A mulher repartida

A mulher repartida

“Depois que um corpo / comporta outro corpo / nenhum coração suporta o pouco.” (Alice Ruiz - “Dois em um”)

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Um corpo que gera outro. Fica mesmo partido! - Ou repartido? - Primeiro, ao gerar outra vida. De um, passa a comportar dois! O combo dois-em-um. Como pode? Não é uma matemática exata…

Desafiaria a máxima da Física de que dois corpos não podem ocupar um mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo, o princípio da impenetrabilidade? - ou se tratará de uma unidade? -. Claro que aquele que se forma intra-útero empurra tudo ao seu redor, para, então, fazer-se caber. E assim poder se formar, constituir-se, crescer. É um movimento de dentro, de pedir e abrir espaço. Às vezes parecendo dilacerar as paredes internas. Ou dilatar. Porque é dentro que precisa se expandir, aos poucos, a seu tempo. O que permite estar contido dentro do corpo da mãe, isto é, abrigado, hospedado, amparado. Em um início de uma mutualidade - e isso não seria penetrabilidade? Pois que “Que o teu afeto me afetou é fato.” (Anitelli - Teatro Mágico).

Segundo, partido ao partir do bebê que, então, nasce! E, partindo, leva o que partiu a mãe. Mas esta, quando experimenta comportar, albergar, hospedar outra vida, nunca volta ao princípio, de antes de ter gerado outro corpo. Nem retorna às origens, de ter sido o bebê que habitou o útero da mãe que também a gerou. Ainda que tanto renasça desta experiência nela a partir do gestar…

Terceiro, ter ido embora - quem? de onde? e para que lugar? -. Pois se o bebê absolutamente depende da mãe, terá sido a mulher a partir?

Gerar ou nascer partilham, pois, a mesma raiz. De se ter partido - dividido, rompido/separado ou se teria a mulher ido embora? - em um movimento de dentro para fora. Ou de se ter multiplicado? E terá, então, a mulher partido para não mais voltar? 

Mas não se é dito da arte de quem parte fica com a melhor parte? Se, como substantivo, parto diz de um exaustivo trabalho e movimento internos, como verbo, é conjugado em primeira pessoa, sujeito em voz ativa. Seja partir - quebrar / separar / ir embora - ou parir. Pois a mulher está sempre em uma gestação múltipla, ainda que se nasça um único bebê. Posto que também pariu uma mãe, mesmo que recém-nascida. Já que, se se é verdade que “O menino é pai do homem.” (Wordsworth), a mulher é, pois, mãe da mãe.

E a mãe também é filha daquela mulher que a gerou, fruto de seus sonhos do passado e de desejos e expectativas de um futuro que, então, presentifica-se. Que precisa de colo, de um olhar generoso, de acolhimento e desenvolvimento, para o qual sempre se precisa de muita tolerância. Pois o crescimento ocorre no tempo e no ritmo de cada uma. E também se dá de dentro para fora, necessitando alargamento de um continente que delimite sem espremer. Ou prender. 

E se a mulher parte (ou se parte) também pode retornar (reconstruir-se, religar-se), não a mesma, mas modificada, outra. E, embora nunca se nasça crescida, nem pronta, há um potencial para o vir-a-ser. Não sem uma dupla gestação: da mãe na mulher e da mulher na mãe. Que coexistem, pois. Ainda que, inicialmente, a mulher possa fazer fundo à figura da mãe. Mas não precisa viver à sombra. 

* Foto: Free-Photos por Pixabay 

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