduo, tais como incômodo e solidão, aos quais poderíamos acrescentar sentimentos desagradáveis de toda sorte, dos quais todos nós tendemos a querer nos livrar. O autor situa essa questão no campo da criança e da educação, podendo-se ampliar para se compreender o modelo que nós adultos impomos às crianças, e as reações destas a um modo de vida acelerado.

Em um interessante blog, a também psicóloga Letícia Pergher problematiza a questão do sintoma de agitação nas crianças e o diferencia de um diagnóstico, como o do TDHA, Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade, que, segundo estudos, vem aumentando consideravelmente. Não poderia ser a agitação também uma reação da criança a uma estimulação exacerbada imposta também pelo ritmo e demandas da vida atuais? Se assim o fosse, a agitação poderia ser um sinal de um recurso de saúde apresentado pela criança. Ao mesmo tempo, sinalizaria que algo não está indo bem, de que a criança se assusta, incomoda-se, sofre com algo com o qual se encontra impossibilitada de lidar, agitando-se como uma forma de se acalmar, descarregando, através dos movimentos, o que sua mente não consegue processar.

O que se observa é um sentido de urgência sempre premente hoje em dia. Um excesso de compromissos, atividades, uma rotina abarrotada e acelerada que mais afasta de quem se é de verdade. Os pensamentos, que só podem surgir quando se pára, a partir da falta - ou do tédio na proposta de Calligaris - são os recursos a que podemos recorrer para dar conta das emoções da vida - ou quando não se tem o que fazer, na reflexão de Calligaris. Afinal, que pensamentos a mente pode abrigar quando não se está ocupado? Mantendo-nos ocupados não iremos acessá-los, o que não impede que também fiquemos agitados...

Para acessar o texto de Calligaris: https://app.folha.com/#noticia/339409 e o blog: https://seuspequenos.wordpress.com. 

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