ALFABETIZAR-LETRANDO:  breves análises discursivas

ALFABETIZAR-LETRANDO: breves análises discursivas

Na perspectiva da Análise de Discurso de matriz francesa (pecheuxtiana), à qual nós nos filiamos, desde sempre, considera-se a materialidade linguística no ponto em que se unem linguística, ideologia e inconsciente.

Tratar de metodologia, no entanto, supõe teorizar novamente, pois, em AD, não há um modelo que se aplique de modo indiferenciado a todo e qualquer discurso. A metodologia constrói-se, assim, num movimento contínuo entre teoria e a própria análise, num ir-e-vir constante entre o corpus e os fundamentos, portanto.

Ao longo do ano de 2014, realizamos entrevistas com 156 (cento e cinquenta e seis) professores do ensino fundamental. Esses professores ministram aulas em escolas públicas municipais, estaduais, rede SESI e instituições privadas, de vinte diferentes cidades do interior paulista.

Os professores entrevistados atuam no magistério há no mínimo cinco anos e atuam nos anos iniciais do ensino fundamental, sendo responsáveis por ensinar estudantes das faixas estarias de 6, 7, 8 e 9 anos a aprenderem a ler e escrever.

Professores com menos de cinco anos de docência não foram convidados a participar do projeto.

As entrevistas foram gravadas e, posteriormente, transcritas. O processo de transcrição foi nós realizado, com a colaboração de estudantes de iniciação científica envolvidos no projeto.

Buscamos saber o que os professores entendem por “alfabetizar-letrando”, bem como se dão suas práticas pedagógicas em sala de aula. Para o presente capítulo, entretanto, trazemos apenas os resultados decorrentes de nossas análises a respeito da primeira pergunta.

Todas as entrevistas, suas condições de produção e, ainda, nossas observações formam o “material bruto” (Orlandi, 1999), ou amplo “espaço discursivo” (Courtine, 1982), que deu origem ao nosso corpus.

A partir desse espaço discursivo selecionamos alguns recortes, entendidos aqui como “(...) fragmentos correlacionados de linguagem e situação” (ORLANDI, 1987, p. 87). Desses recortes, escolhemos algumas sequências discursivas de referência, SDR, (Courtine, 1981), as quais foram por nós analisadas, como mostraremos na próxima seção.

Importa ressaltar que nos valemos do paradigma indiciário, tal como proposto por Carlo Ginzburg (1980). As marcas e pistas linguístico-discursivas serão por nós perscrutadas, visto que nos permitem puxar os fios do discurso (intradiscurso), que nos remetem às formações discursivas e suas respectivas formações ideológicas. Esse processo possibilitar-nos-á delinear as regularidades discursivas dos dizeres dos sujeitos.

No processo metodológico, consideraremos a relação intradiscurso e interdiscurso. A observação deste nos permite remeter os dizeres dos sujeitos-gestores e sujeitos-professores a uma filiação de dizeres, a uma memória, e a identificá-la em sua historicidade, em sua significância, mostrando seus compromissos políticos e ideológicos. Aquele, o fio do discurso, o intradiscurso, permite-nos notar o que está sendo dito, naquele momento dado, em determinadas condições de produção.

Como bem elucida Courtine (1982), todo dizer se encontra na confluência de dois eixos: o da memória (constituição) e o da atualidade (formulação). E é a partir desse jogo que nascem os sentidos, sempre em movimento, sempre nos escapando,  posto que o sujeito que se constitui no e pelo dizer está historicamente filiado a determinadas redes de sentido e não a outras, ou melhor, a determinadas formações discursivas e não a outras.

Outra questão que deve ser salientada é que a AD não busca alcançar a exaustividade horizontal, visto que, não há discurso fechado em si mesmo, todo discurso se estabelece na relação com o anterior e aponta para outro. Temos, assim, um processo discursivo do qual recortamos e analisamos estados diferentes (ORLANDI, 1999).

Análises Discursivas: tentando escutar para lá das evidências

RECORTE NÚMERO 1

Para mim, alfabetizar-letrando são dois processos, duas etapas diferentes, eu entendo assim... Então, o professor deve alfabetizar os seus alunos, ensinar as vogais, as consoantes, a juntar as sílabas e depois letrar, depois cuidar do letramento, que vai dar cultura para os alunos. Acho que não é possível fazer as duas coisas juntas (Sujeito- Professor RFZA).

RECORTE NÚMERO 2

Eu entendo que é preciso primeiro cuidar da alfabetização, depois do letramento. O letramento vem depois da alfabetização, é um nível acima, um nível mais elevado que a alfabetização. Eu alfabetizo por meio de textos curtos e os alunos gostam muito. Eles são letrados quando conseguem ler livrinhos e escrever textos (Sujeito-professor GCD).

RECORTE NÚMERO 3

Os alunos quando chegam a escola já têm algum conhecimento de mundo, já viram letras, números, já viram outdoors, alguns já tiveram acesso a livros e a jornais; tem criança que já viu os pais lendo e escrevendo. Tudo isso pode ser entendido como letramento. Então, eu acho que alguns alunos são letrados, quando chegam à escola mas nem todos são alfabetizados. Então, quem escolhe trabalhar com a proposta Alfabetizar- Letrando tem que alfabetizar, começar alfabetizando e depois partir para o Letramento, que é mais difícil e complexo que a alfabetização. Muitos alunos têm dificuldades no Letramento (Sujeito-Professor FBD).

