Educação e Psicanálise: Formar ou Formatar Pessoas?

Educação e Psicanálise: Formar ou Formatar Pessoas?

"Quando uma criança fala sobre o vento, sobre a nuvem ou sobre o rio, a explicação que ela tem para essas coisas é certamente mágica, própria do seu pensamento de criança. Mas aquilo logo é corrigido, porque 'é preciso que a criança saiba o que é vento'. Adota-se um único discurso: o discurso científico. Mas é muito estéril e feio. E, assim, a possibilidade de a criança construir sua própria narrativa já está morta." (COUTO, 2013).

 

A Educação e a Psicanálise compartilham o interesse pelo desenvolvimento humano. Ainda que partam de vértices diferentes, o diálogo entre as áreas tem se mostrado de fundamental importância para a compreensão das questões que permeiam a construção do conhecimento e a sua relação com a subjetividade.

A IV Jornada de Psicanálise e Educação, que acontecerá na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo nessa semana, abordará a discussão muito atual e pertinente sobre "Formação ou Formatação: Articulações entre a Construção do Conhecimento e a Performance". Esse tema pode ser de especial interesse para quem trabalha em escola e/ou no campo educacional, que ultrapassa os muros escolares.

Como postulado norteador, tem-se que o objetivo primário da Educação é o de formar cidadãos críticos, éticos, reflexivos e autônomos. Aproveitando o tema da jornada como mote para pensar, no entanto, pode-se compreender que nem tudo o que acontece no contexto educacional vai ao encontro dessa premissa, sendo que as propostas educativas podem atuar não apenas no sentido de formar, mas sim no de formatar pessoas, dependendo da maneira como essas ações são concebidas, organizadas e/ou direcionadas.

Nesse sentido, poderíamos entender que as ações educacionais encontram-se a serviço da formação das pessoas/dos alunos quando ocorrem de modo a respeitar a individualidade e a singularidade de cada aluno, seu ritmo de desenvolvimento, sua criatividade e espontaneidade, expressão de sua subjetividade. A escola, espaço onde as ações educativas tomam lugar, forma o aluno quando oportuniza situações em que seu saber é aproveitado,  e não negado ou apagado; quando promove uma aprendizagem significativa ao vincular um conhecimento afetivamente ao aluno e a sua experiência, atribuindo-lhe sentido. Ainda, forma o aluno quando possibilita manifestação criativa, imaginativa, lúdica, admitindo-se a construção do conhecimento e o brincar como possibilidade de dar sentido ao mundo. O pensamento pode alçar vôo. Há liberdade para experimentar, perguntar, tentar e errar; aprender pelo ensaio e o erro, pela curiosidade, pela fantasia e pela realidade experimentada. 

As ações educativas, no entanto, também podem caminhar na direção contrária e promover a formatação dos alunos, engendrando uma concepção na qual o objetivo passa a ser tornar todos os alunos iguais e indiferenciados, homogeneizando e negando as diferenças, considerando-os seres padronizados. A produção do conhecimento passa a ser, então, massificada, onde todos são enquadrados sob o mesmo formato. Nesse campo, não há lugar para o subjetivo e criativo, imaginativo e lúdico. O curso do pensamento deve ser controlado, enquadrado, impedido de ganhar asas e o aluno é, então, impedido de sonhar. O que desviar da regra é formatado e integrado ao grupo dos iguais. E assim, enquadrados, não há espaço para o diferente, para perguntas, para dúvidas, incertezas e questionamentos. Ao modelo do computador, apaga-se o conteúdo prévio e se reconfigura o sistema, partindo-se do zero primordial, do vazio absoluto.  O conhecimento é apresentado de modo pronto e acabado de modo a ser incorporado goela abaixo. Curiosidade não tem vez nem voz. O aluno, "tabula rasa", folha em branco, no qual se despejam os conteúdos independentemente de terem ou não significado. Basta que sejam reproduzidos. Priorizam-se resultados a despeito do processo e do desenvolvimento. Quando a transmissão do conteúdo não é possível, questiona-se imediatamente o aluno-receptor, que, ao modelo "Admirável Mundo Novo", medicalizado, dissipa-se tudo, até mesmo a vivacidade e a espontaneidade que são, então, corrigidas a um padrão único e mais apropriado à ocasião.

Há, no entanto, uma tensão sempre presente entre o formar e o formatar pessoas, entre o ser enquanto singularidade e construção autônoma e o ser enquanto massa homogênea e indissociada; entre o dar forma única e o dar uma única forma a tudo e todos, formatando a um pensamento prévio. O aluno como possuidor de contribuições reposiciona-o na sua relação com a aprendizagem, saindo do lugar de receptáculo, que paralisa e esteriliza a condição pensante, levando-o a se apropriar de seu próprio percurso do aprender e do viver, que é sempre individual.

Eis a diferença entre formar e formatar pessoas, intimamente relacionada à possibilidade - ou não - de criação de condição de reflexão, indagação e pensamento. Para escolher entre uma ou outra opção, resta refletir que pessoas queremos formar: pessoas pensantes ou pessoas enquadradas. A resposta à pergunta indicará o caminho. Ou, ainda, novas inquietações e questionamentos.

 

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COUTO, M. (2013). Diálogo - Entrevista com Mia Couto. Revista Brasileira de Psicanálise, 47 (1).

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