A lã não pesa ao carneiro

A lã não pesa ao carneiro

Dizem por aí que a história é cruel, que pouco nos lembramos do passado, que pouco nos absolvemos com ele. Dizem que nossa memória está cada vez mais curta, que o que construímos hoje será esquecido no futuro. Até concordo que estamos cada vez mais imediatistas, de olho no que está acontecendo, sem a preocupação de manter um legado. Vivemos ansiosos, ativos no presente, com a cabeça no futuro. Pensamos em como será amanhã, em como manteremos a vida enquanto estamos aqui. Mas, e o que vamos deixar? 

Pensei sobre isso ao assistir à posse da ministra Cármen Lúcia como presidente do Supremo Tribunal Federal. Como de praxe, em discursos e pareceres enérgicos, Cármen citou grandes autores e, cirurgicamente, retratou o Brasil. “Vivemos momentos tormentosos. Há que se fazer a travessia para tempos pacificados. Travessia em águas em revolto e cidadãos em revolta”, disse.

Ela é a segunda mulher a ocupar a presidência do STF. Mineira, de 62 anos, quebrou protocolos na cerimônia de posse e, de forma emblemática, pareceu contextualizada ao Brasil onde vivemos e ao tempo em que estamos, de muita tormenta. Pareceu firme ao presente. E devia estar.

A norma, disse ela, determinava que os cumprimentos do discurso se iniciassem pela mais elevada autoridade presente. Dessa forma, considerou justo que fosse assim: dirigir-se ao cidadão brasileiro. Cumprimentou o povo antes de qualquer outra autoridade, sugerindo a soberania da população. Depois, fez uma celebração diferente das anteriores. Nada de festa. Apenas água e café para os convidados. Um retrato daquilo que o País precisa: discursos que estejam alinhados com os atos e com a realidade.

Fato é que o Brasil vive o momento tormentoso que a ministra citou. Sobre Ribeirão Preto, então, pairam ares pesados, em meio a tantas denúncias e à operação realizada pelo Ministério Público e pela Polícia Federal, com suspeita de envolvimento da prefeita Dárcy Vera. Sobre o Brasil, o impeachment recente de Dilma Rousseff, que registrou seu último ato em longa defesa de mais de 10 horas na Câmara dos Deputados, na sessão que culminou em sua cassação.

Não podemos negar a importância desses fatos para a história. Em tempos de empoderamento feminino nas alturas, as mulheres ganharam destaque – para o bem ou para o mal. Fizeram as próprias histórias, alçaram postos raros. A primeira prefeita de Ribeirão Preto e a primeira presidente do Brasil em momentos tortuosos da vida. A segunda presidente da história do STF surge com um discurso coerente, que se mostra contextualizado.

Em uma entrevista há três meses, a jornalista Miriam Leitão questionou Cármen Lúcia sobre a possibilidade de a ministra ocupar a presidência da república, já que chegaria ao posto mais alto do STF em um momento conturbado da história do Brasil. Na resposta, Cármen lembrou um ditado popular. “A lã não pesa ao carneiro”. O que é de nossa responsabilidade, o que carregamos no caráter e na vida, não pode pesar. Faz parte da gente. É da lã que vem o legado. Resta-nos saber reconhecer nossas lãs — e conviver com elas.  

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