Nossos vestidos

Nossos vestidos

Incrível como a poesia e textos escritos há muitos anos carregam uma similaridade com os nossos atuais sentimentos. A obra da vez que me fez pensar nesse comportamento humano é Caso do Vestido, de Carlos Drummond de Andrade. Entre uma reunião e outra durante esses dias, ouvindo o rádio no carro, prestei a atenção na leitura e na análise desse poema.

A narrativa de Drummond começa quando as filhas veem um vestido pendurado em um prego na parede e questionam a mãe sobre o que seria. A mãe, com medo de o pai chegar, começa, ainda que relutante, a explicar a história. 

O pai das garotas havia se apaixonado por outra mulher e, em estado catatônico, afastou-se da vida familiar, brigou e se desentendeu com a mãe das meninas. Foi atrás da nova eleita, mas ela não se importou. O pai chegou a implorar e, em puro desespero, pediu para que sua mulher intercedesse por ele junto à amante. Ela fez isso, ainda que estivesse corroída por dentro. Desejou a morte, sentiu-se mal, sofreu. “O mundo é grande e pequeno”, diz o texto de Drummond. Dias depois, aparece a amante com um vestido em punho: “aqui trago minha roupa que recorda meu malfeito de ofender dona casada pisando no seu orgulho. Recebei esse vestido e me dai vosso perdão”.

A amante se foi, a mãe pregou o vestido na parede e o pai retornou à casa. Ele mal reparou na roupa pendurada e apenas disse: “Mulher, põe mais um prato na mesa”. Ela pôs. Ele se sentou. A presença e os hábitos do homem a acalentavam, ela estava em paz. E, quando chegou nessa parte da história, interrompeu a narrativa às filhas, porque o pai já começava a subir as escadas. 

Há uma força vital nessa mãe que a impede de sucumbir ao desespero, à tristeza e à traição. Mesmo que ela tenha passado um período de profunda angústia e agonia ou mesmo que a postura do homem tenha sido condenável, um combustível a move. A paixão a fez transformar a humilhação em perdão.

Aceitar o homem novamente depois daquela traição poderia ser uma atitude duramente criticada – especialmente nos atuais dias em que as mulheres têm repreendido, cada vez mais intensamente, o machismo. Mas quantos de nós já não nos submetemos a contrariedades por conta do amor?

E o vestido da “dona”? Aquela roupa pregada na parede em lugar visível ao pai das meninas permanece como registro eterno da infidelidade.

A beleza do poema de Drummond está no sentimento humano que o cerca. Compartilhar o sofrimento daquela mulher que resiste à infidelidade e encontra um jeito de deixar a cicatriz exposta diz muito sobre as relações afetivas em qualquer época que seja.

Pergunto se nós temos, hoje, como a mulher do texto, exposto esses vestidos para estampar nossas agonias. Escancarar a tristeza para o outro e provocar o sentimento de culpa perpétua em razão de algum malfeito pode ser, para alguns, uma saída possível. A mim parece inadequada. Cada vez que tentamos mostrar ao outro como ele nos feriu, mais continuamos a nos ferir. Mas, ainda que não seja às vistas públicas, certamente cada um guarda um vestido dentro de si. E carrega, talvez pregada na alma, alguma tristeza que já cruzou o caminho. 

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