"Da dura poesia concreta de tuas esquinas"

"Da dura poesia concreta de tuas esquinas"

     Em momentos como esse, nos quais se espera o exercício da democracia e o uso responsável da liberdade de expressão, o que se o observa, na realidade, é a criação de polaridades, reproduzindo-se discursos maniqueístas, preconceituosos, xenófobos, reveladores de ódio e intolerância ao outro. Existe uma confusão no sentido de que se expressar livremente independe de um senso de respeito ao outro e sobretudo de um senso de responsabilidade sobre o que se é dito e suas consequências. Existe uma confusão (com + fusão) de que o outro deve pensar como eu e ser igual a mim, de que possuo a verdade absoluta e inquestionável, de que o que penso é o melhor e é superior a qualquer outro pensamento. Pensamento? Será que de fato isto é pensamento, ou pensar seria poder transformar esses elementos de forma a poder integrá-los, suportando-se até mesmo a experiência de frustração por não ter os anseios atendidos ou um outro que se adeqüe exatamente ao que eu espero? Descarregar insultos e ofensas, que se proliferam caoticamente e só fazem aumentar e acirrar diferenças e intolerâncias, em um movimento que vai adquirindo certa dureza, concretude, diminuindo-se a possibilidade de simbolização, constitui um pensamento vazio, ou melhor, um não-pensamento, servindo para ser evacuado.

     Caetano Veloso, em sua música Sampa, longe de caracterizar uma realidade singular, captou o universal em nós: "Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto/Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto/É que Narciso acha feio o que não é espelho/E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho/Nada do que não era antes quando não somos Mutantes/E foste um difícil começo/Afasta o que não conheço (...) Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso". Aquilo que é diferente de mim e, portanto, não sou eu, tendo a repelir e expulsar, em uma atitude de manifesta intolerância.

     Em uma tirinha de Armandinho, na qual se recupera um poema tocante e chocante de Manuel Bandeira, retrata-se de outra forma o que podemos identificar nas manifestações atuais:

     Para além de entender o homem-bicho como aquele que busca sua sobrevivência através da tentativa de satisfazer suas necessidades fundamentais, que, no entanto, não deve ser negado nem banalizado, podemos compreender que o que também faz o homem bicho é o empobrecimento psíquico que o impede de ter contato com outras dimensões psíquicas ligadas ao primitivo, presente em todos nós, que precisa ser conhecido não para ser atuado, mas para ser integrado, simbolizado e compreendido.

     Um filme que alude a diferentes dimensões da natureza humana, atentando para o contato com o primitivo e o animalesco, chama-se "As Aventuras de Pi", que retrata a história de um indiano que sobrevive a um naufrágio e fica à deriva no mar, em um barco, com um tigre de bengala. As possibilidades interpretativas são diversas, no entanto se pode entender o uso alegórico dos animais e das forças da natureza como representantes das pessoas, podendo-se escolher que versão seria mais palatável - pensar que seriam pessoas e não bichos seria uma ideia terrorífica demais, pois precisaríamos reconhecer o animalesco e primitivismos presentes no próprio homem. Ou podemos também compreender dentro de um modelo de mente multidimensional, havendo uma representação de estados da nossa própria mente que se alternam, estados com os quais lidamos o tempo todo, umas vezes mais integrados e outras menos.

   Se pudermos aprender com a experiência, poderemos nos colocar diante do acontecido e questionar: quais atitudes, posturas, de que maneira cada um se posiciona - onipotente, onisciente, prepotentemente? Considera a alteridade, a diversidade, o outro que necessariamente é diferente de mim? Em que nível de funcionamento mental estamos operando - a favor do pensar ou da descarga evacuatória que mais confunde do que comunica algo?

     Lembrando Armandinho mais uma vez:

    Que "da dura poesia concreta de suas esquinas" e da vida, ainda possamos extrair o belo, a esperança e o sonho, menos enrijecidos e embrutecidos pelos acontecimentos cotidianos.

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