Da impossibilidade de se estar só
Recentemente, Calligaris escreveu um texto muito interessante na sua coluna da Folha intitulado "Ninguém pode se ausentar". Diz respeito às relações contemporâneas e à tecnologia atual que promete facilitar o contato entre as pessoas. Em tempos de smartphones e tablets, de redes sociais, tais como facebook, e de aplicativos, como whatsapp, com seus recursos cada vez mais incrementados e que possibilitam visualizar recebimento e leitura das mensagens enviadas, o que se coloca em questão, na visão do autor, é a impossibilidade de se ausentar.
Podemos pensar, junto com o autor, que essas ferramentas vendem a ilusão de que o outro é alcançável, a qualquer momento está à disposição - e não disponível - podendo ser acessado, usado e, por que não, dispensado. Faz interlocução com o pensamento de Bauman, sociólogo polonês, em que, em tempos caracterizados pela "modernidade líquida", predominam relações superficiais, instáveis e descartáveis. A exemplo dos líquidos, que não têm forma, sendo fluidos que se moldam segundo recipientes nos quais estão contidos, as relações, vividas em tempos líquidos, encontram-se em um estado em que tuda muda rapidamente, em que nada é feito para durar, tampouco para ser sólido.
Para Calligaris, nos tempos atuais, é intolerável a ideia de que o outro não possa ser alcançado, que possa se ausentar. A disponibilidade permanente estaria a serviço de ocultar o terror da ausência, da falta - a nossa e a do outro. Não há espaço para silêncios, espera, separações. Vive-se um mundo do instantâneo.
Pensando-se nessas questões, verificamos que smartphones e tablets são cada vez mais artigos comuns entre pessoas de todas idades - incluindo crianças muito pequenas. São usados muitas vezes substituindo um contato humano por um contato inanimado, mediado por aparelhos eletrônicos, não-vivos. Não raro, pessoas, ainda que reunidas fisicamente, encontram-se conectadas e isoladas, cada qual com seu aparelho, conversando virtualmente em detrimento do contato vivo, próximo, presente.
A despeito dos impactos que o mau e excessivo uso podem acarretar para o desenvolvimento, podemos compreender esse movimento como desvelando a impossibilidade de se estar só - consigo mesmo e com o outro. Há uma proliferação de mensagens que invadem o celular alheio, chamando seu dono constantemente a se fazer presente, a responder, com pouca possibilidade de tolerar o tempo e ritmo do outro, de aguardar ou tolerar a falta do outro. Do outro lado, há alguém cujo terror talvez seja a de ser esquecido, da não-existência, de estar sozinho.
A constituição de um espaço em que seja possível experienciar a ausência, a falta, a separação, a angústia associa-se a uma intimidade psíquica, a um desenvolvimento mental, que inclui, inicialmente na vida, depois da experiência de estar com o outro, a vivência de estar só na presença de alguém, uma presença que suporte, ofereça sustentação a estados mentais sem que o indivíduo se sinta demasiadamente desamparado. Essas experiências, ainda quando pequeno, permitem o desenvolvimento de uma maior tolerância às frustrações que, quando suportadas, os pensamentos podem surgir.
O uso/abuso da tecnologia atual, muitas vezes, funciona a serviço de negar as diferenças, as ausências e a falta. Funciona no sentido de uma baixa tolerância a estar só com seus próprios pensamentos e emoções, uma intolerância às separações, ao outro não ser alcançável, à disponibilidade que, diferentemente do estar à disposição, pressupõe limite e espera...
Para quem quiser ler a coluna de Calligaris, acesse: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/contardocalligaris/2014/11/1550494-ninguem-pode-se-ausentar.shtml.