A ARTE NOS DIVERSOS ESPAÇOS SOCIAIS NA ATUALIDADE: contribuições de Maria de Fátima Mattos

A ARTE NOS DIVERSOS ESPAÇOS SOCIAIS NA ATUALIDADE: contribuições de Maria de Fátima Mattos

Caroline da Cunha Moreno

Filomena Elaine Paiva Assolini

Andrea Coelho Lastória

Sobre a nossa entrevistada

Maria de Fátima da Silva Costa Garcia de Mattos é licenciada em Educação Artística, Música, Desenho e Pedagogia (Supervisão e Administração Escolar), Mestre em História pela Unesp de Franca e Doutora em Artes pela ECA/USP, na linha de pesquisa de História da Arte. Atualmente segue carreira docente em cursos de graduação e pós-graduação, atuando como Docente Pesquisadora no Programa de Mestrado do Centro Universitário Moura Lacerda, de Ribeirão Preto, desde o ano 2006. Seu trabalho possui ênfase em Ensino de Artes, Estudos Culturais, Cultura Material Escolar, Práticas e Representações dos Espaços na Arquitetura Escolar. Possui ampla formação no campo artístico e tem se dedicado, desde sua formação inicial à carreira, ao ensino de Arte, que alcança 40 anos de experiência. Além disso, é membro de associações tais como a Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (Anpap), da Associação Nacional de História (Anpuh) e da Diretoria da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Moda (Abepem). Maria de Fátima Mattos, ao lado de outros pesquisadores, tem se dedicado ao estudo da história cultural da cidade e da região. Como pesquisadora do Instituto Paulista de Cidades Criativas e Identidade Culturais (IPCCIC) tem realizado um sério e atento trabalho de resgate da identidade cultural por meio da valorização dos artistas regionais. É também avaliadora de cursos do Inep/MEC (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas).

Na entrevista aqui apresentada, Maria de Fátima problematiza alguns assuntos referentes ao campo da Arte. Sua visão crítica sobre as relações atuais dos sujeitos com a Arte nos diferentes espaços sociais, bem como no contexto escolar, provoca diversas reflexões. Sua ampla experiência com o ensino de Arte, tanto na educação básica como no ensino superior, permite a apresentação de avaliações pertinentes a respeito da formação de professores e das condições de sua atuação no interior das escolas.

Suas reflexões, no entanto, não se limitam ao contexto escolar, apresentando sua visão quanto às relações dos sujeitos com a arte no mundo contemporâneo, essencialmente marcado pelo esgotamento da capacidade  do homem de se atentar às sutilezas que só a sensibilidade permite apreender. E aqui encontramos o papel indispensável da Arte na vida, se o que se busca é o caminho por relações mais humanas.

Suas respostas detalhadas e profundas permitem que visualizemos uma trajetória de dedicação à compreensão de um especial campo do saber. Esperamos que a partir da apresentação das reflexões de Maria de Fátima, sobre sua própria carreira, e das problematizações por ela apresentadas contribuam para que os leitores repensem conceitos, reconheçam novas possibilidades e avancem nas suas impressões a respeito da Arte.

 

Entrevista com a Profª Drª Maria de Fátima Mattos

 

MORENO, ASSOLINI & LASTÓRIA: professora, nós poderíamos começar falando um pouco sobre a sua trajetória no campo da arte?

