Sobre a amizade e a confiança

Sobre a amizade e a confiança

É verdade também que a amizade é como uma flor, que nasce no lugar mais inóspito, sem necessitar de muito, apenas de um certo mistério da vida. 

 

Durante muito tempo, acreditei que amizades verdadeiras eram aquelas que construíamos na nossa primeira infância: os amigos que fazemos nos primeiros bancos escolares, os primeiros vizinhos e todos aqueles que nos acompanhavam no começo da vida. Acontece que a vida, com a mesma velocidade que aproxima, também vai separando. Vamos, então, começando outras amizades, nos novos lugares onde nos estabelecemos e, assim, a nossa história vai sendo construída.

Comigo foi assim. Há 32 anos vivo em Ribeirão Preto, ou seja, mais da metade da minha trajetória está aqui, onde construí muitas amizades e tantos conhecidos. Esta reflexão me veio esta semana porque avaliei o quanto está difícil, nos dias atuais, estabelecer vínculos confiáveis, assim como não é fácil ser leal. E, para mim, a confiança e a lealdade são a base primeira da amizade.

Um dos textos mais bonitos que já li sobre a amizade está na obra “Ensaios”, de Michel de Montaigne, filósofo francês do século XVI. Em seu portentoso livro, Montaigne escreveu sobre si mesmo e sobre seu grande amigo, Étienne de La Boétie, abordando de tudo, como se fosse realmente uma conversa com um bom amigo. Para o filósofo, o pensamento precisa deixar de buscar certezas fixas para encontrar um olhar mais visceral no interior do próprio indivíduo. Quatro séculos antes da invenção da psicanálise, este pensador já concluía que, para compreender a humanidade, precisamos, antes de tudo, desnudar a nós mesmos. “Todo homem traz em si a forma total da condição humana”. Isso significa que a contradição de ser humano está em todos nós desde que nascemos. Aliás, somos esta própria contradição.

E quando nos percebemos pelos olhos dos outros, desconfiados e sempre buscando outras intenções, como resolver? Talvez a solução seja buscar nossa única verdade interna e deixar para o outro a responsabilidade da crença e do julgamento dos nossos melhores sentimentos. Assim ocorrem as relações — e o benefício da dúvida quase nunca é dado.

Às vezes, ficamos distantes dos melhores amigos por disputas sem nenhum sentido, e quantos amigos perdi assim na vida! Quanta saudade e culpa acompanham as lembranças das boas conversas e das trocas. Os afetos da minha parte eram, com toda certeza, verdadeiros, mas se esvaíram em alguma discussão que não era o fundamento da relação. Nas perdas, criamos novas relações.  Tenho um grande amigo que se manteve amigo de todas as suas ex-mulheres — e foram muitas! Sempre tive por ele a maior admiração por ter conseguido algo tão raro nos dias de hoje: manter a amizade com aqueles que nos conhecem mais profundamente, graças à intimidade que tiveram conosco. Isso já demonstra, por si, uma enorme capacidade de amar.

Na minha cabeça, amizade ainda é mais do que uma simples afinidade, envolve mais do que afeição. Este substantivo abstrato se materializa naquilo que, na Igreja Católica, chama de mistério da fé. A amizade precisa de franqueza, de sinceridade, de lealdade incondicional — aquele auxílio que beira o sacrifício. Estes estímulos poderosos amadurecem uma amizade, que requer esforço e trabalho para ser mantida. Quando nos deparamos com pessoas que sentimos uma possível amizade, temos uma pressa avassaladora, uma urgência em estabelecer vínculos. No entanto, esquecemos que vínculos precisam de tempo, de cuidado, de conversas, de trocas e de tudo mais que, hoje, anda tão escasso em nossas vidas.

Ter um amigo é uma benção! Hoje, conhecendo mais pessoas, deparo-me sempre com a fala de uma outra amiga que, surpresa com o meu argumento de que os melhores amigos ficaram no passado, disse: “então como você justifica a nossa amizade, construída bem depois do fim da infância e da adolescência, já na vida adulta?” É verdade também que a amizade é assim como uma flor que nasce no lugar mais inóspito, sem necessitar de muito, apenas de certo mistério da vida. Daí para frente, é preciso tempo para cultivar esta flor.

Isabel de Farias
Secretária de Infraestrutura e Coordenadora da Limpeza Urbana de Ribeirão Preto


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