A despedida de todos os anos

A despedida de todos os anos

“Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela.”

(FREUD, 1916, p. 317-318)

 

O fim do ano se aproxima. Costumamos abordar esse período como instigando balanços e avaliações, metas e promessas, à espera de um ano novo infinitamente melhor. Roberto Pompeu de Toledo já nos falava “Quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias, a que se deu o nome de ano, foi um indivíduo genial. Industrializou a esperança [...]”.

 

A esperança de um ano novo ainda melhor que o anterior é uma constante. Mas para além das possibilidades para as quais um ano novo se abre, em um movimento de renovação e reinício, a passagem entre anos encerra em si o movimento oposto, o de término, lançando luz a um fenômeno de penosa e incômoda digestão, o da transitoriedade. Esta nos aproxima de uma vivência que nos é muito doída, do fim, da perda, do que um dia acaba, enfim, da morte.

 

Não por acaso as emoções despertadas, mais conscientemente ou não, são da ordem do contraditório, da ambivalência, da alegria e da dor, pois ao lado de comemorações, encontros e festejos, também somos apresentados à descontinuidade, à falta, às ausências, à saudade, ao doído no mais íntimo de nós.

 

Freud (1916, p. 317), em uma inegável capacidade literária, apresenta-nos sensivelmente uma abertura em relação ao olhar sobre a transitoriedade: 

 

Não faz muito tempo empreendi, num dia de verão, uma caminhada através de campos sorridentes na companhia de um amigo taciturno e de um poeta jovem mas já famoso. O poeta admirava a beleza do cenário à nossa volta, mas não extraía disso qualquer alegria. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava fadada à extinção, de que desapareceria quando sobreviesse o inverno, como toda a beleza humana e toda a beleza e esplendor que os homens criaram ou poderão criar. Tudo aquilo que, em outra circunstância, ele teria amado e admirado, pareceu-lhe despojado de seu valor por estar fadado à transitoriedade.

 

Continua dizendo serem duas as possibilidades em nossas mentes diante do efêmero e transitório: sentimento de um “[...] penoso desalento [...]” (FREUD, 1916, p. 317) tal qual o do poeta ou uma verdadeira rebelião contrária a algo incontestável. Segue dizendo: “Não! É impossível que toda essa beleza da Natureza e da Arte, do mundo de nossas sensações e do mundo externo, realmente venha a se desfazer em nada.” (FREUD, 1916, p. 317). Mas, ao contrário de ser uma negação da realidade em favor da imortalidade, Freud nos presenteia com a possibilidade de ver a perda não como uma redução de seu valor, mas como um aumento:

 

O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição. Era incompreensível, declarei, que o pensamento sobre a transitoriedade da beleza interferisse na alegria que dela derivamos. Quanto à beleza da Natureza, cada vez que é destruída pelo inverno, retorna no ano seguinte, do modo que, em relação à duração de nossas vidas, ela pode de fato ser considerada eterna. [...] Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela.” (FREUD, 1916, p. 317).

 

Para o autor, não poder aproveitar e fruir da beleza porque ela acaba pode constituir uma dificuldade de lidar com o luto, algo penoso para a nossa mente, diante do qual se pode recuar, dado seu caráter transitório, o que antecipa sua morte.

 

A evitação ou negação do luto pela perda de algo/alguém que nos é amado pode estancar o desenvolvimento, inviabilizando-o. A perecibilidade e a falta de resistência no tempo, como aponta Freud, leva muitos a negarem valor diante de algo que pode acabar e não se ter mais, o que lhes impede não apenas o luto e a sua elaboração, mas também a própria experiência, seja, por exemplo, a relação com alguém, uma experiência vivida, uma flor que desabrocha... A perda, inevitável, reafirma o valor do que foi vivido, pois, como aponta Freud, a preciosidade não se encontra na duração absoluta, nem a fragilidade expressa pela efemeridade e mutabilidade extinguem e esvaziam seu valor.

 

Gilberto Safra, professor e psicanalista, em uma comunicação oral, apresenta como o “olhar da despedida” pode modificar o nosso olhar sobre o outro e sobre o que vivemos. Saber que nada dura para sempre, ao contrário de nos impedir de viver, pode nos auxiliar a desenvolver um olhar poético e prenhe de sentidos. Para ele, a experiência não é algo que possamos ter; as experiências estão no cotidiano, precisando que se tenha uma condição de disponibilidade para que possamos ser alcançados por ela, permitindo ressignificações.

 

A passagem entre anos - velho e novo - revela a transitoriedade do que se é vivido - e também a nossa - imposta a todos nós. As emoções experimentadas também são da ordem da vivência do luto, com mais ou menos condição de atravessá-lo. O olhar de despedida - como o ritual da virada - que lançamos nesse momento nos permite valorizar o que de muita importância tem para nós e seguir. 

 

Assim, talvez o corte em fatias dos anos pelos quais passamos tenha mais uma função do que transmitir esperança. O viver os anos em ciclos, em um recomeçar e encerrar, talvez seja também uma tentativa de elaboração dos muitos lutos pelos quais passamos por toda a vida. Pois para um ano de fato novo existe alguma morte e luto, despedida; mas por mais dores que a perda desperte, ao se estar emocionalmente vivo na própria experiência, quando há mais vida do que morte, mais vale o que se viveu.

 

 

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FREUD, S. (1916[1915]). Sobre a transitoriedade. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2006.


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