MATTOS: podemos. Eu sou licenciada em Educação Artística, Música e Desenho, e depois fiz a complementação em Pedagogia. Eu venho de uma formação artística em instrumento – piano, que iniciei com a minha mãe aos 5 anos, em Jaboticabal, e vim para prestar exame para o 7° ano no Conservatório de Música da AERP, em Ribeirão Preto, como aluna da Profª Diva Tarlá de Carvalho e de Canto e Coral da Profª Júlia Corsini Monteiro de Barros, inesquecível dona Juju. Findo o curso colegial, prestei vestibular, e passei, ainda com 17 anos incompletos, no Curso de Educação Artística, na Unaerp. Muito bem, a minha escolha  foi totalmente influenciada pela minha mãe. Eu gostava muito de Literatura, mas gostaria de cursar Psicologia como a minha irmã mais velha, mas meu pai não deixou. Minha mãe era musicista, foi uma grande pianista e professora de piano na cidade, em uma época onde suas alunas faziam uma exibição pública na rádio local, retransmitidas pela “recordinha” da praça principal, durante o footing dos casais nos finais de semana, desenvolvendo, assim, um outro tipo de sociabilidade. Bem, o gosto pela arte eu desenvolvi na minha casa, porque, além da música, minha mãe bordava e fazia tricô, e minha avó crochetava como ninguém, além de declamar nas horas vagas. Portanto, o meu  encaminhamento para a Educação Artística foi uma coisa natural. Essa formação inicial me permitiu a inscrição na DE de Ensino de Ribeirão Preto, onde, em agosto de 1975, peguei uma licença de 120 dias em Pontal, para lecionar Educação Artística e Educação Musical, iniciando o magistério público, onde lecionei por 19 anos. Em 1976, fiz dois cursos de Especialização com o professor Bassano Vaccarini, oferecidos pela universidade. O primeiro de Cenografia e Indumentária, e o segundo, Laboratório Vivencial do Artista no Teatro. O curso foi ótimo, a minha admiração pelo Prof. Vacarini cresceu ainda mais, até que ele me propôs este segundo curso: só te dou dez de interpretação se você se aprofundar no texto e conseguir ir às lágrimas espontaneamente. Bem, imagine só o meu compromisso e o meu medo. Mas eu gostava demais de um desafio. Interpretamos na avaliação final a peça A Dama das Camélias, e eu representei a Margarida, imagine só, ensaiava em casa várias horas no dia e à noite, após o jantar, meu pai e minha mãe sentados na sala, me ouviam no sentido de avaliar o progresso do texto, dizendo “olha, você não está interpretando direito”, ou “olha, você não está entendendo direito o sentimento da personagem, não está se expressando de acordo, começa de novo....”, e assim continuava. Bom, foi ótimo, a minha turma era grande, todo mundo aplaudiu e o Vaccarini falou: “Bravo... era isso que eu queria!”. E com isso nós encenamos mais vezes a peça A Dama das Camélias, porque realmente era um produto novo em Ribeirão Preto, e de um curso novo. Com isso eu acabei fechando a área, como se dizia na época, cursei as quatro linguagens da Arte, e com isso não parei nunca mais. Este ano, em agosto, eu completo 40 anos de sala de aula.

 

MORENO, ASSOLINI & LASTÓRIA: você falou muito sobre a influência dos seus pais, sobre a exigência da sua mãe. A próxima pergunta é “o que você diria que a ‘chamou’ para atuar no campo da arte?”. Você acha que fica mais restrito à influência dos seus pais ou teve alguma outra coisa que te chamou particularmente? Você falou também sobre a sensibilidade...

MATTOS: eu tenho comigo que esse desenvolvimento do gosto pela arte foi devido à minha educação familiar. A formação do meu capital cultural foi adquirida no seio familiar. Muito embora eu venha de uma família de classe média, mas o ensino e a cultura sempre estiveram em primeiro lugar na minha casa. Meu pai era um português muito culto, que veio para o Brasil por volta de 1930. Já era formado em Química e precisou deixar os estudos na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, para ajudar o seu pai na colheita do café nas terras adquiridas aqui no Estado de São Paulo. Na verdade, um rapaz de formação europeia, que cresceu convivendo com a própria história da Nação, os monumentos e conquistas do início do século XX. Meu pai, em casa, contava muita estória para nós, à noite acabava a energia com bastante frequência e ele contava as suas histórias por mais de horas. A gente ouvia, e eu acabava gostando. Posteriormente, no ensino superior, eu tive a felicidade de ser aluna de História da Arte do Prof. Pedro Manuel Caminada-Gismondi e, de repente, eu fui me redescobrir no gosto pela história e compreendendo a arte dentro desse contexto, eu fui me apaixonando. Em 1977, ingressei como docente no ensino superior, a convite da Profª Iracê Míriam de Castro  Martins, em Jaboticabal, para lecionar História da Arte, Harmonia das Artes e Folclore, na recente licenciatura em Educação Artística. Ali eu comecei a desenvolver o prazer de preparar minhas aulas, e pude contribuir com a formação de centenas de alunos e professoras daquela região, tanto na graduação como na pós-graduação. Em 1981, Dr. Oscar Luiz de Moura Lacerda abriu-me as portas para a minha verdadeira paixão. Com a criação do curso de Arquitetura e Urbanismo, naquele mesmo ano, na Instituição Universitária Moura Lacerda, comecei a lecionar Estética e História da Arte, como auxiliar do Prof. Pedro Gismondi, onde dividimos as aulas, quinzenalmente, por dois anos até que ele se afastou para uma temporada na Itália. Ali teve início a Profª Maria de Fátima como sempre me chamaram esses alunos e professores do curso, em Ribeirão Preto. Como a legislação começou a exigir a pós-graduação strictu senso para o docente na graduação, eu que já havia iniciado o mestrado na Unesp de Franca dez anos atrás e precisei interromper, retornei, em 1996, para finalmente concluir o mestrado em História, e depois, em 2000, iniciei o doutorado em Artes, na ECA/USP, em São Paulo. Nos dois, pesquisei um estilo português, o Manuelino, presente na arquitetura do Mosteiro dos Jerónimos como assim é conhecido e, posteriormente, no doutorado o seu desdobramento no século XIX, como Neomanuelino e o seu rebatimento no Brasil, nos Gabinetes Portugueses de Leitura aqui construídos. O que me tornei como docente, na verdade, teve início na graduação, marcadamente, pelo ensino da Estética e da História da Arte e consolidou-se como professora apaixonada pelo curso de Arquitetura e Urbanismo, do Moura Lacerda.

