ALFABETIZAR é muito mais do que ensinar a ler e a escrever

ALFABETIZAR é muito mais do que ensinar a ler e a escrever

Entendemos que alfabetizar é muito mais do que ensinar a ler e a escrever porque o sujeito alfabetizado, além de codificar e decifrar palavras, frases e textos, interpreta, considerando que a “sua” interpretação é uma dentre as muitas possíveis.

Gostaríamos de destacar que, segundo nossa concepção, o sujeito alfabetizado é aquele que escreve e lê proficientemente, inclusive textos complexos. Ler um singelo bilhete com poucas frases e palavras é bem diferente de ler os trabalhos de um estudioso como Vygotsky, por exemplo, ou, ainda, ler o manual de instalação de uma impressora é diferente de ler um texto literário. Diferentes níveis de alfabetização estão em jogo nesses exemplos. O sujeito alfabetizado lê, interpreta, atribui e produz sentidos ao que leu.

Para além de saber ler e escrever, o sujeito alfabetizado desenvolve olhar crítico sobre o funcionamento ideológico da linguagem, conseguindo perceber que os sentidos que se lhe apresentam como naturais e óbvios podem não ser nem naturais nem óbvios. Sendo alfabetizado, o sujeito poderá desconfiar dos sentidos dos enunciados de maneira ampla, atentando para suas (re)formulações e (re)produções, desvelando distorções, equívocos e manipulações.

Outra característica é concernente ao exercício da cidadania, com a consciência dos deveres, tarefas e engajamentos sociais. Ser cidadão na sociedade contemporânea consiste em conhecer os fatos, os acontecimentos, pensar e discutir sobre eles a partir de diferentes perspectivas e pontos de vista. É também lembrar que nossas ações ou omissões repercutem em nossos semelhantes, em nossas cidades e nossa nação. Além disso, é lutar e resistir a toda sorte de (des)construções ideológicas que nos chegam por meio de diferentes Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE), como a igreja, a mídia e a escola, por exemplo. Ser cidadão é, também, saber de nossos direitos, lutar para que não sejam desconsiderados ou silenciados e saber quando e como podemos usufruir deles. Aprender sobre nosso lugar no mundo, sendo as posições a partir das quais podemos falar e enunciar formas de constituirmo-nos cidadãos.

Quando não resumida à aquisição de técnicas e habilidades, a alfabetização constitui-se em poderoso instrumento para a sobrevivência política, cultural, econômica e social do sujeito, pois poderá compreender os dispositivos ideológicos que constituem essas instâncias, indagando-os a fim de não nos constituirmos reféns, marionetes ou presas fáceis desses dispositivos de poder.

Enquanto processo político, a alfabetização e os sujeitos alfabetizados podem contribuir para a construção de uma sociedade menos excludente e injusta. Um dos mecanismos de exclusão social é tirar do sujeito o direito à alfabetização, ao aprendizado da leitura e da escrita. O sujeito não alfabetizado acaba excluído socialmente por não ter acesso à leitura e, assim, suas ações podem ser limitadas, como, por exemplo, quando precisa ler e entender uma receita médica, ler e entender orientações de funcionamento de um aparelho eletrônico, realizar atividades bancárias etc. O sujeito não alfabetizado, a depender de seu nível de letramento, poderá ter dificuldades com ações cotidianas, corriqueiras, como ler o visor de um ônibus, ler as orientações contidas na embalagem de um produto, por exemplo, inteirar-se de uma notícia de jornal, ler uma revista e tantos outros exemplos que poderíamos citar.

Concordamos com Paulo Freire ao defender a necessidade de que a educação esteja “adaptada ao fim que se persegue: permitir ao homem chegar a ser sujeito, constituir-se como pessoa, transformar o mundo, estabelecer com outros homens relações de reciprocidade, fazer a cultura e a história” (FREIRE, 1980, p. 39). Nesse processo de constituir-se como pessoa, chegar a ser sujeito e construir relações de reciprocidade, a alfabetização ocupa papel central, uma vez que permite ao sujeito refletir sobre seu trabalho, sobre sua capacidade de modificar o mundo e a realidade, sobre seus fazeres e a história que constrói diariamente.

Outra questão importante relacionada à alfabetização tem a ver com a “constituição de identidade política e cultural para o povo brasileiro” (SOARES, 2008, p. 59). É de suma importância o postulado da citada autora, pois um povo não sobrevive sem identidade política e cultural e o pilar de sustentação de ambas são a leitura e a escrita. Pensemos em enunciados longos, densos, propositadamente ininteligíveis por parte de muitos políticos ou, ainda, em seus discursos persuasivos e manipuladores. Lembremo-nos também de nossa identidade política enquanto nação democrática. Manter e ampliar a democracia requer proporcionar condições favoráveis de produção para que todos os sujeitos aprendam a ler e a escrever. Isso é papel das políticas públicas que, não por acaso, parecem não se empenhar para tirar jovens moços e adultos da deprimente e lamentável situação de analfabetismo.

A língua é uma das manifestações culturais que fundamentam a identidade cultural de um povo. É, também, elemento essencial no processo de constituição de nossa subjetividade. É por meio da língua que nós nos constituímos como sujeitos, somos interpelados ideologicamente e vamos nos identificando ou não com as formações discursivas nas quais nos inscrevemos.

Não há identidade desvinculada da língua, nem língua que não pressuponha a construção de uma identidade, pois, conforme Bakhtin (1998, p. 46), não “há enunciados neutros, nem pode haver”, afinal, “a palavra é o fenômeno ideológico por excelência [...], ela é o modo mais puro e sensível de relação social” (BAKHTIN, 1997, p. 36). A palavra é a mediadora de toda relação social. De acordo com o autor,

 

a palavra penetra literalmente em todas as relações entre indivíduos, nas relações de colaboração, nas de base ideológica, nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas relações de caráter político, etc. As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É portanto claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem formados (BAKHTIN, 1997, p. 41).

 

Considerando o professor alfabetizador e o seu papel, destacamos ser fundamental que o próprio professor saiba ler e escrever fluentemente, que ele mesmo tenha alcançado elevado nível de alfabetização, preocupando-se com a qualidade de suas leituras e escritas. Para tanto, é imprescindível o investimento nas formações inicial e continuada, uma vez que essas poderão oferecer subsídios teórico-metodológicos para o professor alfabetizador criar situações de ensino em que os alfabetizandos discutam e reflitam sobre o mundo no qual se encontram inseridos, os fenômenos e acontecimentos que fazem parte desse mundo, aprendendo a ser sujeitos críticos e criativos.

O educador pode ser – e quase sempre é – modelo para os estudantes pelos quais é responsável. Constituir-se enquanto leitor, mostrar-se leitor irá inspirar os alunos, que poderão apaixonar-se pela leitura a partir do entusiasmo e paixão demonstrados pelo professor. No que se refere à escrita, o professor é, também, modelo exemplar para os alunos. Ele pode despertar o interesse dos estudantes por essa prática cultural mostrando, por exemplo, as funções sociais da escrita, bem como o funcionamento das práticas culturais.

Profa. Dra. Elaine Assolini

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