ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: uma abordagem discursiva

ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO: uma abordagem discursiva

Filomena Elaine P. Assolini

FFCLRP-USP

 

                                                            

INTRODUÇÃO

            Neste artigo, discuto algumas metodologias de alfabetização que se fazem presentes no cenário educacional brasileiro, apresento a proposta “alfabetizar-letrando”, tal como formulada por Tfouni (1994) e exponho alguns dos conceitos por mim agregados àqueles inicialmente concebidos pela autora citada.

            O tecido que sustenta teoricamente meus estudos e pesquisas é tramado por meio da urdidura entre os fios da Análise de Discurso de matriz francesa da teoria Sócio-Histórica do Letramento, das contribuições advindas do referencial Histórico-Social e de alguns fios da Psicanálise.

METODOLOGIAS E PROPOSTAS DE ALFABETIZAÇÃO: análise crítica.

            Os métodos milenares de alfabetização, o sintético e o analítico, ainda se fazem- presentes no sistema educacional brasileiro, tanto no âmbito do ensino público quanto do privado.

            Em relação ao primeiro, o método sintético, destacamos que os procedimentos de ensino de leitura e escrita têm, como ponto de partida, o estudo das unidades menores da língua: o fonema, a letra, a sílaba. O processo de leitura é compreendido como um esquema somatório de agrupamento dessas unidades em agrupamentos maiores: palavras, sentenças. Na categoria denominada “método sintético”, enquadra-se, portanto, os procedimentos metodológicos conhecidos como método alfabético, fonético e silábico, que consideram, respectivamente, a letra, o som, a sílaba.

            Em seus primórdios na Antiguidade, bem como ao longo da Idade Média, o método sintético seguia as seguintes etapas: o aprendiz era levado a dominar o alfabeto, nomeando cada uma das letras, independentemente de seu valor sonoro. A fixação da aprendizagem dava-se por meio da soletração em coro. A seguir, aprendia-se a grafia das letras e, posteriormente, conduzia-se o aprendiz às sínteses, originando assim, sílabas e palavras, desde as consideradas mais simples às mais complexas.

            A partir da segunda metade do século XVIII, o método sintético caracterizou-se por substituir a soletração por silabação, partindo da sílaba como unidade básica, para a composição de sínteses, formadoras de palavras.

            A concepção metodológica em pauta fundamenta-se nos postulados do Associacionismo, cujo principal representante é Edward L. Thorndike. O termo associacionismo origina-se da concepção de que a aprendizagem se dá por um processo de associação das idéias, das mais simples às mais complexas. Assim, o sujeito precisaria primeiro aprender as idéias mais simples que a ela estariam associadas.

            Partindo o pressuposto de que a aprendizagem se efetiva mecânica e automaticamente, o método sintético prevê atividades de ensino caracterizadas, sobretudo, pela cópia de fonemas, letras, sílabas, “textos”, exercícios e tarefas que requerem do estudante tão somente o preenchimento de lacunas, o assinalar de “respostas” corretas, a reprodução de modelos de exercícios, dentre outras.

            De acordo com essa proposta metodológica, ler significa decifrar o escrito em som, sendo tarefa do professor a correção imediata da pronúncia e da entonação. A língua é concebida como código ou instrumento de comunicação; a linguagem por sua vez é tida como neutra e transparente; os pseudotextos, contidos nas cartilhas e livros didáticos trabalham com a possibilidade de existir um único sentido, a ser apreendido pelo aluno. Soma-se ainda a visão patologizante das produções escritas infantis. Assim, muitas vezes, transcrições e trocas fonéticas são interpretadas como “dificuldades” ou “distúrbios” de aprendizagem.

            Nessas condições adversas de produção, conforme mostramos sobejamente em nossa dissertação de mestrado (cf. Assolini, 1999) são limitadas as possibilidades de os estudantes acessarem seus arquivos, concebidos aqui como “(...) campo de documentos pertinentes e disponíveis sobre uma dada questão” (PÊCHEUX, 1997, p.57). O acesso aos arquivos já existentes e a construção de novos contribui, a nosso ver, para que o aluno desloque-se da posição de sujeito enunciador de sentidos que pouco lhe afetam para a posição de um sujeito cujo interdiscurso é valorizado. Lembramos que “(...) é o interdiscurso que fornece a cada sujeito a sua realidade enquanto sistema de evidências e significações percebidas e experimentadas: aí se explicita o processo de constituição do discurso: a memória, o domínio do saber e outros dizeres, já ditos, que garantem a formulação (presentificação) do dizer, sua sustentação” (ORLANDI, 1996, p. 39).