 

MORENO, ASSOLINI & LASTÓRIA: você pode nos contar um pouco sobre o trabalho que você vem desenvolvendo em relação aos artistas regionais?

MATTOS: esse trabalho de resgate, seleção e análise de algumas obras de arte de artistas locais regionais foi muito importante. Primeiramente, porque foram os pioneiros do ensino das Artes Plásticas em Ribeirão Preto, posteriormente, a Faculdade de Artes Plásticas da UNAERP com esse mesmo quadro docente. Esse trabalho nasceu de um projeto do Instituto de Pesquisa do qual eu faço parte, que é o IPCCIC (Instituto Paulista de Cidades Criativas e Identidade Cultural) em Ribeirão Preto, existente há dois anos e que tem como presidente e vice-presidente as  professoras doutoras Adriana Silva e Lílian Rodrigues Rosa, pesquisadoras exemplares! O projeto nasceu de uma parceria com a FAAP/Ribeirão Preto, para a inauguração do Vitral dessa unidade, com obras de artistas locais. Nesse sentido, elas me convidaram para uma consultoria artística, que eu me interessei de imediato. Eu deveria prestar uma assessoria nas escolha das obras de cada pintor. Fechamos em cinco artistas, ficando incumbida da seleção e análise de uma obra de cada um dos cinco, e na continuidade o trabalho passaria para a vitralista e conosco ficaria a finalização do livro. No entanto, juntamos três pessoas que gostam do que fazem e não sabem economizar nesse fazer. Das fotos que a Adriana havia feito dos originais desses cinco artistas, acabamos escolhendo cinco de cada um deles, além das selecionadas para o vitral, e finalizei a análise das trinta obras. O resultado foi essa edição primorosa do livro, Artistas do Mundo. E o interessante disso é que eu fui aluna de todos eles, exceto da Odila Mestriner.  Mas foi um convite e um projeto que me deu vida, que me resgatou no tempo. Sou eterna devedora ao IPCCIC. Na sequência, surgiu um novo projeto, a Coleção Biografias, a primeira delas foi sobre Bassano Vacarini, que contou com uma exposição no dia  08/08, Centenário do Artista, da qual eu fui curadora. A Coleção Biografias 2  foi sobre a Fúlvia Gonçalves, que hoje reside em Campinas, professora aposentada da Unicamp e artista ainda atuante no cenário das artes plásticas. Fui revê-la em Campinas, para poder entrevistá-la, depois de trinta anos. Fomos eu e Adriana, com seu espírito jornalístico capaz de penetrar e entender a mais íntima natureza da artista. Para surpresa nossa, Fúlvia, gentilmente, nos ofereceu uma coleção de inéditos ainda não expostos, para eu analisá-los com um olhar formal sem perder a afetividade que nos uniu. Foi um presente!! E para satisfação nossa, todos os livros esgotados.

 

MORENO, ASSOLINI & LASTÓRIA: e você acha que essas são iniciativas importantes para a valorização e divulgação dos artistas regionais?