RECORTE NÚMERO 4

Eu começo sempre alfabetizando, só depois vou para o letramento. São dois momentos: o primeiro é a alfabetização, e depois vem o letramento. Eu alfabetizo com a cartilha, uso a silabação, depois trabalho com textos e depois me dedico a letrar as crianças e aí vem os livros e as revistinhas. Não dá para fazer as duas coisas ao mesmo tempo alfabetizar e letrar  (Sujeito-Professor GSR).

É possível observar que as quatro sequências discursivas destacadas têm em comum a separação entre alfabetização e letramento. Os sujeitos-professores estão inscritos em formações discursivas que os levam a entender que os processos de alfabetização e letramento ocorrem em tempos distintos e sequenciais. Teríamos a etapa da alfabetização, e, posteriormente, a do letramento, segundo o que entendem os sujeitos-professores. Interessante observar que não há concepção inversa, ou seja, inicialmente o letramento e depois a alfabetização.

De acordo com Tfouni (1995), existem letramentos de natureza variada, inclusive sem a presença da alfabetização.

Considerar o letramento implica ter em mente que o estudante dispõe de saberes sobre a escrita, independentemente de já ter sido inserido no processo formal de escolarização. Esses saberes sobre a escrita configuram o nível de letramento do estudante, nível esse que poderia ser tomado como ponto de partida para desencadear o processo de alfabetização.

Partir do pressuposto de que o educando vive em uma sociedade letrada, podendo também ter convivido com outros tipos de linguagem que não a escrita, como a linguagem musical, gestual, pictórica, poderia ajudar os sujeitos-professores a compreenderem que o investimento na alfabetização afeta o processo de letramento e vice-versa. Alfabetização e letramento são dois fenômenos distintos mas que se interpenetram, segundo Tfouni (1995). Assim, podemos pensar que o trabalho pedagógico com o letramento terá influências, reverberações e impactos no processo de alfabetização e vice-versa, pois à medida que se apropria do código escrito e se torna leitor o educando poderá participar de diferentes práticas discursivas letradas, o que lhe ajudará a atingir outros níveis de letramento.

É preciso ter em vista, também, que os saberes sobre a escrita dos estudantes não são homogêneos e, assim, em uma mesma sala de aula, o sujeito-professor irá se deparar com diferentes níveis de alfabetização e letramento. Pensar em práticas pedagógicas que possibilitem ao estudante expressar seus saberes sobre a escrita é tarefa do sujeito- professor, que, a nosso ver, poderia atentar-se também para as relações desses sujeitos com a escrita, posto que, tais relações implicam formas distintas de aprendizagem.

Temos defendido que o processo alfabetizar-letrando requer que o educando ocupe o lugar de intérprete-historicizado, o que contribui para que aprenda, desde sempre, que a linguagem não é transparente, neutra e que os sentidos não são óbvios, nem evidentes, mas ideologicamente naturalizados. Temos, assim, um processo que se estende muito além da alfabetização, posto que exige, tanto do educador quanto do educando, a compreensão dos mecanismos ideológicos da linguagem e de seus modos e estratégias para produzir efeitos de sentidos. É imprescindível que o funcionamento ideológico da linguagem e da língua, em particular, seja trabalhado no processo de alfabetização, posto que se trata, antes de tudo, de opção política, em relação à escola que queremos, aos sentidos que nela podem ou não circular, ao cidadão que conseguiremos ou não formar.

Para melhor compreensão de conceito intérprete-historicizado, convém esclarecer que entendemos interpretação como sinônimo de leitura historicizada de um texto, o que significa que o leitor deverá levar em conta as condições de produção desse texto, não somente em seu sentido estrito, ou seja, quem o escreveu, quando, sobre o quê escreveu, etc., mas também em seu sentido sócio-histórico mais amplo, o que requer que se considere: quais as filiações históricas do texto, qual o interdiscurso no qual este texto se inscreve, que aspectos materiais da língua estão indiciando um modo ou outro de funcionamento discursivo e um consequente direcionamento de sentidos para alguns lugares.

Salientamos, ao longo de nosso texto, que as concepções ingênuas de letramento poderiam ser revistas, sobretudo por educadores que ainda acreditam que basta ao sujeito ser letrado. Na sociedade contemporânea, é insuficiente ser letrado, é preciso ser altamente letrado e, também, alcançar elevados níveis de alfabetização, ou seja, saber ler e escrever proficientemente, relacionando-se criticamente com a linguagem, com a língua e com o discurso. Problematizar as maneiras de ler e de escrever, conduzir o sujeito estudante a se colocar questões sobre o que dizem, ouvem e observam nas diferentes manifestações da linguagem, leva-lo a perceber que não há neutralidade no uso de signo algum pode contribuir para torná-lo alfabetizado e letrado.

Nessa linha de pensamento, ressaltamos que a proposta alfabetizar-letrando ultrapassa os métodos tradicionais de alfabetização, bem como os modelos interacionista e construtivista, sobre os quais discorremos em nosso artigo, mostrando suas características e limitações. Sendo assim, é pertinente lembrar aqui o papel importante dos cursos de formação inicial e continuada de professores, no sentido de oferecer ao sujeito-professor fundamentos teóricos sólidos, a fim de que seus saberes e fazeres didático-pedagógicos não se sustentem em concepções equivocadas.

O exercício da docência é político, mas também poético, exigindo-nos comprometimento, disponibilidade para mudanças e transformações que possam responder às demandas de uma sociedade cada vez mais exigente, do ponto de vista da alfabetização, do letramento e das diferentes linguagens.

Esperamos que nossos leitores possam se juntar a nós, em especial, na nossa luta por uma escola que assegure ao estudante não apenas o acesso e a permanência, mas também um ensino capaz de contribuir para que se torne um cidadão alfabetizado e letrado.

REFERÊNCIAS:

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Profa. Dra. Elaine Assolini

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