O Poeta do Povo

O Poeta do Povo

Os mais próximos a mim sabem, pois vivo contando esta história: cresci em contato direto com figuras musicais folclóricas muito importantes pra mim e que foram cruciais para alimentar esse gosto que tenho por movimentos culturais regionais. Lembro que, quando criança, vivia em meio a instrumentos de “Folia de Reis”. Meu avô, Gonçalo (vulgarmente conhecido como “Vêco”), vez ou outra deixava, pra loucura da minha avó, os instrumentos, da companhia de reis em que ele tocava, na sala.

Eu era muito criança e me deliciava! Estourando as cordas das violas, desregulando os pandeiros e batucando na zabumba. Não era de propósito. Desculpa, vô! [rs]

Meu avô é uma dessas figuras folclóricas que se encontram em cidades pequenas, que todos na cidade conhecem. Ele tem uma parcela de culpa no meu gosto por música. Parcela que tentei abandonar, por algum tempo, por vergonha de assumir essa minha “raiz” de sertanejo [esclareço: quando falo em “sertanejo”, não estou citando, nem de longe, esse tipo estranho de música que toca nas rádios hoje em dia].

Hoje assumo e bato no meu peito: Gosto desse tipo de música regional!

Agora que você, caro leitor, conhece um pouco da minha “infância musical” [rs], não vai se perder nas minhas intenções com este post.

O movimento cultural regional que mais me atrai é o nordestino. Não sei se pela minha descendência baiana [aposto que isso, ninguém sabia!], mas acho aquela porcentagem do Brasil muito bela. Em meio à loucura da seca e da fome, há uma lucidez poética imensa presente na cultura daquele lugar. Não estou falando do axé, ou do Olodum, ainda não.

Refiro-me ao baião, bem representado por Luiz Gonzaga, Dominguinhos, Jackson do Pandeiro e companhia limitada.

Dentre todos os grandes do movimento, há uma figura carismática que me chama mais atenção. Não sei se por me fazer lembrar o jeito turrão e divertido que o meu avô tem, ou pela própria figura enigmática que esse músico e compositor foi: refiro-me a João do Vale.

Muita gente desconhece
João Batista do Vale nasceu em Pedreiras, São Luís do Maranhão, em 11 de outubro de 1934. Segundo relatos de seus familiares, João do Vale sempre gostou de escrever e de ouvir música, e desde jovem já se dizia compositor.

Preto, pobre e vendedor de bolo, foi discriminado e impedido de estudar [temática muito abordada por ele em suas músicas].

[...] “Lá no sertão, quase ninguém tem estudo
Um ou outro que lá aprendeu ler
Mas tem homem capaz de fazer tudo, doutor
E antecipa o que vai acontecer” [...]
[...] “Se o galo cantar fora de hora
É mulher dando fora pode crer
A cauã se cantar perto de casa
É agouro, é alguém que vai morrer”
“São segredos que o sertanejo sabe
E não teve o prazer de aprender ler” [...]
Oricuri (O Segredo do Sertanejo)
João do Vale

Inquieto, aos 13 anos, mudou-se, sozinho, para São Luiz. Lá participou como “amo” (pessoa que faz versos), do “Linda Noite”, um grupo de Bumba-meu-boi.

João do ValeMas, de alma aventureira, João continuou viajando, rumo ao sul. Sempre em boleias de caminhões, João do Vale trabalhou como ajudante de caminhão em Fortaleza; trabalhou no garimpo em Teófilo Otoni, Minas Gerais e, em 1950, chegou ao Rio de Janeiro, trabalhando como ajudante de pedreiro numa obra no bairro de Copacabana.

Nessa época passou a visitar programas de rádios da cidade para conhecer alguns músicos e apresentar suas composições.

Em 1950, a primeira música de sua autoria foi gravada por Zé Gonzaga (irmão de “Gonzagão”) e Cesário Pinto e, em 1953, a cantora Marlene lançou em disco a música “Estrela miúda”.

Ouça:


Cinema
Em 1954 João do Vale participou como figurante do filme Mãos Sangrentas, dirigido por Carlos Hugo Christensen e conheceu Roberto Farias – na época assistente de direção -, que, ao se transformar em diretor, convidou o compositor para musicar alguns de seus filmes, como No Mundo da Luz, de 1958.

Além disso, em 1969 ele compôs a trilha sonora de Meu Nome é Lampião, de Mozael Silveira.

Na música

"Opinião": João do Vale, Zé Kéti e Nara LeãoEm 1964 João do Vale estreia como cantor e idealiza o espetáculo musical “Opinião”, que foi realizado no teatro do Shopping Center Copacabana, sede do Teatro de Arena no Rio de Janeiro, meses depois do golpe militar. O espetáculo foi dirigido por Augusto Boal e produzido por integrantes do Centro Popular de Cultura da UNE.

O elenco era formado por Nara Leão (substituída posteriormente por Maria Bethânia), João do Vale e Zé Kéti. Os atores-cantores intercalavam canções a narrações referentes à problemática social do país. O texto era assinado por Armando Costa, Oduvaldo Vianna Filho e Paulo Pontes.

“Opinião” tornou-se uma referência na chamada "música de protesto" e é considerado um dos mais importantes da história da música popular brasileira. O registro do show deu origem ao álbum homônimo, lançado em 1965.

Zé Keti, João do Vale e Maria Bethânia no Show Opinião - "O Desafio" - Saraceni (1965)


No mesmo ano, em 1965, João do Vale lança o disco “O Poeta do Povo”.

Conhecido pela simplicidade, João do Vale também ficou famoso por unir músicos da “esquerda” e da “direita” e de democratizar a música, ao levar cantores como Chico Buarque e a argentina Mercedes Sosa, para se apresentarem a operários que frequentavam shows no Forró Forrado - ponto de encontro de nordestinos.

João do Vale tem dezenas de músicas gravadas por vários cantores da MPB, como Tim Maia, Maria Bethânia, Otto, Elba Ramalho e Chico Buarque.

Hiato
João do Vale e Chico BuarqueCom a ditadura assombrando artistas pelo Brasil, no final de 1960, João do Vale volta para Pedreiras e, somente em 1978, retorna ao Rio de Janeiro.

Em 1982 gravou seu segundo disco, ao lado de Chico Buarque, que, no ano anterior, havia produzido o LP “João do Vale Convida”, com participações de Nara Leão, Tom Jobim, Gonzaguinha e Zé Ramalho, entre outros.

Em 1994, Chico Buarque voltou a reverenciar o amigo, reunindo artistas para gravar o disco João Batista do Vale, prêmio Sharp de melhor disco regional.

Na sua terra natal João do Vale é homenageado com uma estátua, onde o braço e o carcará que ele segura são feitos de bronze.

Para quem quiser conhecer um pouco mais sobre a vida de João do Vale assista o Documentário “Muita Gente Desconhece”, de 2005, dirigido por Werinton Kermes.

Encerro esse post com parte de uma célebre canção de João do Vale e que resume bem o ponto de vista que o poeta maranhense tinha sobre o mundo.

“Eu sou um pobre caboclo,
Ganho a vida na enxada.
O que eu colho é dividido
Com quem não planta nada.
Se assim continuar
vou deixar o meu sertão,
mesmo os olhos cheios d'água
e com dor no coração.
Vou pro Rio carregar massa
pros pedreiros em construção.
Deus até está ajudando:
está chovendo no sertão!
Mas plantar pra dividir
Não faço mais isso, não”
Sina Do Caboclo
(Zélia Barbosa / João Do Vale / J.B. De Aquino)

P.S: Não deixem de ouvir "Carcará"

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