MATTOS: eu acho! A arte faz parte da vida e do ser humano, está presente em tudo, desde que possamos percebê-la. Penso que devemos desenvolver a sensibilidade desde a mais tenra idade, inclusive, para fortalecer os laços afetivos, por meio dos contos infantis, dos desenhos e imagens que possamos mostrar e deixar a criança desenvolver a história sozinha, das músicas e cantigas infantis, dentre outras. Portanto, ao registrar o trabalho de alguém, um artista plástico, escultor, compositor, ou uma professora que marcou época, tudo isso se resume em um registro da obra de uma pessoa comprometida com o seu modo de pensar e de fazer, e que, nesse sentido, mereceu ser divulgado. É sempre uma maneira diferente de ver o mundo, e, nessa visão, está implícita a sensibilidade humana. Educar o olhar infantil pelas artes visuais ou pela música é muito importante, mostrar que somente ver não basta, olhar inclui leitura e compreensão (decodificação de símbolos e signos), precisamos da fruição estética que nos leva às sensações produzidas pela obra de arte. No livro Artistas do Mundo foi assim que pensamos, mostrar o artista e algumas pinturas produzidas por ele dentro do seu contexto. Trabalhar com o livro é mostrar que isso também pode estar perto dele, ou que ele também pode fazer isso motivando não só a sua compreensão, mas a vontade de ir além, de conhecer mais sobre o artista ou sobre a linguagem que ele utilizou. Tanto que o livro veio acompanhado de um documentário em CD e uma atividade educativa proposta pela equipe para se trabalhar em sala de aula. Quem sabe em uma segunda edição possamos atingir os alunos do ensino fundamental em Ribeirão Preto e, dessa forma, tentarmos frutificar, pelo pensamento dos artistas,  uma visão de época, um ensinamento, semeando nessas crianças o encantamento pela aprendizagem por meio da arte, começando pelos artistas de Ribeirão Preto.

 

MORENO, ASSOLINI & LASTÓRIA: nesse sentido, você acha que a escola tem alguma responsabilidade nessa divulgação, nesse trabalho com os artistas regionais?

MATTOS: sim e não. Creio que sim, a escola tem responsabilidade com o ensino da arte, porque o seu papel é fundamental na educação, hoje mais ainda, e não somente com a alfabetização. Não é só para desenvolver o gosto na criança, a pintura, a musicalização, a expressão corporal, seja lá o que for! Mas, a escola, por si só, é um corpo construído, um espaço que será preenchido por pessoas, ou não. O professor é quem faz toda a diferença, eu acredito no conhecimento e na formação desse professor, tem que conhecer a arte e seus processos para levar a criança a gostar do que faz para que ele consiga despertar na criança a vontade de ir além, a curiosidade, a inquietude que leva ao saber, o despertar da criatividade, ajudando-a a buscar novas soluções de linguagem. Nesse sentido, é através do professor que a escola certamente estará cumprindo o seu papel. Por outro lado, a escola já ressalta, ao ensinar os seus conteúdos curriculares, as características locais, a região na qual se insere, e, logicamente, as suas potencialidades e fragilidades. Porém, no ensino da Arte não é assim. Essa divulgação que você me pergunta sobre os artistas regionais vai depender muito do conhecimento docente e da proposta da escola. Levar os alunos a conhecer os artistas regionais pode ser um objetivo consciente do professor de artes no seu planejamento. Se bem distribuído e planejado, ao longo do Ensino Fundamental II, por exemplo, poderíamos pensar em duas atividades por ano, uma interna e outra externa, que pudessem contemplar dez artistas regionais nos seus diferentes fazeres artísticos, artes visuais, música, teatro e dança, ao longo desses cinco anos, de acordo com a compreensão da classe, do programa das outras disciplinas, tomando para si o viés da interdisciplinaridade e da prática aplicada.

 

MORENO, ASSOLINI & LASTÓRIA: o que você pode dizer a respeito das práticas pedagógicas envolvendo o ensino de arte nas escolas hoje em dia?