            Outras implicações negativas para o processo de ensino e aprendizagem decorrentes dos métodos sintéticos referem-se à desvalorização das práticas discursivas letradas, que acontecem em uma sociedade letrada como a nossa e com os quais, inevitavelmente, o educando convive, o não entendimento das funções sociais da leitura e da escrita, além da evidente exaustão, tédio e desinteresse dos alunos e, muitas vezes, também do próprio professor, no cotidiano da sala de aula.

            Ao concentrar o processo de alfabetização tão somente no método sintético, a escola, “(...) a mais importante agência de letramento”, segundo Kleiman (1995, p.20), desconsidera que, mesmo antes do início do processo formal de escolarização, o educando pode ter convivido com outros tipos de linguagens e códigos.

            Destaco também que tal metodologia está sustentada pela ilusão de que possa existir efetivamente uma distribuição equânime do conhecimento. Este pressuposto é um logro, porque ignora as diferenças subjetivas entre as crianças desde o início da escolarização. A aspiração a um ensino único, o mesmo para todos, supõe que todas as crianças sejam semelhantes e estejam em nível zero de alfabetização e letramento, o que é um equívoco, conforme mostraremos mais adiante. A partir desse a priori há uma uniformização do conhecimento e uma rigidez de programas. Em decorrência disso, as diferenças são apagadas, a diversidade é negada e a homogeneização é impingida aos alunos, tornando seus discursos e produções semelhantes, passíveis de domínio e controle.

            A meu ver, enquanto o objetivo precípuo da escola restringir-se à reprodução de um pacote de informações perenes, estáveis, indefectíveis, estudantes e professores estarão condenados à estática posição de meros repetidores de discursos alheios.

            Contrapondo-se aos princípios do método sintético no qual vigoram o controle e a domesticação dos sentidos, na prática da leitura, a A.D. concebe a leitura como produção e atribuição de sentidos, sendo que ambas as ações tem sua origem em um processo histórico-social e ideológico.

            Coadunando com os postulados de Chartier (1996), ressalto que a leitura é prática criadora, e como prática criadora, as leituras são sempre plurais, múltiplas, inusitadas. Para o autor, (...) “ler é fazer emergir a biblioteca cultural vivida, quer dizer, a memória de leituras anteriores e de dados culturais” (CHARTIER, 1996, p.113).

           O conceito do pesquisador francês relaciona-se com o de dialogismo e polifonia, proposto por Bakhtin/Volochinov (1929; 1992). No enfoque do teórico russo, os textos conversam, dialogam entre si. Como diz Flores (2005, p.75): “(...) o dialogismo abarca a ideia de que o discurso não se constrói a não ser pelo atravessamento de uma variedade de discursos, as palavras sendo “habitadas” por outras ressonâncias”

         Não poderíamos deixar de mencionar a importância de o professor alfabetizador dispor de um arquivo que lhe assegure condições para instigar em sala de aula gestos de interpretação que possibilitem aos estudantes leituras intertextuais, o que os levaria a reconhecer a polifonia de vozes presentes em um texto, bem como a “ordem do discurso”, como nos sugere Foucault (2000), ou seja, as artimanhas e tramas que fazem com que  os sentidos se lhe apresentem como sendo óbvios, únicos, naturais.  Lembro aqui que, na perspectiva discursiva, a língua é entendida como materialidade lingüística e, devido à sua porosidade, à sua densidade e ao equívoco que a constitui, pode ser desconstruído, pela análise do funcionamento discursivo, o que nos oferece possibilidades de interpretação.

          Dando prosseguimento, abordaremos o método analítico, cuja sustentação teórica está baseada nos princípios da Psicologia da Forma ou da Gestalt. Essa tendência teórica considera que, tanto a nossa percepção quanto a nossa compreensão dos fenômenos, ocorrem ao partir da apreensão do todo, concebido não simplesmente como uma somatória de partes, mas como uma “configuração”.

            Ancorados nestes princípios basilares da Gestalt, os defensores do método analítico, também conhecido como método global, misto ou eclético, postulam que a leitura é um ato global e ideovisual.

