Hora da faxina

Hora da faxina

Carlos Drummond de Andrade recomenda que joguemos fora tudo o que nos prende ao passado, ao mundinho de coisas tristes, e nos pede, principalmente, para esvaziar o coração.

Às vezes, no meio da correria do dia a dia, é importante encontrar um momento para dedicar à limpeza das gavetas, para voltar àquele monte de objetos acumulados em diversos períodos da vida. Tomei essa providência recentemente. Enchi-me de coragem e revisitei estantes, prateleiras, armários e outros cantos da casa, tentando identificar o que, entre tantas coisas, poderia ser descartado, abrindo novos espaços, a começar pelos físicos. E são muitos os itens que damos conta de juntar. No entanto, mais do que objetos, encontrei naquelas gavetas memórias — várias ainda frescas, aliás. As lembranças mais vívidas que fui resgatando, percebi, eram aquelas ligadas aos relacionamentos estabelecidos em anos de convivência. Numa autoanálise, constatei que nunca me furtei a criar laços e, entre eles, os de amizade saltaram das prateleiras. Em comum, cada um deles revela uma boa dose de entrega. 

Felizmente, vivi com intensidade cada nova oportunidade de estabelecer vínculos, aprendendo e procurando trocar com cada pessoa que, de alguma forma, passava a fazer parte do meu caminho. Acolhi e fui acolhida, compartilhei experiências válidas e arrisquei ser transparente. Assim, aprendi muito, especialmente sobre mim. Posso dizer que não saberia construir relacionamentos de outra maneira: a mim, interessa a profundidade, o risco e a troca. 

Aos desavisados, é importante ressaltar, no entanto, que não são raras as experiências acompanhadas de frustrações e de algum sofrimento. Por mais que acreditemos conhecer as pessoas, sempre haverá mais a ser desvendado. E essas descobertas não são sempre prazerosas — como naturalmente não poderiam ser. O inverso provavelmente é verdadeiro: não conseguiremos, por maiores que sejam os esforços, corresponder às expectativas de todos ao nosso redor, incluindo as pessoas com quem estabelecemos vínculos, de certa forma, profundos. Mais do que uma decepção, pode nascer aí um novo aprendizado, que possivelmente só irá adquirir esse valor depois que o tempo cumprir o seu papel e colocar tudo em seus devidos lugares.

Em minha opinião, uma premissa precisa ser respeitada para que as memórias de uma amizade sejam minimamente preservadas: independente do tempo que se tenha passado e da duração dos laços criados torna-se necessário reconhecer a hora de cortá-los. Devemos compreender o quanto antes que poucos seres, entre aqueles que já cruzaram nossos caminhos, permanecerão e sobreviverão às intempéries da vida. Os outros passarão um tempo conosco, darão o seu recado e seguirão adiante, por rumos, às vezes, opostos. Aqui, não há qualquer espécie de lamentação. 

Reconhecendo tantos rostos que já fizeram parte da minha rotina nas gavetas de casa, percebi, então, que o verdadeiro propósito de limpar os armários era, na verdade, uma vontade de faxinar a alma, como nos convida a fazer Carlos Drummond de Andrade. Nas palavras do escritor e poeta, é sempre tempo de recomeçar, de dar uma nova chance a si mesmo e de acreditar outra vez. Para isso, Drummond recomenda que joguemos fora tudo o que nos prende ao passado, ao mundinho de coisas tristes, e nos pede, principalmente, para esvaziar o coração, ficando prontos para a vida. 

Inspirada por ele, fiz exatamente isso: embalei, junto aos objetos que não me pertencem mais, as relações já digeridas pelo tempo, mas confesso que não resisti e guardei as lembranças.

Isabel de Farias
Secretária de Infraestrutura e Coordenadora da Limpeza Urbana de Ribeirão Preto

 

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