MATTOS: olha, eu sou um pouco crítica com relação a isso. Mas do que eu percebo em Ribeirão Preto, os alunos que vinham  para a Licenciatura em Artes na Moura Lacerda, onde leciono, na sua maioria eram todos professores da rede pública ou municipal, poucos eram iniciantes. Um bom percentual já havia cursado Pedagogia e, como tal, sentia-se preparado para o ensino de Artes no Fundamental I. Ledo engano, porque são visões diferentes até porque são passadas por docentes com uma formação diferente, nem sempre são arte-educadores especialistas na área. Essa para mim já é a primeira questão. O aluno, ao começar a graduação em Artes, por si só, ia fazendo menção às diferenças do enfoque, da compreensão que era encaminhada pelo docente, porque ele estudava a psicologia, a sociologia e as teorias da arte, uma em função da outra e todas pontuadas por um contexto, pela compreensão do estilo, da obra, ou da linguagem utilizada. Não há a menor dúvida que esse professor, ao adentrar a sala de aula, o seu comportamento com o conhecimento e competências a serem despertadas no aluno, será outro! Atualmente, existe uma gama infinita de possibilidades e materiais para o professor utilizar e atualizar a sua prática, o seu fazer docente, isso para não falar das TICs (tecnologias da informação e comunicação) em sala de aula que motivam o aluno porque fazem parte do seu contexto atual. Por outro  lado, uma coisa que eu não entendo, a gente percebe a falta do curso de licenciatura em Artes na cidade, pois essa ausência está refletida em práticas pedagógicas inadequadas, defasadas no tempo, mas a cidade não adere, os professores acham bobagem porque na Pedagogia tiveram uma ou duas disciplinas para isso, mas eu pergunto – não estamos oferecendo uma disciplina para você conhecer, estamos oferecendo uma curso para você aprender o que é arte e depois ensinar! Às vezes, se deixam levar pelas práticas, então fazem um curso de artesanato rápido e outras coisas do gênero, enfim, o suficiente para preencher as datas comemorativas na escola. Com relação à Educação Continuada, ela é sempre muito importante para qualquer professor, hoje em dia torna-se difícil pelo lado econômico (e para isso não podemos fechar os olhos), e pela disponibilidade de deslocamento em horário diverso do trabalho.  Fazer uma pós à distância torna-se uma opção que o professor pode utilizar. Mas, ainda gosto do olho no olho, aquele diálogo que gera e desperta o sentimento, a empatia, o aprendizado, que faz você pensar: “Poxa, essa professora tem uma forma de se expressar, de falar, de me cutucar!”.  Torna-se muito difícil falar sobre arte sem ver e sentir, arte é experiência, é contemplação e fruição...

 

MORENO, ASSOLINI & LASTÓRIA: em entrevista ao portal de uma emissora de TV no ano passado, você comentou sobre a relação entre arte e tecnologia a partir das obras de Bassano Vaccarini. Como curadora da exposição realizada com as obras digitais do referido artista em seu centenário, qual foi o seu olhar sobre a relação entre a arte e os meios digitais?

MATTOS: bem, essa exposição foi realizada em comemoração ao Centenário do artista, e como o livro foi lançado no mesmo dia, teve como título “Bassano Vacarini: para além do moderno”. Ele foi um artista modernista. Expôs e teve muitos contatos com grandes modernistas da pintura brasileira e, principalmente, do futurismo italiano, sua terra natal. Ele era uma pessoa extremamente politizada, sempre atuou artisticamente com muito vigor, com muito sentimento, com muita intensidade e essa expressão impulsiva acabou gerando uma quantidade de obras muito grande. Então o que aconteceu? Quando, na década de 1990, ele sai de Altinópolis para Ribeirão Preto, por motivos de saúde, facilitando o seu acompanhamento médico, a família utilizou o seu apartamento aqui em Ribeirão Preto, o que não o impediu de continuar trabalhando. Ele continuou fazendo as esculturas do Parque Maurílio Biagi e continuava pintando em casa. O que ocorreu é que o esquecimento (doença) tornou-se uma realidade para esse espírito humano que vivia da criação e da arte. Daniela Vacarini e sua mãe, Maria Ignes, preferiram que ele ficasse mais tempo em casa, tendo alguém por perto. Ela comprou um PC, em 1994, o primeiro que ela utilizou em casa, fazendo os trabalhos da faculdade, quando um dia ele lhe diz: mas isto também escreve? Porque até então, nas horas vagas, ela abria para ele o programa Paint Brush, e ele desenhava e coloria freneticamente, construindo a partir daí uma nova experiência artística na sua vida. Ele começa a se entreter com isso e se encanta com essa produção. Logo a filha adquire um Macintosh, com tela grande que ficava em um quarto onde ele começou a “brincar” com as possibilidades do software de desenho. Um artista figurativo realista, que, enquanto consciente e altamente crítico e produtivo, utilizou as cores para dar forma ao que via e sentia. No final de sua vida, ele trocou o figurativo pelo abstrato, o pincel pelo mouse. Para um artista que atravessou o século, a sua atualidade era emocionante. Usava a tecnologia sem perceber o salto de vida no tempo, para essa nova ferramenta (o computador). O software, na época,  era o ideal para o desenho abstrato no computador, podíamos construir formas a partir de outras pequenas formas que se juntavam e criavam corpo, volumes geométricos. Essa coleção de trabalhos, obras de arte que eu chamei de tecnológicas, pois, foram feitas através do uso dessa ferramenta contemporânea, foi o que resultou nessa exposição a que você se refere. Foi um acervo inédito do Bassano Vaccarini que chegou às nossas mãos por meio da generosidade de sua filha, Daniela. Por que que eu elogio essa forma de arte e tecnologia? Porque no caso dele, na passagem do século XX, ele conseguiu aliar os suportes que sempre utilizou para continuar “pintando”. Ao final, ele experimentou todas as formas de suporte artístico: da tela de madeirite ou a tela de algodãozinho cru, à tela do computador. Do pincel ao mouse!

