Imagine para uma criança

Imagine para uma criança

Texto de meados da pandemia:

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Essa situação está difícil para você?

Se essa situação estiver difícil para você, imagine só para uma criança! É usual ouvirmos que ela não entende nem vai conseguir entender... Mas você já tentou explicar? E conversar?

É verdade que uma criança não vai entender... como nós! Depende muito da etapa de desenvolvimento em que se encontra. Aliás, nesta situação, será que estamos entendendo alguma coisa? Pois é, imagine só uma criança!

Poder explicar a ela que existe algo que ela não vê, mas existe e é preciso que ela acredite! É um bichinho muito perigoso, de tamanho tão pequenininho que é invisível aos nossos olhos, o que exigirá de cada um de nós um cuidado muito maior! 

So far so good / até aí tudo bem, histórias nos ajudam. Inclusive a criança já deve ter lido algum livrinho que fale de bactérias, da importância de se lavar as mãos. Momento apropriado para resgatá-lo!

Aí vem o mais difícil: como explicar e convencer uma criança de que... não pode sair de casa? Não pode, nem se quiser, ir à escola! Nem ao parquinho... De que não pode encontrar os avós? De que não pode correr para o abraço ou para um beijo ao se aproximar de alguém muito querido? Ainda mais nesse último "Dia das Mães"...

Precisamos falar que estamos cuidando muito um do outro, neste momento, quando evitamos nos tocar, abraçar, beijar, visitar... Isto é difícil para você? Imagine para uma criança! É provável que ela demonstre dificuldade em entender, inclusive porque são demonstrações afetivas habituais as quais são muitas vezes incentivadas, quando não obrigadas. (Sim, muitas vezes, tratamos crianças como objetos, e não perguntamos a elas se gostariam de ser beijadas ou de beijar alguém; não somos donos do corpo de uma criança, mas essa já é outra conversa...).

Mas o que você pode fazer é tentar se aproximar do olhar de uma criança. Ajuda quando você percebe o que está se passando em seu próprio interior. Está difícil para você? Imagine para uma criança! Mas as crianças não têm desenvolvidos ainda os recursos que nós temos e, ainda que tenhamos, ainda sentimos medo e incompreensão. Imagine uma criança! De repente, nem à escola vai. Não querer ir a algum lugar, o que todos sentimos em algum momento, é muito diferente de não poder ir, nem de casa pode sair! O que difere é que, na segunda opção, não há liberdade de escolha. E isso muda tudo! Imagine para uma criança que, dependendo de sua etapa de desenvolvimento, não consegue descentrar de si - isto é: não consegue entender que o mundo não gira em torno do umbigo dela. Como se diz atualmente: entendedores entenderão! Isso significa que também já fomos criança, e se convivermos de perto com alguma, é só aguardar e observar: esse comportamento, mais cedo ou mais tarde, vai se revelar.

Agora vem algo ainda mais difícil. Como fica a criança, se, de uma hora para outra - como nós -, é despojada de uma rotina que lhe confere parâmetros muito importantes de estabilidade e segurança? Assustada? Desesperada? Atordoada? Em algum momento, a criança, impossibilitada de transformar as sensações em algo que consiga conter, trans-bor-da! Isto é, suas emoções não digeridas tomam contam e a invadem, expressando-se na forma de comportamentos que, via de regra, incomodam os adultos. Geralmente nós, adultos, reagimos ante uma situação como essa, como se a criança pudesse fazer algo diferente! Não entendemos que a criança comunica, do jeito dela - e é agora que quem não entende somos nós! - um pedido de socorro, esperando que o adulto possa compreender, transformar e a acolher. Exatamente o que ela não consegue! E muitas vezes, nem nós! Mas não era só a criança quem não entendia?

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Segue uma vinheta de “cenas cotidianas em tempos de pandemia”:

No condomínio onde moro, tenho observado muitos pais e mães descendo para a área social/comum, nem que seja para caminhar com seus filhos. Criança precisa, dentre outras necessidades - que incluem falar, a sua maneira, o que estão sentindo -, extravasar sua energia, colocar para fora mesmo!

Caminhando em sentido contrário, percebo uma criança, timidamente, escondendo um meio aceno para mim. Mas, quando olho para ela, esconde imediatamente a mão. Entristecida comigo mesma - como não percebi isso antes? - penso ser possível nos dar uma segunda chance!

Como o percurso é circular, ando mais depressa para encontrá-la rapidamente de novo. Perto, mas na medida que o momento pede de distância, olho para ela e não apenas digo “Oi!”, mas também aceno - pensei até mesmo em me abaixar, mesmo já sendo baixinha, para deixar meus olhos no nível dos da criança (o olho no olho sempre funciona!), mas como continuávamos andando, não daria muito certo -, ao que ela me respondeu pronta e triplamente com: “oi”!, aceno e sorriso. 

Imediatamente o pai olhou para mim e sorriu. Sorriu até com os olhos, e como isso é possível! Não me disse nem oi, não com a boca, frisa-se, mas o senti muito agradecido. Penso que se sentiu acolhido, não está sendo fácil para ninguém! Mas imagine para uma criança... E imagine só para quem, nesse momento, cuida de uma criança! Não está fácil para ninguém! E imagine só para a criança no interior do adulto... Sim, porque, se é verdadeiro o belíssimo verso de William Wordsworth, “O menino é pai do homem.” - de quem Machado de Assis pega a ideia de empréstimo -, há uma criança que habita o adulto que, neste momento, também deve estar se sentindo muito desamparada, pedindo à condição de adulto, que também possuímos, que a adote e a acolha.

Hoje, um “Oi!”, um “Bom dia!” mais do que nunca, equivalem a um abraço, um beijo, um aperto de mão; um “Estou aqui!”, um “Você não está só!”, um “Está difícil! Eu sei! Eu sei porque também sinto isso!”. Equivale a se sentir visto, reconhecido, que é uma necessidade universal. Isso funciona! E não apenas com uma criança.

Um bom dia para você também!

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