Medicalização da Vida

Medicalização da Vida

"Sou muito agradecido à mãe natureza por ter me dado minha tristeza. É ela que me poupa de, alegremente, comemorar a perda de um amigo ou a perda dos dedos da mão. Ou ficar indiferente a isso. Bendita tristeza que não me permite ser absurdo em relação a tudo que me acontece vindo de externo a mim." (DI LORETO, 1997, p. 51)


     A revisão mais recente do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais, conhecido com DSM-V, da Associação Americana de Psiquiatria (APA), datada de 2013, incorporou novas categorias diagnósticas ao rol dos transtornos, não listadas anteriormente. Popularmente também é referido como "Bíblia da Psiquiatria". É utilizado como referência pelos profissionais no campo da assistência em saúde mental em todo o mundo. O que gerou muita controvérsia, no entanto, foi que essa hiperinflação diagnóstica se deu transformando comportamentos e experiências comuns em transtornos mentais.

    Ainda que as edições anteriores do Manual tenham recebido críticas, a nova edição provocou dissidências, afastando até mesmo quem anteriormente ajudou a elaborá-lo, o que despertou, no mínimo, curiosidade, atenção e questionamentos. Quem mais lucra é a indústria farmacêutica, que vem movendo e promovendo, em grande parte, a psiquiatrização do cotidiano e a medicalização da vida. E, com isso, vem distorcendo os limites da "normalidade", encolhendo cada vez mais seus limiares, ao passo que a Psiquiatria vai alargando seu domínio no que diz respeito à patologização.

     Resta, no entanto, estabelecer as fronteiras entre o "normal" e o "anormal", o patológico. A discussão acerca da definição do que é normal sempre provocou muitos conflitos. Dalgalarrondo (2008), em sua tentativa de estabelecer a definição quanto à normalidade, demonstrou o amplo espectro de possibilidades de sua descrição. A exemplo, associou-a à norma como referência, ao ideal ou a um padrão estatístico, um fenômeno quantitativo, descritivo, relativo à frequência (pode-se indagar: o que é raro seria patológico?). Ainda, relacionou-a à ausência de doença, sendo uma definição negativa, definindo normalidade pelo que não é. Como sinônimo a um bem-estar ou relativo a um conceito de funcionalidade, ao qual a anormalidade se associaria a uma disfuncionalidade, ao que gera sofrimento ao indivíduo. Normalidade, ainda, poderia ser entendida como um processo dinâmico de desenvolvimento psicossocial que envolve desestruturações e novas estruturações, ou mesmo do ponto de vista subjetivo, como relativo à autopercepção do indivíduo quanto a sua saúde. Outras descrições também são possíveis, dependendes e variáveis segundo a cultura, concepções ideológicas, visão de mundo e de homem.

   Freud, ao tratar dessas questões, usou o modelo da homeostase, em que o organismo busca o equilíbrio através de movimentos de regulação interna. Também considerou a normalidade e o patológico como apresentando diferenças entre graus, em uma linha em continuidade, que liga um ao outro. O normal e o patológico se separariam, assim, por uma tênue linha divisória.

     A normalidade e, em contrapartida, a anormalidade são, pois, construções sócio-histórico-culturais. Não se pode esquecer que os manuais, considerados como referência, também são construções discursivas, representativas do seu momento histórico, que veiculam uma comunicação determinada culturalmente. Quando falamos sobre tais construções, precisamos dizer de que lugar estamos falando. Cabe questionar a que interesses o estabelecimento do que é ser normal está atendendo e se não está a serviço da medicalização da vida. Não que a prescrição medicamentosa não seja por vezes necessária. A crítica recai à forma de olhar para a vida que cria um sintoma/uma patologia. E a crença ligada ao pensamento mágico de que o comprimido pode solucionar os problemas do cotidiano, destituindo a vida subjetiva de sentido e levando ao silenciamento das emoções e dos afetos, bem como do próprio sintoma.

    Ao silenciar/eliminar o sintoma, no entanto, o que se consegue é apagar a trilha que poderia levar à construção de um sentido que levou a sua formação, com o agravante de atuar no efeito sem se ter notícia do desenvolvimento do conflito psíquico. A vida psíquica acaba reduzida e o sinal de que se tinha de sua existência fica apagado. 

    Infelizmente, as crianças e os adolescentes são alvos frequentes da medicalização, como ocorre no tratamento, por exemplo, do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), cujo número de diagnósticos vem assustadoramente se elevando nos últimos  anos no país em relação a essas etapas do desenvolvimento. Em uma pesquisa realizada pelo Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), em dez anos houve um aumento de 775% no uso de Ritalina, um dos medicamentos utilizados no tratamento do TDAH em crianças e adolescentes, segundo dados divulgados em jornais e revistas de circulação nacional no mês de agosto do presente ano. Um aumento dessa magnitude, para além de significar maior conhecimento do transtorno e outros usos indevidos do medicamento, pode refletir uma banalização da medicalização, que se agrava ainda mais em se considerando que são crianças e adolescentes, pessoas em desenvolvimento. O que se observa é a desvitalização da própria vida, uma tentativa de correção a um modelo único, padronizado, em que se corrige o que foge à norma, ao esperado, ao desejado, dissipando, muitas vezes, inclusive a própria vida. 

     Sobre o tema do DSM-V, vale ler a entrevista concedida por Allen Frances, ex-coordenador do DSM, que pode ser acessada no link: https://psibr.com.br/noticias/ex-coordenador-do-dsm-sobre-a-biblia-da-psiquiatria-transformamos-problemas-cotidianos-em-transtornos-mentais. E também o texto de Eliane Brum, "Acordei Doente Mental", no link: https://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2013/05/acordei-doente-mental.html.

 

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DALGALARRONDO, P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. Artmed, 2008.

DI LORETO, O. D. M. Em defesa do meu direito de ser triste. Psicologia em estudo, v. 2, n. 3, p. 1-52, 1997.

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