 

MORENO, ASSOLINI & LASTÓRIA: então, nesse contexto da relação da arte com a tecnologia, como você avalia essa produção?

MATTOS: foi uma possibilidade de vida muito grande para ele, para um artista formado há cem anos, conhecedor das técnicas mais tradicionais como meio de expressão, disciplinadas pelo desenho e pela escultura. Atualmente, são várias as formas de expressão criativa, são  linguagens múltiplas, poéticas, relacionadas às mídias digitais e suas interfaces, com as mídias tradicionais na criação artística. Isso alterou o perfil do artista, na última década. Pensando  nessa atualidade do olhar multidisciplinar sobre as tecnologias, tanto pela pintura, pelo desenho gráfico, como pela literatura, o melhor exemplo disso é o Museu da Língua Portuguesa em São Paulo, que reúne arte, sensibilidade literária e tecnologia.

 

MORENO, ASSOLINI & LASTÓRIA: e, para você, quais são os maiores desafios enfrentados pelo campo da arte no mundo contemporâneo?

MATTOS: bem, eu sou professora e meu o mundo é a escola. Não sou artista. Mas sabemos que o contemporâneo é terreno da informação, é o tempo do minuto, da rapidez. Você vê que as pessoas estão impacientes. É difícil você conseguir um espaço de tempo para leitura, para você poder parar pra conversar e fazer isso que nós estamos fazendo agora. Determinadas profissões não conseguem mais nada disso. No final do século XIX, a arte rompeu com a tradição, inserida em aspectos mais instigantes e revolucionários próprios da cultura europeia, tais como o Movimento Moderno e as vanguardas artísticas. Neste século XXI também experimentamos novas formas de expressão contemporâneas ao nosso tempo, formas híbridas de comunicação e cultura.  Como podemos compreender a dimensão estética da arte diante dos efeitos da globalização e da pós-modernidade? Eu tenho pensado muito na relação dessa dimensão referente aos espaços comuns, como as galerias e museus. São espaços de fruição que realmente tornaram-se um lugar para poucos, em função da vida da grande maioria dos cidadãos. Poucos são os que têm tempo para desfrutar da visitação, para uma leitura demorada da obra, para um desdobramento desse saber num diálogo com o galerista ou com o curador. Nas capitais ainda vemos essa prática, principalmente nos finais de semana. Vários museus e centros culturais que prestam o serviço de agendamento educativo a essas grandes exposições que o país tem recebido estão tendo sucesso também, porque conseguem atrair estudantes de todos os níveis de escolaridade, crianças acompanhadas pela família, grupos de idosos, por meio da visita educativa direcionada aos grupos por monitores treinados pela equipe de curadoria. Por outro lado, vemos  galerias fechando pelo recrudescimento das vendas das obras, vemos museus fechando. O Museu Nacional do Rio de Janeiro está fechado por tempo indeterminado, por falta de verba. O Museu do Ipiranga em São Paulo (Museu Paulista/USP) está em reforma e sem previsão de reabertura. O acesso à cultura que inegavelmente foi expandido na última década, já está sendo, preocupantemente, reduzido. As filas para as grandes exposições da Pinacoteca ou do CCBB, em São Paulo, são uma demonstração dessa expansão a que me refiro, não são mais somente estudantes universitários ou adultos conhecedores, mas, jovens, famílias com criança no colo e sombrinha aberta para aguentar a passagem das horas. Isso é maravilhoso! No entanto, volto à minha preocupação inicial, veja você, eu levei alguns universitários para verem a exposição de Picasso no CCBB/SP e foi ótimo, mas,  logo no atendimento me explicaram: “ você não precisa se preocupar, professora, em torno de  uma hora e vinte você já viu tudo”. Pensei, então, se eu dedicar um tempo maior ao meu grupo no entendimento das obras que estávamos visitando, certamente, eu estaria atrasando os outros grupos! Por isso me questiono muito sobre essa  dificuldade do mundo contemporâneo que pode ser traduzida na sua relação com o tempo. A rapidez, o descartável, o substituível. O museu que eu estudei algumas obras na aula de hoje possui um tour virtual que me permite conhecê-lo, por que eu vou ler sobre isso? Não deu para eu ouvir a apresentação agora, mas eu vejo depois no YouTube, sabe como é? E nunca mais vai ver! Então, vejo que o “amor pela arte” é que precisa ser resgatado, é esse o sentido que eu quero reafirmar, retomar o sensível da arte que habita em nós e que hoje está ligado a um processo que vai na contramão da história. Precisaríamos desatar as amarras da contemporaneidade que estão cerceando a nossa visão, a criatividade infantil doutrinada pelas mídias visuais, a liberdade de traduzir o pensamento em imagens, pelo medo de se expor ou do “pré-conceito” com relação à arte.

