Na superfície

Na superfície

Quando o cineasta Glauber Rocha, lá nos idos de 1960, imortalizou a frase “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” para justificar a produção de seus filmes, talvez não imaginasse o quanto a expressão faria sentido décadas depois.

A câmera na mão de Glauber Rocha se transformou em incontáveis aparelhos eletrônicos, que crescem desenfreadamente nos quatro cantos do planeta. Deixou de ser a exclusividade de alguns poucos profissionais que se aventuravam na produção cinematográfica ou mesmo na fotografia e passou a fazer parte do cotidiano de mais de 5 bilhões de pessoas do mundo. Segundo pesquisa divulgada em 2017 pelo Hootsuite e pelo We Are Social, é esse o total de pessoas que possuem um dispositivo móvel.

Produzir e reproduzir conteúdo, por si só, não é problema. Pelo contrário: compartilhar informação e trocar ideias deveria ser, inclusive, uma oportunidade a se agarrar com unhas e dentes, afinal poderia contribuir com a educação da sociedade e o desenvolvimento de um raciocínio crítico, avaliando opiniões diferentes. Mas todos nós sabemos que não é bem assim que funciona.

É triste ter de concordar com Umberto Eco e sua constatação de que “as redes sociais deram voz aos imbecis”. Infelizmente, na mesma proporção do desenvolvimento das tecnologias, também cresceu a produção de conteúdo sem qualidade, restringindo a capacidade de avaliação de quem navega pela internet. Aumentou, também, a nossa restrição ao que nos é diferente: o famoso “textão” que defende um ponto de vista raramente é lido até o fim — a menos que o leitor compartilhe da mesma opinião que o autor. Passamos a ignorar e desprezar as ideias que diferem da nossa. Se não compartilho do mesmo raciocínio, se não voto no mesmo partido, se não faço o mesmo julgamento, para que ler o que o outro pensa?

Arrisco dizer que poucos, hoje, diante de tantos usuários de redes sociais, fazem uma leitura profunda e crítica de ideias distintas. Em geral, lê-se a manchete e, apenas se der vontade, as primeiras linhas. Nascem desse hábito, inclusive, as tais Fake News, que se propagam sem argumentos ou textos embasados. Elas se multiplicam, desenfreadamente, a partir da visualização superficial. 

Assim tem se construído a tal contemporaneidade, em que valem mais confrontos odiosos, com xingamentos e ofensas. Perderam espaços as discussões argumentativas, as defesas dos pontos de vista e a troca de ideias. Vivemos na superfície de um oceano informativo que apenas meia dúzia de mergulhadores se aventura a desbravar.

O problema não é o acesso à produção de conteúdo ou à tecnologia que permite a conexão, nem a publicação de pensamentos diferentes. O problema é a intolerância ao que não nos é familiar. Talvez por isso usemos as expressões “surfar” e “navegar” quando queremos dizer que estamos conectados à internet. Se nós mergulhássemos, poderíamos ver o que realmente está submerso e não só o que nossos olhos alcançam superficialmente. 

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