Luto é travessia

Ana Flávia de Oliveira Santos

28 Mai 2021 03:29

A vida não para. Vem em ondas, uma se sobrepondo à outra, às vezes parecendo nos afogar. Ou aos atropelos. Se não se freia, entra em congestionamento e engavetamento. Ou descarrilamento. E se é preciso coragem para se estar vivo, necessita-se ainda mais para seguir, continuar; morrer algo dentro e, ainda assim, continuar vivendo. 

Parecer-se em ruínas, e se reconstruir e se reconstituir, ainda que dos fragmentos e estilhaços restantes. Cujos remendos permanecem aparentes, posto que não se colam como antes. Faltam partes, ainda que mínimas… Embora gigantescas! Com veios remanescentes que não escondem suas marcas. As de vida. E as de morte também. Sempre severinas… pois dizem da aridez que compõe - e também decompõe - a própria vida. 

Pois que por mais que possamos ser retirantes, aqueles que partem em busca de um lugar, é da própria vida que não devemos nos furtar, ou nos retirar. Posto que é da própria terra, ou do barro, de que somos feitos, que podemos nos amassar e remoldar. Caso contrário corremos até mesmo o risco de nos extraviar de nós mesmos…

Daí a necessidade de um guia. Não fora, mas dentro. Que nos relembre de quem fomos e somos e a que viemos e para aonde seguimos. Pois é preciso continuar, mesmo em nebulosos e escuros terrenos. Ainda que não se divisem caminhos. Pois o essencial é poder caminhar. Que diz da persistência da vida. Embora muito se sinta que morreu. Pois vida e morte se avizinham, permanecem em trânsito. 

Ao mesmo tempo que a vida clama, chama, urge, há a morte que se impõe enquanto presença viva, que dá trabalho. Mas que também produz e rende, posto que movimenta. Exige trabalho interno: é preciso rastrear vida além da dor! Pois “Quem quer passar além do Bojador / Tem que passar além da dor. / Deus ao mar o perigo e o abismo deu, / Mas nele é que espelhou o céu.” (Pessoa).

E ainda há vida. O que acalenta e que também traz dor. Mas, como nos lembra Bion: é preciso “fazer algo pela vida que está por vir.”. E ela já está aqui, pedindo companhia, cobrando passagem. Travessia.