Ensaio sobre a sujeira

Ensaio sobre a sujeira

Quando alguma atitude já não choca ou mobiliza, é preciso acender o sinal de alerta.

A cidade está suja. De fato, nenhum cidadão que convive com lixo espalhado pelas vias e calçadas, restos de construções e reformas em vários cantos, galhos e outras sobras de jardinagem, deixadas na esquina, está satisfeito. Eu não estou. Ao mesmo tempo em que tento pensar qual seria a melhor maneira de colaborar para a solução desta questão, faço também uma autoanálise, que me leva a buscar na memória se, em algum momento, contribuí para que a situação chegasse aonde está. Afinal, copos de plástico, cascas de banana e restos de embalagens não têm pernas. Assim como eles, móveis usados que já não combinam com a decoração da casa não são capazes de sair correndo da sala, deprimidos por terem sido preteridos. 
Apesar de não me recordar de um caso específico, a resposta à minha reflexão é provavelmente positiva: devo ter, vez ou outra, descartado lixo em local inadequado. E se cada leitor deste espaço fizer a mesma pergunta a si mesmo, honestamente, saberá que estamos no mesmo grupo de pessoas — talvez se sinta menos culpado ao pensar que, se a prática é tão comum, não há porque preocupar-se tanto com o papel de bala largado discretamente ao vento, enquanto andava apressado. 

Era justamente neste ponto que eu queria chegar. Quando alguma atitude, mesmo aquela com que costumávamos nos importar, vira uma prática comum, já não choca ou mobiliza. É como se nos habituássemos à situação, fechando os olhos para ela. Quando essa cegueira passa a ser compartilhada, é preciso acender o sinal de alerta.

A mim, o pensamento leva diretamente às estantes de livros, onde está Saramago e seu Ensaio sobre a Cegueira. Na obra, que foi levada para as telas do cinema pelo diretor brasileiro Fernando Meirelles, a incapacidade de ver de um homem esperando que o sinal de trânsito se abra, inexplicavelmente se transforma em uma epidemia, causando pânico e, mais do que isso, caos. Com as palavras, o único Nobel de literatura da Língua Portuguesa ilustra a redução dos seres humanos a seus instintos animais, enquanto deixados na quarentena e, mais tarde, de volta à “cidade infectada”, com “lixo, detritos, todo o tipo de imundície”. Tudo é registrado pelo olhar do leitor e da “mulher do médico” — não se sabe o porquê, a única cuja capacidade de ver foi preservada. 

Mais uma vez sem explicação aparente, a visão começa a voltar. O primeiro a perdê-la começa a enxergar novamente, sugerindo que o mesmo deve acontecer com os outros integrantes daquele pequeno grupo de pessoas que acabou se unindo para sobreviver. O livro termina antes que se possa saber com precisão o efeito que a nova realidade terá sobre os personagens: de que maneira aquele novo cenário irá afetá-los? Além disso, terão consciência de que contribuíram para que a situação chegasse àquele ponto?

Imagino que, quando nos colocamos como agentes da realidade, o que de fato somos, conseguimos dimensionar verdadeiramente que apenas nossa própria consciência e atitude podem mudar o estado das coisas. Muito mais do que na ficção mais famosa de Saramago — que, inclusive, possibilita outras inúmeras reflexões sobre a condição humana —, é a cena do cotidiano urbano  que deixa claro qual a cidade queremos construir juntos, como cidadãos.

Isabel de Farias
Secretária de Infraestrutura e Coordenadora da Limpeza Urbana de Ribeirão Preto

 

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