            As etapas propostas para a aprendizagem seguem o caminho inverso ao do método sintético: por um processo de análise, a palavra é segmentada em unidades menores: sílaba, fonema, letra.  Coube a Édouard Claparèd, cientista suíço (1873-1940), que direcionou sua carreira para o campo da psicologia experimental dar sentido pedagógico a noção de sincretismo, proposta pela Gestalt.  De acordo com o educador:

 

“para uma pessoa que percebeu o mecanismo da linguagem escrita, a letra é mais simples do que a sílaba e a sílaba mais simples do que a palavra. Mas para a criança que vê pela primeira vez um texto isso não é verdade. Para ela, a palavra ou mesmo a frase formam um desenho cuja fisionomia geral a cativa muito mais do que o desenho de letras isoladas, que ela não distingue do conjunto, muitas vezes é melhor ensinar as crianças a ler começando pelas palavras do que começando pelas letras isoladas” ( CLAPARÈD, 1946, p. 48).

       

            Neste contexto, é pertinente destacar as contribuições de Ovide Decroly (1871-1932), que divulgou sua proposta de ensino, pautada neste método. Considerando que “as visões de conjunto precedem a análise”, o médico, psicólogo e educador belga propõe a organização das atividades de ensino de leitura e escrita em “centros de interesse”, defendendo o ensino da leitura a partir de textos “naturais”, ou seja, relacionados ao universo infantil de maneira ampla e ao contexto no qual a criança está inserida de forma particular. Os textos, segundo ele, deveriam ser significativos e interessantes para os aprendizes, cabendo ao professor instigar a compreensão do significado desde o início do processo de alfabetização.

            As bases filosóficas e postulados de Decroly, pioneiro da Escola Nova, estão nos estudos de John Dewey, Kilpatrick e Claparèd, bem como em outros adeptos do escolanovismo.  O autor criticava os métodos tradicionais de soletração e silabação, que contrariavam a crença segundo a qual a criança tem uma visão sincrética (ou globalizada) da realidade, conseguindo perceber o todo, o conjunto, antes de captar os detalhes. A proposta pedagógica do pesquisador trouxe importantes contribuições para o ensino da leitura e da escrita, tanto pela criação dos “centros de interesse”, que, ao contrário, das propostas curriculares caracterizadas por disciplinas isoladas, reconhecem e valorizam assuntos, temas e problemáticas de interesse infantil, como também por considerar que as ações de ler e escrever serão tanto mais prazerosas e instigantes quanto mais plenas de significados forem. Para este pesquisador, a criança deveria ter liberdade de sentir, agir e pensar.    

             Nessa linha de argumentação, assinalo que, no Brasil, a conhecida “batalha dos métodos” foi objeto de acirrada discussão entre os seguidores do caminho sintético e os do caminho analítico. Debates calorosos a respeito de qual método deveria preponderar  repercutiram inclusive nas páginas dos jornais. É nesse contexto que a Diretoria Geral da Instrução Pública, sob a gestão de Oscar Thompson (1909-1910), indica oficialmente a adoção do método analítico, que deveria ser adotado tanto em grupos escolares da capital como do interior do interior do estado de São Paulo, com a finalidade de uniformizar o ensino e assegurar a consolidação e a expansão do modelo considerado cientificamente verdadeiro,  uma vez que já havia uma teoria científica sobre a infância disponível para os educadores.

        A aplicação dos métodos globais, que partem de histórias, orações e frases para chegar a nível de letra e som, mas sem desconsiderar o texto original e seu significado, exigiu dos professores mudanças nos referenciais que sustentavam suas práticas pedagógicas escolares.

        Descontentes e contrariados com as imposições que lhes foram feitas e, sem saber, de fato, como colocar tal método em funcionamento, os professores questionaram a obrigatoriedade da aplicação do método; deixaram-no de lado e, no dia a dia da sala de aula, ele foi raramente utilizado.

            Mortatti (1999) esclarece que, quando Oscar Thompson se retira da instrução pública, em 1920, é implantada a Reforma Sampaio Dória (Lei Nº 1750, de 1920), que, dentre outros importantes aspectos, garantia autonomia aos professores, denominada “liberdade de cátedra”.

            Embora as contribuições deste educador já tenham completado quase cem anos podemos observar que para muitos (cerca de oitenta e dois por cento de uma amostra de cento e vinte e cinco professores, (cf. Assolini, 2009), alfabetizar a partir de textos constitui-se uma tarefa complexa, difícil e, por vezes, inexequível. Dentre os questionamentos mais comuns das professoras, destaco os seguintes: “A criança não conhece as letras e não sabe ler palavras simples, como poderão ler uma história”? “Como lidar com textos longos”? “Como apresentá-los aos alunos sem confundi-los”? “É mesmo possível ensinar a leitura e a escrita de forma global, sem ensinar uma letra de cada vez? Que tipos de textos usar”?

