Da exigência da felicidade

Da exigência da felicidade

 

“Essa felicidade que supomos,/Árvore milagrosa que sonhamos,/

Toda arreada de dourados pomos,/Existe, sim; mas nós não a alcançamos/

Porque está sempre apenas onde a pomos/E nunca a pomos onde estamos."

(Vicente de Carvalho)

Exemplos não faltam a respeito de uma demonstração cada vez mais pública do que seria a necessidade constante da felicidade e, mais precisamente, da exibição do "ser feliz". As redes sociais talvez sejam o meio mais repleto e que mais claramente expõe essa questão, dado o alto índice de postagens associadas à exposição de - uma idealizada - felicidade. Há quem diga, inclusive, que as redes sociais são vitrines para que o indivíduo possa ser desejado e invejado, onde brotam sinais de realizações e contentamentos sem fim que levam a uma - desleal - comparação entre a minha vida/felicidade e a do outro. O perigo estaria no ideal de felicidade assim criado. Em um momento em que se deve ser feliz, sentir-se infeliz se torna um fardo.

Ao passo que existe cada vez maior exibição da felicidade compartilhada com amigos e seguidores em um número crescente, o que se impõe é a contrastante percepção de que talvez as pessoas nunca estiveram tão infelizes e mesmo isoladas e abaladas emocionalmente. A percepção equivocada de que a felicidade pode e deve ser atingida a todo o momento pode inclusive aumentar sensações da ordem de não pertencimento a um grupo/ao mundo, sentimentos de incongruência, estranheza, dentre outros. A preservação da felicidade enquanto estado continuado comportaria experimentar e prolongar intensa e indefinidamente o prazer, além da eliminação de qualquer dor ou sofrimento que possam ameaçá-lo.

Ora, a felicidade não é uma aquisição ou conquista permanente, como uma condição que experimentamos e que passa a nos pertencer, ainda que sua busca seja inerente à experiência humana. É importante observar que a felicidade eterna e ininterrupta é impossível e insustentável, mesmo porque seu sentido e intensidade advêm da alternância e contraste inclusive com o se sentir infeliz, como estados do espectro de emoções e expressões da natureza humana, sendo considerada, pois, episódica e não constante e estável. Aliás, tão mais frequentes são as possibilidades de se experimentar a infelicidade, seja no reconhecimento da realidade, nas vivências de frustração, nas dificuldades vividas nos relacionamentos, nas experiências da vida cotidiana...

A obrigação em ser feliz - até mesmo porque o seu oposto passa a ser negado, repudiado e afastado - gera ainda maior exigência e dificuldade em se vivenciar os próprios sentimentos e emoções. Talvez pior do que se sentir infeliz seja a incapacidade de sentir algo ou mesmo de se apropriar do que se sente. Ao lado do "dever de ser feliz", há a determinação do que é e do que não é felicidade, em uma padronização e homogeneização que excluem as singularidades de cada pessoa.

Em um momento em que o parecer se sobrepõe ao que de fato é, talvez parecer feliz esteja se sobrepondo ao se sentir feliz. Há um predomínio das sensações em relação ao experimentar e viver emoções nas relações reais com o outro. O ideal e a ilusão da felicidade - ou o parecer feliz - ou mesmo o reconhecimento e validação do outro quanto ao que é felicidade, podem esvaziar o indivíduo dele mesmo, do que lhe é próprio, que faz dele quem ele é, além de afetar a capacidade de se perceber e se apropriar do que sente. Talvez o sentimento genuíno de felicidade só possa ser experienciado mediante a capacidade de tolerar e conviver com a infelicidade, a dor, a frustração, o sofrimento, dos quais decorre o sentimento de enfrentar a realidade, em um estar vivo de modo mais verdadeiro, um estar vivo em sua própria experiência.

 

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