Universos distintos

Universos distintos

Ficamos cegos diante de evidências implícitas, mas suficientemente claras, sobre o nosso mundo interno e externo, especialmente quando estamos falando de sentimentos.

Nossas referências estão por aí, espalhadas em tudo aquilo que nos toca profundamente. A mim, duas vertentes fazem completo sentido: a fé e as artes. Respeito todas as crenças e credos, mas tenho muito bem definida a minha verdade. Sou cristã e tenho na figura de Jesus Cristo uma enorme fonte de inspiração. Da mesma forma, as artes me interessam em todas as suas modalidades, da literatura ao cinema, da música à pintura. Fico ainda mais impressionada quando me deparo com a interlocução entre universos aparentemente distintos, mas completamente afins.Um bom exemplo do que quero dizer está expresso nas telas de Caravaggio, que pintou muitos temas religiosos. Entre suas obras, duas retratam aquela que, para mim, é uma das passagens mais bonitas da Bíblia: o momento em que Jesus, no primeiro dia da segunda semana da Ressureição, encontra dois apóstolos na estrada de Emaús. Vendo a tristeza dos dois, ele pergunta o que aconteceu e ouve o relato sobre os passos do filho de Deus na Terra. Percebendo que eles não o reconhecem, Jesus explica que todo aquele caminho já estava traçado e que a história que relatavam com tristeza e indignação tinha que acontecer porque estava prevista nas escrituras. 

O reconhecimento só acontece quando Jesus, convidado a ficar com os apóstolos, repete a mesma cena da Santa Ceia, repartindo o pão. Quando Cristo desaparece, eles então percebem que tinham sentido a presença de Deus enquanto Ele falava.

Já no século XVII, o pintor italiano produz os dois quadros de mesmo nome, Ceia em Emaús — o primeiro de 1602 e o outro, de 1606. Nas duas, representa o momento em que estalajadeiro e apóstolos percebem que o Mestre está vivo. O espanto está na expressão perplexa de cada personagem retratado pelo mestre barroco.

O Jesus de Caravaggio é um jovem de rosto carnudo e mordaz, sem barba e sem dramaticidade; é sereno e distante, transcendendo não só os tormentos que o conduziram à Crucificação e a marcaram, mas também as limitações da vida mortal. Entre tons saturados e sombrios, com sombras envolventes, seu rosto é tomado por uma luz límpida, que vem da esquerda — foco luminoso habitual do artista. Atualmente, as telas podem ser vistas em Londres, na National Gallery.

Esta passagem bíblica representada por Caravaggio me leva a refletir sobre como, às vezes, ficamos cegos diante de evidências implícitas, mas suficientemente claras, sobre o nosso mundo interno e externo, especialmente quando estamos falando de sentimentos. Todos nós podemos, a qualquer momento, ver nossos sentidos falharem na tentativa de reconhecer no nosso entorno o que é do bem e aquilo que vem carregado de sentimentos ruins. Aliado a esta falha dos sentidos, genuinamente humana, ainda vivemos o agravante dos tempos modernos, sempre nos apressando e exigindo respostas urgentes e precisas.

Em meio a essa avalanche de exigências e ao tiquetaquear impiedoso do relógio, talvez o mais difícil seja ter sensibilidade para discernir o que, de fato, vale reter e privilegiar nessas mensagens que chegam a todo o momento. Para isso, não bastam os olhos e ouvidos, faróis facilmente confundidos pelo deslumbramento inerente ao humano. É mais confiável recorrer ao coração, com sua característica capacidade de captar os cinco sentidos, da qual nunca devemos prescindir.

Isabel de Farias
Secretária de Infraestrutura e Coordenadora da Limpeza Urbana de Ribeirão Preto

 

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