            A raiz da palavra texto é a mesma da palavra tecer. Podemos pensar o texto, como um tecido feito com palavras, assim como o pano é um tecido de fios. Fios soltos não formam um tecido, não dão conta de fazer as tramas necessárias para a constituição de uma rede, por exemplo; palavras soltas, desarticuladas, desconexas, sem um sentido que as aproxime, não formam uma produção lingüística (oral ou escrita) que possa ser considerada texto. Ou seja, como “(...) unidade de sentido em relação à situação discursiva” (Orlandi, 2001, p. 91).  Este objeto linguístico-histórico constitui uma unidade significativa, que se estabelece pela historicidade enquanto unidade de sentido, o que denota afirmar a presença da ordem da língua enquanto sistema significante. É devido ao fato de que a história afeta a linguagem que podemos falar em historicidade. (cf. ORLANDI, 2001, 1999, 1987).

            Tenho defendido que a escola deve trabalhar com a textualização, ou seja, a formulação da linguagem em texto, que se faz

 

 “(...) às expensas da relação com o interdiscurso que, por si, é irrepresentável. A formulação dá corpo aos sentidos, dá-se corpo em palavras; nesse processo entra o imaginário, a ideologia, de modo central (gesto de interpretação). Nesse imaginário está inscrita a domesticação da dispersão real dos sentidos (e dos sujeitos) que “inunda” todo texto pela invasão das diferentes discursividades que o atravessam” (ORLANDI 2001, p. 87).

 

            Assim, de acordo com o enfoque discursivo, o texto não pode ser visto como uma unidade fechada, pois tem relação com outros textos (existentes, possíveis ou imaginários), com as condições de produção (os sujeitos e a situação) e com o que chamamos de exterioridade constitutiva, ou seja, o interdiscurso, a memória do dizer, a memória dos sentidos.

            Considerando, pois, que os textos sempre dialogam com outros textos, que a leitura é um processo que não se limita à simples decodificação de um enunciado e, ainda, tendo em vista que a AD pode contribuir com os estudos sobre alfabetização e letramento,  uma vez que tem como objetivo romper os efeitos de evidência, expondo o olhar leitor à opacidade do texto,  fazendo funcionar a inscrição dos sujeitos nas redes de significantes, entendo que tal aparato teórico poderia oferecer subsídios para os professores desenvolverem uma prática pedagógica alfabetizadora que lhes possibilitasse trabalhar com textos na sala de aula  resgatados do interdiscurso do estudante.

            O trabalho pedagógico a partir do interdiscurso do educando possibilitaria a construção de efetivas condições de produção para a emergência da subjetividade, “(...) um estranho país de fronteiras e de alteridades construídas e desconstruídas” (KRISTEVA, 1997, p.37). A meu ver, a subjetividade do sujeito do discurso é fator imprescindível para que possa ocupar o lugar de “intérprete-historicizado” condição para compreender a língua enquanto estrutura e acontecimento, bem como para, atingir  o funcionamento ideológico da linguagem. Dessa forma, é desejável que tanto o educador quanto o educando estabeleça relações com a cultura, com a história, com o social e com a ideologia. Conhecer os mecanismos construtores dos sentidos evidentes que “brotam de um texto” (Orlandi, 1988) requer, assim, que ambos problematizem as relações com o texto, “desconstruindo-o”, o que lhes permitiria explicitar os processos de significação que nele estão configurados.

            Dentre outras coisas, o ensino da leitura, a partir da perspectiva discursiva, possibilitaria ao educando e ao educador relativizarem a importância dos conhecimentos considerados legítimos pela escola, uma vez que de acordo com essa perspectiva a leitura é uma prática cultural em seu sentido amplo, que não se esgota na educação formal tal como este tem sido definida. É por esse motivo que as histórias do sujeito leitor e suas histórias de leituras, o seu saber sobre o mundo (antes de chegar à escola) deveriam ser tomados como ponto de partida nas atividades de produção linguística escrita. Como destaca Orlandi (1988):

  

“o mesmo leitor não lê o texto da mesma maneira em diferentes momentos e em condições distintas de produção de leitura, e o mesmo texto é lido de maneiras diferentes em diferentes épocas, por diferentes leitores. É por isso que entendemos quando afirmamos que há uma história de leitura do texto e há uma história de leitura dos leitores” (p. 34).