 

MORENO, ASSOLINI & LASTÓRIA: pensando esses desafios no ensino de arte na educação básica, você poderia apontar alguns?

MATTOS: eu acho que é um desafio, sim, ensinar crianças na educação básica a gostarem de arte. Mas eu acho que o primeiro desafio é fazer o professor gostar. Porque essa criança só vai ser motivada, incentivada a ver uma obra, a conhecer uma gravura, uma paisagem ou uma cópia de uma floresta pela qual se interessou, se ela tiver no seu convívio diário, tanto na escola quanto na família, esse tipo de formação. Uma criança que não tenha um livro de história na mão pra ela poder ler ou ver figuras, contar a mesma história a partir da sua própria imaginação, ficará mais dificil para ela poder se expressar por meio da imagem. Esses livrinhos a que me refiro, pouca história e muita imagem, deveriam ir para a mão da criança até a adolescência para não deixar endurecer a sua sensibilidade. Explico, na verdade, você não lê a mesma página duas vezes com a mesma compreensão ou interpretação do que viu, porque o teu olhar é outro na segunda vez. Você não consegue ler duas vezes da mesma forma uma obra de arte, porque o teu olhar é outro. Porque, na segunda vez, você já assimilou o que você viu primeiro e a tua criatividade. Como que eu vou querer que uma criança construa pra mim uma historinha infantil e faça a ilustração dela se ela não conhecer antes esse processo? Hoje, com o audiolivro (uma ferramenta de substituição da pessoa da avó, da mãe que contava), é bom lembrar que ele não deve ser somente pra ela ouvir historinhas, mas é importante mostrar para ela as imagens que compõem esse cenário, só assim ela poderá construir o seu imaginário, e isso, sim, fará a diferença. Porque se o lobo tiver uma boca muito grande e for preto, horrível, despenteado e dentuço, ela não vai querer saber o que aconteceu com a chapeuzinho vermelho, não é mesmo? Porque ela vai ficar com medo do lobo e a sua interpretação do fato é  imediata. Mas, a figura ou o final da história que ela poderá criar a partir dali, pode não ser a mesma, porque ela não quer viver aquilo tudo e o lobo da sua história, quem sabe, pode ser muito diferente. A força da imagem quando ela substitui a palavra é muito importante na formação da criança. Por isso, pessoalmente, acho que isso tem que vir primeiro a partir do professor, ou de quem acompanha a criança.

 

MORENO, ASSOLINI & LASTÓRIA: já que você está falando sobre os professores e sobre a escola, você gostaria de deixar alguma mensagem para os professores?

MATTOS: não sei se é utópico da minha parte, mas eu gosto muito de pensar que as escolas podem alfabetizar, também pela arte. Que a necessidade da arte na vida humana ainda retornará como foco da formação do sujeito na educação escolar. Que os professores de Artes ainda farão a diferença nas escolas.

 

 

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