 

             Dando prosseguimento, salientamos que, especialmente a partir da década de 1980, pesquisadores da área de ciências da linguagem passam a questionar o ensino da leitura e da escrita, nos anos iniciais de escolarização, indagando, sobretudo, os motivos pelos quais, principalmente a população brasileira pobre, excluída e marginalizada vivenciava e sofria as dolorosas e nefastas conseqüências do que se entendia por “fracasso escolar”, sendo este atribuído e pensado unicamente como fracasso do aluno, que não correspondia ao que a escola, enquanto instituição concebia como “sucesso”.

  Esses problemas mobilizam muitos estudiosos latino-americanos, que, inquietos e inconformados, formulam teorias e explicações, na tentativa de responder as indagações e questionamentos a respeito do fracasso escolar. É nesse contexto que chegam ao Brasil os resultados das investigações da pesquisadora argentina Emília Ferreiro, que desenvolveu um modelo conceitual a respeito de como as crianças aprendem a ler e a escrever. Os trabalhos de Ferreiro, que foram desenvolvidos sob a orientação do epistemólogo suíço Jean Piaget, propõem explicar a psicogênese da língua escrita na criança, buscando entender como a criança aprende a ler e a escrever.

             Muitos equívocos, decorrentes, a meu ver, de uma frágil fundamentação teórica a respeito da proposta de Ferreiro vem circulando no discurso de educadores brasileiros, bem como didáticas e práticas de ensino que, supostamente, atenderiam aos princípios desse modelo teórico, resultante da perspectiva construtivista em alfabetização, ou “construtivismo”, como ficou amplamente conhecido pelos professores.

             Dentre os mal-entendidos teóricos que afetam negativamente o processo de ensino e de aprendizagem, destaco, resumidamente, alguns: exercícios de compreensão textual dissociados do texto e descontextualizados de suas (do texto) condições de produção mais amplas; atividades como cruzadinhas, caça-palavras, preenchimento de lacunas, bingos, composição e decomposição de sílabas e palavras sem relação alguma com um texto; o próprio texto sendo ainda tratado como se pudesse haver compreensão autônoma por parte do leitor. Além disso, é possível observar que, em muitos casos, as fases evolutivas pelas quais as crianças passam no percurso da aprendizagem da leitura e da escrita, segundo Ferreiro (1989), são tomadas como referência para rotular perversamente os estudantes, colocando-os em fileiras ou classes ilusoriamente tidas como homogêneas, brasileiro, principalmente no estado vista, que ainda podemos constatar que muitos estudantes brasileiros têm chegado ao Ensino Médio sem as condições mínimas para ler e interpretar um texto, lidar com os aspectos metafóricos da língua e, muito menos, efetivar uma produção linguística escrita que possa ser denominada “texto”, entendo ser urgente que as políticas públicas brasileiras busquem saber o que, de fato, acontece dentro da sala de aulas dos anos iniciais de escolarização, pois, ao contrário do que se difunde, o que podemos constatar é que os métodos sintéticos e as cartilhas são largamente utilizadas pelos professores, que afirmam  “mesclar”, “misturar”, “pegar um pouquinho de cada um” (dos métodos tradicionais e do construtivismo), para concretizar a difícil e complexa tarefa de alfabetizar crianças.

               Partindo do pressuposto de que as formações imaginárias são constitutivas do discurso, uma vez que todo discurso é direcionado (inconscientemente), em função da imagem que o outro faz de si, do outro e do objeto do qual fala, como nos ensina Pêcheux (1995), gostaria de dizer que pode ser observado, no discurso do sujeito professor, a idéia de que a aplicação da proposta construtivista configura-se como uma prática inovadora. Entretanto, como mostrei anteriormente, são inúmeros os equívocos teórico-didáticos relacionados ao que se supõe tratar-se de uma “aplicação”. Falar em inovação pedagógica, nessa perspectiva, é temerário, pois “(...) a inovação requer uma ruptura que permita reconfigurar o conhecimento para além das regularidades propostas pela modernidade” ( ZANCHET, FERNANDES, KONARZEWISKI, 2006, p. 105).

Alfabetizar-letrando: uma proposta discursiva.

             Os postulados de Tfouni (1992, 1994, 1995, 2001) diferenciam alfabetização e letramento, mostrando que este é um processo mais amplo que aquele, porém relacionado com a influência de um código escrito. De acordo com a autora, “(...) o letramento é um processo, cuja natureza é sócio-histórica, que se insere em um continuun (TFOUNI, 1995, p.31). Sendo assim, todos nós possuímos um saber sobre a escrita, que é o letramento, desde que estejamos inseridos em uma sociedade letrada. Este conceito anula a teoria da grande divisa, antepondo ao modelo autônomo, que esta teoria postula um modelo ideológico. Lembramos que os autores que seguem a teoria da grande divisa propõem uma separação dicotômica entre os usos orais e escritos da língua, incorporando a interpretação ideologicamente construída, segundo a qual a linguagem escrita seria superior à falada.

               Ampliando o conceito de autoria proposto por Foucault (1969), Orlandi e Guimarães (1988), a pesquisadora, cujas pesquisas filiam-se à AD, comprova que a autoria do discurso não se limita apenas ao discurso escrito. Sendo assim,

 

“(...) deve-se aceitar que tanto pode haver características orais no discurso escrito, quanto traços da escrita no discurso oral. Essa interpenetração entre as duas modalidades inclui, portanto, entre os letrados também os não alfabetizados e aquelas pessoas que são alfabetizadas, mas têm baixo grau de escolaridade” (TFOUNI, 1995, p.42).

 

               A autora constrói, no início da década de  noventa, uma proposta pedagógica, por ela denominada “alfabetizar- letrando”, cujas características são: a) mostrar à criança a utilidade prática e social da leitura e da escrita, bem como que ela (a criança) pode ocupar outros lugares para falar sobre si mesma; b) possibilitar a inserção da criança em contextos cognitivos e comunicativos de experiência partilhada ,permitindo-lhe conhecer e lidar com os portadores de textos que estão servindo às práticas letradas em determinado momento histórico; c)  sensibilizar o educador para a importância do discurso narrativo enquanto um discurso lúdico; o discurso narrativo, dialógico e polifônico, permite ao sujeito do discurso transitar livremente entre diferentes regiões de sentido, o que lhe oferece condições de produção favoráveis para poder se apresentar, em uma mesma narração, como autor, locutor, alocutário, enunciador ou destinatário; d)

Venho procurando contribuir com o aprimoramento e avanço da proposta de Tfouni, desde o meu trabalho de dissertação de mestrado.

          Aos postulados da autora, acrescentei: a) as pesquisas sobre o discurso pedagógico escolar, D.P.E., que mostram como se dá o processo de ensino-aprendizagem  da leitura e da escrita em salas de aula dos dois primeiros anos iniciais de escolarização, b) relacionamento dos professores alfabetizadores com a leitura e com a escrita e as conseqüências dele decorrentes para asa bases teóricas e práticas pedagógicas desenvolvidas; c) investigações sobre os conceitos de alfabetização, leitura, letramento, produção textual que circulam nos discursos dos professores e as implicações desses conceitos para os fazeres dos educadores; d) aprimoramento do conceito intérprete-historicizado e sua aplicação em atividades de interpretação e produção linguística; e) formulação de um proposta pedagógica considerando a reescrita como possibilidade para a construção da autoria; f)  construção de atividades  práticas leitura, interpretação, uso do dicionário em sala de aula  e  de produção textual nas quais o estudante é instigado  produzir e elaborar sentidos; g) letramento digital.

Considerações Finais: para além da alfabetização.

      Na sociedade contemporânea, é imprescindível que a criança seja alfabetizada e letrada, a fim de que possa constituir-se como um sujeito capaz de desconfiar e estranhar  do que se lhe apresenta como natural e evidente. E, mais do que isso, que esse sujeito possa alcançar elevados níveis de alfabetização e letramento, que, certamente, irão lhe permitir constituir-se sujeito de sua própria história, exercendo, assim o direito à palavra. A vida e o saber fazem mais sentido quando  nosso dizer é considerado, e, sobretudo, quando conseguimos romper espaços preestabelecidos.

     Nessa perspectiva, tenho me posicionado, pessoal e profissionalmente, em defesa da formação ininterrupta do educador. Entendo que a formação continuada e permanente é um dos caminhos promissores para que o educador, ele também, possa, diariamente, elevar e aprimorar seu nível de alfabetização e letramento, condição basilar para o exercício de sua profissão.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

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